Acordes Indomáveis
O gênio anônimo do Recife tem ombros de estivador, usa botas de cantor sertanejo, camisa desabotoada no peito, gosta de jóias douradas, dirige um Honda Civic nem novo nem velho e mora no Ibura. Já teve sua obra executada na Alemanha pelo enfant terrible do violão Yamandu Costa, que se considera seu fã número 1, e volta e meia é comparado aos faixas preta João Pernambuco e Canhoto da Paraíba.
Publicado 31/01/2012 10:36
Por André Duarte, do Diário de Pernambuco*
Aos 56 anos, tenta, sem muito esforço, lançar seu primeiro disco e vetou a entrevista na sua casa porque os passarinhos que cria fazem muito barulho. É reconhecidamente temperamental, competitivo ao extremo, irônico, arengueiro, sarcástico e, provavelmente por tudo isso, continua anônimo.
De Lalão, apelido que recebeu na infância de uma irmã mais velha, não se pode negar o talento acachapante. Quando toca desconcerta até aqueles que, numa análise precipitada diante do seu jeitão cafuçu, duvidam de uma sensibilidade capaz de criações simples e complexas, mas nunca convencionais. Algo próprio da personalidade de Esdras Mariano Rodrigues, violonista desde garoto e eterna promessa errante da música instrumental. Dono de repertório pessoal com trechos dissonantes, já encostou várias vezes o violão pra virar guitarrista de baile ou pegar bicos como mestre de obras. “Nunca peguei no cimento. Falam por aí que eu sou pedreiro, mas isso é cachorrada, adverte.
Até que numa farra no carnaval de 2006 tocou para um convidado importante de São Paulo e foi promovido ao panteão dos grandes artistas através de um artigo intitulado “Lalão, o Gênio Anônimo do Recife”, escrito pelo influente jornalista e músico Luís Nassif. Compartilhado na web, o texto tece generosas loas e converge para uma espécie de clamor pra que governo e a pensata de Pernambuco à época jogassem luz sobre aquele dedilhar ligeiro e desconhecido.
Embora sua primazia artística não seja uma unanimidade, uma vez que a técnica de instrumentista autodidata tenha imprecisões, suas composições instrumentais de chorinhos, valsas e sambas são cada vez mais cultuadas por peixes graúdos dos palcos. A lenda do ex-pedreiro do Recife que compõe divinamente alguns dos gêneros mais difíceis correu algumas das principais rodas de violão do país.
Lalão não sabe decifrar partituras e constrói seu trabalho no mais puro senso instintivo. Aprendeu a tocar e a compor sozinho, no pé (do ouvido), como prefere dizer. Sem ajuda de instrumentos ou de papel e caneta, monta a estrutura imaginária de acordes durante as tarefas cotidianas e mantém o acervo armazenado em algum lugar do cérebro. Nunca registrou o direito
autoral da obra e não tem ideia de quantas músicas já criou. Só sabe que foram muitas, talvez centenas, a maioria em homenagem aos amigos. É assim desde a infância.
Aos 5 anos, a mãe tinha que resgatá-lo na marra das rodas de chorinho da Linha do Tiro, onde morava numa casa de taipa, semenergia elétrica ou água encanada, com os pais e nove irmãos. Nunca gostei de bola de gude, de futebol e de outras coisas de criança. Sempre gostei de música, sempre do choro. Sem dinheiro, o pai, então funcionário da Faculdade de Direito do Recife, construiu um cavaquinho de lata de doce com cordas de arame. A família entendeu que a coisa era séria quando ele tratou o presente, não como um brinquedo, mas uma obsessão.
Ganhou dos pais outro cavaquinho de madeira com cordas de aço e uma vitrola em 78 rotações. Na falta de professor, um disco de WaldirAzevedo, mestre do cavaquinho, foi tocado compulsivamente com o teimoso aprendiz a tentar extrair suas notas. Com o primeiro instrumento de verdade debaixo do braço, mudou-se aos sete anos para a primeira casa de verdade, doada por um programa governamental contra os mocambos. Foi parar na Vila Mauricéia, no Ipsep, um então conjunto residencial de ressonância operária.
