Milton Nascimento e a MPB na esquina do mundo
Os 40 anos do clube mais famoso do Brasil servem para refletirmos sobre a transformação que empreenderam na Música Popular Brasileira com seu som eclético e poesia que transcenderam o imediatismo e viraram hits nas paradas de diversos países, além de serem fundamentais para o Brasil.
Por Marcos Aurélio Ruy*
Publicado 10/02/2012 18:29

Vindos do interior para a capital do estado, Belo Horizonte, esses artistas brasileiros de Minas Gerais, já contavam com carreiras solos em formação quando somaram talentos e fizeram dois discos antológicos na década de 1970, de fundamental importância, dando novos rumos para a MPB com som profundamente eclético, tornando-se universais ao tratarem de temas do cotidiano belo-horizontino. Neste ano, o Clube da Esquina comemora 40 anos e permanece tão atual quanto no momento em que foi lançado, até mesmo porque fugiu ao imediatismo.
O som e a temática desses mineiros foram sistematizados em dois discos fundamentais para quem aprecia a boa música. Trata-se do “Clube da Esquina” (1972) e “Clube da Esquina 2” (1978), que tem por alma o cantor Milton Nascimento, o “Bituca”, e junta músicos e poetas como Ronaldo Bastos, Wagner Tiso, Nelson Angelo, Tavinho Moura, Novelli, Beto Guedes, os irmãos Márcio e Lô Borges, Fernando Brant, Murilo Antunes, Flávio Venturini, Toninho Horta e Nivaldo Ornelas. O Clube da Esquina disse logo ao que veio com canções que se tornaram parte da história da MPB.
Na capa do “Clube da Esquina 1”, dois meninos sentados na terra com uma cerca de arame farpado por detrás e no “2” vários garotos pulando um muro. Ambos representando a vontade de transpor barreiras que parcela da juventude manifestava naqueles anos. Ligando a coisa da terra com os acontecimentos do mundo. Por essas e por outras é que “o Clube da Esquina nunca foi perdoado por não ter feito média coma mídia”, como afirma Ronaldo Bastos. Além de não fazer média, os componentes desse clube partiram para a resistência com contundente trabalho que teve como “eixo metodológico a integração entre a canção e o seu contexto histórico”, explica Bruno Viveiros Martins, autor do livro Som Imaginário – a Reinvenção da Cidade nas Canções do Clube da Esquina (Editora UFMG).
Os compositores populares brasileiros nasceram do povo, e como tal sempre estiveram afinados com as transformações do cotidiano e “vêm construindo um modo peculiar de se interpretar o Brasil”, afirma o autor do livro. O Clube da Esquina faz parte dessa gama de compositores que não sucumbiram apenas ao momento de contraponto ao autoritarismo vigente naqueles anos mas, como muitos outros músicos, superaram essa visão imediatista apostando na esperança e na vontade de transformar a música e, por que não, o mundo. É o que faz a atualidade dessas obras.
Tudo isso consta do livro de Bruno Viveiros Martins, que analisa os dois discos que segundo o autor, “mantiveram viva a esperança da transformação” com sua expressão artística, juntamente com diversos outros autores espalhados pelo país afora, como Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Taiguara, João do Valle, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gonzaguinha, João Bosco, Carlos Lyra, João Gilberto e tantos outros que fizeram a opção pela resistência.
A música do Clube da Esquina, opina Martins, têm em seu bojo “as raízes culturais negras, a tradição musical das cidades do interior mineiro, o diálogo com a canção latino-americana, o contato com os jazzistas norte-americanos, o acolhimento dos novos procedimentos sonoros criados a partir da bossa nova, além das influências do rock universalizadas pelos Beatles”. Para os artistas as esquinas de Belo Horizonte eram o “lugar do encontro, da pluralidade de ideias e opiniões, do respeito à diferença e, acima de tudo, o lugar da constituição de um viver comum”, fazendo de cada canção “um ‘texto’ a ser analisado dentro de seu próprio mundo intelectual e político”.
O livro também apresenta importante panorama das cidades brasileiras, fazendo de Belo Horizonte o seu espelho. Foi a primeira cidade brasileira planejada, com esquinas propícias a encontros públicos, que se tornaram muito pouco em voga aí pelos anos 1970, quando a ditadura aterrorizava a população e fechava os espaços públicos, enfatizando a vida privada e doméstica e, assim, despolitizando as discussões em torno da cidade, do estado, do país, do mundo, da política e da vida.
