África: não basta cantar “We are the world”
Os números são tão astronômicos quanto aterrorizantes. Cerca de 150 milhões de habitantes africanos não têm acesso à quantidade mínima de calorias diárias, sendo que, deste total, 23 milhões deverão morrer de fome.
Por Gilson Caroni Filho
Publicado 30/01/2012 20:08
No nordeste do continente, segundo levantamento da ONU, 10 mil crianças morrem mensalmente em decorrência da seca. Ou seja, o número de vítimas supera, e em muito, o número de mortos nos 14 anos de guerra no Vietnã.
Segundo o diretor-executivo do Programa Mundial de Alimentos da ONU, James Morris, “a escassez de alimento na África provoca a instabilidade política, desse modo, a fome é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência da pobreza. Além disso, é causa e conseqüência dos conflitos”. Segundo estudos do Instituto Internacional de Pesquisa em Alimentação nos próximos 20 anos o continente africano terá uma redução na produção de alimentos em cerca de 20%, fato desencadeado pelos conflitos internos.
A magnitude do drama costuma vir acompanhada de explicações que vão do crescimento demográfico desordenado à desertificação e conflitos étnicos. O que se busca ocultar é a responsabilidade de europeus e norte-americanos que, ao longo do tempo, mudaram radicalmente a estrutura de produção e consumo no continente africano, deixando como resultado a escassez, subnutrição e fome, com altos lucros para as grandes corporações.
Em verdade, estamos assistindo ao preço pago pela herança colonial e pela desorganização da produção agrícola provocada pelos complexos agroindustriais dos países ricos ocidentais. Em vários países, o cultivo intensivo de áreas com uma débil fertilidade acabou destruindo a camada de húmus. Com isso, regiões imensas se tornaram estéreis, não tanto pela falta de chuvas, que sempre foi escassa e irregular, mas pelo manejo totalmente predatório do solo.
Uma experiência promovida pelo colonialismo europeu não pode ser esquecida. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, os franceses resolveram investir no Mali, num momento em que o algodão e o amendoim entraram em crise no mercado mundial. O pequeno rebanho malinês foi rapidamente multiplicado. Após quatro ou cinco anos de bons resultados veio a seca. Os bois tiveram que se concentrar em áreas muito pequenas. O resultado foi que as milhares de cabeças aglomeradas em poucos poços de água acabaram com todo o pasto, comendo, inclusive, as raízes. Quando as chuvas voltaram, o solo era areia pura, o rebanho ficou reduzido a um sexto e o pasto nunca mais se recompôs. A política de terra arrasada sempre foi uma vantagem comparativa para europeus e estadunidenses.
A fome africana não pode ser reduzida a uma formulação malthusiana. Se o acelerado crescimento demográfico em algumas regiões influi no equilíbrio alimentar, não é a taxa de natalidade que produz o elevado número de subnutridos. As razões para a fome endêmica devem ser buscadas em estruturas agrárias moldadas no período colonial e “aperfeiçoadas” posteriormente para atender aos centros consumidores do Ocidente. Mas a danação do continente envolveu outros fatos.
Ainda há o legado da Guerra Fria. Na área político-econômica, as “guerras por procuração”, promovidas pelas superpotências na África, devastaram a economia, destruíram as já precárias redes de saúde pública e causaram grandes fluxos migratórios e fomes epidêmicas que contribuíram para a disseminação de moléstias infecto-contagiosas. Sarampo, cólera e malária, doenças que matam as crianças africanas, não serão erradicadas sem que se promova uma profunda mudança nas condições ambientais que favorecem sua instalação, aí incluída a ecologia social.
Redefinir a inserção da África exige uma reformulação completa da estrutura produtiva vigente no mundo capitalista. O problema da fome deixou de ser uma questão assistencialista para se tornar um ponto de inflexão em estruturas multisseculares. Não basta cantar “We are the world”. É preciso construir um mundo alternativo ao que aí está.
Fonte: Viomundo