A destreza de Lalão ao cavaquinho logo chamou a atenção de um vizinho, que pediu autorização aos pais para levá-lo ao Gurilândia, um antigo programa de talentos precoces da Rádio Jornal. As apresentações ao vivo eram pagas com pacotes de café, doces e fubá. Quando terminava o programa, as crianças todas iam correr pelos corredores da rádio, mas eu ficava no estúdio
pra ver os violonistas. Tinha um camarim todo vermelho e eu entrava pra pegar algum violão e tentar repetir o que eles tinham feito. Levava muito esporro deles.
Na cabeça do músico prodígio, a troca para o instrumento maior e com mais cordas era como sair de um teco-teco para assumir o comando de um supersônico. Aos dez anos, ganhou o primeiro violão e já tinha uma trinca de ídolos do chorinho incomuns para um menino daquela idade: Dilermano Reis, Jacob do Bandolim e o professor Waldir Azevedo. Reproduzia os seus discos sem parar, sempre sozinho. Aos 14 já ganhava os primeiros trocados como músico e comprou uma lambreta. Concluiu que não precisava maisdo jato. Só de um violão.
A ascensão acústica tida como certa foi interrompida literalmente pela distorção irresistível da guitarra. No final dos anos 60, com a explosão da música americana e a proliferação dos bailes, as orquestras e bandas de cover de rock pipocaram e Lalão foi atraído pelo canto da sereia pop. Ainda adolescente, tocava em boates com autorização do juizado de menores. Era apenas o começo de décadas mergulhadas em shows de clubes, churrascarias e até em inferninhos como a finada Soparia.
Entre riffs e solos eletrificados de outros artistas, sempre que podia entrava na bolha de descompressão e tirava o violão da poeira para compor os chorinhos que vinham à cabeça. Toco guitarra por causa do dinheiro. Se eu fosse viver de violão tava passando fome até hoje. Nas festas, o espírito competitivo perdurava do seu jeito, chegando ao ponto do músico virar de costas para o público durante o solo clássico de Sultans Of Swing, da banda Dire Straits, apenas para que nenhum músico na platéia copiasse seus acordes. Não queria nem saber. Era uma meninice mesmo, diverte-se.
Uma meninice que perdura até a hoje nas brincadeiras, mas se mistura a um rigor quase matemático com horários de ensaios, duração de shows e pagamento de cachês. Ao menor sinal de transgressão, não hesita em guardar o instrumento e voltar pra casa. Se estiver tocando para um figurão e escutar uma conversa, não raro suspende a apresentação até o silêncio imperar. Eu gosto de competir. Se tiver outro cara tocando comigo, pode ter certeza que eu vou tocar pra massacrá-lo. Se cara toca umas músicas que eu vejo que ele não tocou legal, aí eu pego o violão e toco de volta (a mesma música).
Racine não gosta quando eu faço isso, diz, falando com reverência do amigo Racine Vieira, 58 anos, um médico e violonista que fez da sua cobertura no bairro de Parnamirim uma espécie de embaixada do chorinho no Recife. Ambos se conhecem desde a adolescência e, segundo algumas pessoas mais próximas, o otorrino é dos poucos capazes de ouvi-lo sem desafinar a paciência.
Discreto, o médico desconversa quando indagado sobre a personalidade do amigo, preferindo enaltecer o gigantismo musical dele. Ele tem uma concepção harmônica como poucas pessoas têm, elogia. Cuidadoso até nas analogias, Racine lança mão de uma frase do folclórico técnico de futebol João Saldanha, que costumava responder com bom-humor aos questionamentos sobre como administrar um jogador problemático. Ele dizia que o jogador era ótimo em campo, mas que se fosse pra casar com a filha dele era outra coisa. Com Lalão é mais ou menos isso, despista.
A presença do compositor nos encontros promovidos no apartamento de Racine pode até não causar frisson, mas raramente passa despercebida. Foi numa delas, há dez anos, que Lalão conheceu Yamandu Costa, o gaúcho boa-praça que assombrou o Brasil com seu violão de sete cordas. “Fiquei impressionado com as composições dele. Fiquei louco mesmo, diz ele, por telefone, do Rio de Janeiro. A empatia foi imediata e os choros e valsas do pernambucano entraram no repertório do fenômeno do violão Brasilafora e nas suas turnês internacionais. É um cara muito sensível. Parece um turrão, mas é uma manteiga. Os caras aí de Pernambuco ainda não tiveram a noção do que têm nas mãos.
Um ano depois, Yamandu desembarcou no Recife pra gravar o primeiro disco do novo amigo, que nunca foi lançado. Ao que parece, o homenageado não sentiu o golpe: Todo mundo gostou. Mas eu não gostei. Tinha feito 14 shows no carnaval e me botaram pra gravar numa quarta-feira de cinzas.
A despeito da primeira chance perdida, as composições de um tal Lalão circularam informalmente, tendo o violão de Yamandu como procurador. Numa roda de chorinho em 2006 em São Paulo, Luís Nassif perguntou ao violonista gaúcho quem era o autor da música que acabara de ouvir. Impressionado com a qualidade da composição, pediu o telefone do desconhecido e decidiu ligar, apesar das advertências sobre a personalidade arisca do pernambucano. A conversa demorou a fluir. Ele disse que estava aperreado, mas logo depois parecíamos velhos amigos.
Alguns meses depois, num carnaval em Recife, o jornalista e exímio bandolinista tramou um encontro musical na famosa cobertura de Racine. Naquele dia, lembro bem da cara de surpresa de Geraldo Azevedo. Acho que nem ele sabia quem era Lalão. Hoje, o cantor e autor de Dia Branco é patrão de Lalão, que toca guitarra na sua banda.Para Nassif, as composições e a história do violonista do Ibura remetem a uma santíssima trindade do violão: João Pernambuco, Canhoto da Paraíba e Garoto, sobretudo o primeiro. Lalão é a reprodução da saga do João Pernambuco. A diferença é que o primeiro foi morar no Rio numa época em que o pessoal do choro se conhecia. Diante da dificuldade, acabou virando professor. Lalão nem isso teve.
Lalão ganhou outra brecha para registrar a sua obra e desde o ano passado vem gravando aos poucos o seu segundo disco comcara de primeiro. Alessandro Soares, produtor cultural pernambucano radicado em Brasília e responsável pelo projeto, ouviu falar de Lalão pela primeira vez há mais de uma década através do violonista carioca Guinga. Tentou localizá-lo, sem sucesso, até que, oito anos depois, o fantasma Lalão reapareceu após uma conversa com Yamandu. Decidiu encontrá-lo a qualquer custo para concretizar o disco, que deve ser lançado em 2012.
A gravação não tem sido fácil por vários motivos, incluindo a famosa conjunção tempo e dinheiro. Os acordes das músicas, até então exclusivos da memória de Lalão, tiveram que ser transferidospro papel cifrado por outro músico, o que derivou na proposta de elaborar, futuramente, um songbook (livro de partituras). Me incomodaria fazer um disco pelo simples fato dele ter sido mestre de obras ou de ser uma pessoa pitoresca. O que importa é a relevância da obra dele, completa o produtor.
Lalão, que nunca teve um espetáculo ou show solo, procura colocar reconhecimento e sucesso em tons distintos. A fama não lhe parece agradável, talvez por nunca ter tido ou procurado. Mas demonstra mágoa por ter sido, segundo ele, preterido em eventos de choro na cidade. Aqui no Recife ninguém considerou meu violão.
As teorias de amigos e músicos sobre o seu ostracismo seguem próximas, mas não convergem totalmente. Ele não se enquadra nos mandamentos formais de uma pessoa que quer ter sucesso. É um pouco disperso com a carreira dele, aponta Alessandro Soares. Luís Nassif é mais enfático: Só há uma razão para ele não ter ficado conhecido no Brasil todo: o temperamento dele, cravou. Já Yamandu Costa solta um acorde mais manso e otimista: “A vida caminha as coisas para isso. As pessoas têm a mania de querer fazer sucesso. Com a obra magnífica que ele tem, isso é uma questão de tempo.
Bem menos habilidoso com a palavra, Lalão dá de ombros para a conversa e prefere exaltar o que já conquistou. Fala com orgulho da casa ampla de primeiro andar no Ibura; da situação financeira estável e do filho de 26 anos, que é sargento do Corpo de Bombeiros de Alagoas. Da relação com a atual mulher, Maria José, 41, diz conviver em harmonia só encontrada num braço com seis cordas. Eu não sei lá fora, mas aqui dentro ele é calmo, tranquilo. É um cara maravilhoso, reforça ela. Juram de pés juntos que nunca brigaram e, quando isso está prestes a acontecer, cada um dorme num andar diferente: ela em cima, sozinha; ele no térreo, com os
passarinhos barulhentos e o violão.
* André Duarte é jornalista.