Tirania da intimidade
“A crença na segurança doméstica transformou a intimidade em uma tirania diária”, pensa Martins. Obviamente para não surgiram questionamentos à ditadura vigente. Isso só começou mudar mais recentemente, mas ainda precisa avançar e a arte engajada ajuda muito na busca de um país livre e soberano. Muitos compositores brasileiros colocaram-se no papel de acelerar esse processo com sua arte.
Os músicos brasileiros que escolheram resistir definiram o caminho “em que o cidadão venha a se sentir como agente integrante de uma coletividade baseada na ação, no diálogo e na liberdade política”, ressalta Martins. Nesse contexto, o Clube da Esquina, explica ele, pregou “o abandono da vida privada em busca de objetivos políticos e a conquista da liberdade no exercício da ação através da amizade e do caráter de livre escolha”.
A internet parece constituir uma parcela substancial desse espaço público perdido em décadas de autoritarismo e pregação do medo como ideologia. Os internautas se relacionam com certa liberdade e se relacionam em redes sociais e criam comunidades de relacionamentos diversos. Por outro lado, isso talvez dificulte que as pessoas saiam mais às ruas, embora o país respire ares democráticos e, como passar do tempo, as coisas podem mudar ainda mais e o medo ser superado.
A esperança venceu
Porque “a liberdade em tempos modernos, passou a ser entendida como a ausência de limites ou empecilhos que venham a constranger a ação de um indivíduo, na busca pela satisfação de seus desejos pessoais”, explica Martins. Ele completa o raciocínio afirmando que as cidades passaram a ser “’experimentadas’ como uma simples extensão da vida particular de seus habitantes”. Tempos em que reality shows fúteis fazem sucesso e o voyeurismo é exaltado na nefasta programação da tevê. O que facilita e legitima a violência, o preconceito, a xenofobia, o racismo, a homofobia, misoginia, o sexismo, e por aí vai.
Os músicos do Clube da Esquina se contrapuseram a tudo isso e foram além com “canções capazes de encarnar a esperança, ultrapassando a realidade imediata, criando, assim, novas esquinas para a cidade, o país e seus cidadãos”, afirma Martins. Como diz Fernando Brant, o trabalho deles consistia em “palavra, melodia e voz” que “se harmonizam e são rios que se alimentam” das “criações que convergem para alegrar e explicar a vida”.
Os compositores da MPB em todos os tempos estiveram afinados com seu tempo e alguns se engajaram na luta contra os mais importantes entraves para a formação da nação. Agora, com a ajuda dos músicos e poetas, os espaços públicos aos poucos foram sendo retomados. E o Clube da Esquina ajudou a reavivar a esperança no coração dos brasileiros. Como diz José Eisenberg, “a esperança é o vínculo do sonho desvinculado do real, e, quando coletivizadas, consciências antecipatórias se convertem em utopias compartilhadas, que libertam as esperanças do passado, permitindo a sua crítica e a formulação de projetos coletivos de ação” e complementa ao afirmar que ”desnecessário lembrar que o compartilhamento dessas utopias ocorre, muitas vezes, por meio de palavras cantadas, e a canção se torna, dessa maneira, instrumento de socialização da esperança”. Caso do Clube da Esquina.
*Colaborador do Vermelho
Serviço:
Bruno Viveiros Martins. Som Imaginário – a Reinvenção da Cidade nas Canções do Clube da Esquina. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009
Músicas e vídeos
San Vicente
Coração americano
Acordei de um sonho estranho
Um gosto, vidro e corte
Um sabor de chocolate
No corpo e na cidade
Um sabor de vida e morte
Coração americano
Um sabor de vidro e corte
A espera na fila imensa
E o corpo negro se esqueceu
Estava em San Vicente
A cidade e suas luzes
Estava em San Vicente
As mulheres e os homens
Coração americano
Um sabor de vidro e corte
Unhnhnhnh…
As horas não se contavam
E o que era negro anoiteceu
Enquanto se esperava
Eu estava em San Vicente
Enquanto acontecia
Eu estava em San Vicente
Coração americano
Um sabor de vidro e corte
Cravo e canela
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Ê morena quem temperou,
Cigana quem temperou
O cheiro do cravo
Cigana quem temperou,
Morena quem temperou
A cor de canela
A lua morena
A dança do vento
O ventre da noite
E o sol da manhã
A chuva cigana
A dança dos rios
O mel do Cacau
E o sol da manhã
Nada será como antes
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Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol