Marie Curie: exceção em um mundo de mulheres invisíveis
Um século depois de premiada, Curie ainda é uma das poucas mulheres na lista do Nobel de ciências e está entre as quatro que mereceram o prêmio por um trabalho em química. “Escolha bem o marido se quiser ter uma boa carreira científica”, propôs a química Maria Vargas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em debate sobre o tema na Fapesp.
Publicado 09/01/2012 19:41
Acompanhe a seguir a reportagem de Maria Guimarães sobre o tema. A matéria integrou um caderno especial da revista Pesquisa Fapesp, dedicado ao Ano Internacional da Química (2011) e circulou na edição impressa de dezembro.
Ciência, palavra (pouco) feminina
Por Maria Guimarães*
Marie Curie, nascida na Polônia e radicada na França, foi a primeira mulher a ganhar o Nobel e até hoje é a única laureada em duas categorias do prêmio. O primeiro deles, em 1903, foi concedido em parceria com o marido, Pierre Curie, junto com Antoine Henri Becquerel, por estudos com radioatividade. Mas foi seu segundo Nobel que mereceu as celebrações como foco central do Ano Internacional da Química em 2011. Um século antes, Madame Curie ganhou sozinha o prêmio de Química pela descoberta do rádio e do polônio, dois elementos radioativos. Nada mais adequado, diante dessa homenagem, do que tratar dela e das mulheres na ciência no último dia do ciclo organizado pela Fapesp e pela Sociedade Brasileira de Química e divulgado por Pesquisa Fapesp todos os meses desde maio.
“A contribuição feminina na ciência é de um terço”, alertou a coordenadora, Marília Goulart, da Universidade Federal de Alagoas. “Como será daqui a 10 anos?” Para ela, a ciência requer paixão e não é uma questão de gênero. Mas é preciso políticas que favoreçam o equilíbrio entre cientista e mãe, uma divisão de papéis que ainda causa dificuldades às mulheres nessa carreira que exige dedicação absoluta. As palestras aconteceram no dia 9 de novembro e contaram com a química Maria Vargas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), a historiadora da ciência Ana Maria Alfonso-Goldfarb, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e o cientista social Gabriel Pugliese, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (veja o vídeo). Uma bancada dois terços feminina, invertendo a predominância na ciência.
Poucas ilustres
O olhar sobre o papel das mulheres cientistas prometido no título de Maria Vargas começou ali mesmo, dentro do auditório: Vanderlan Bolzani, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara e uma das organizadoras do ciclo de conferências na Fapesp, foi a primeira mulher a presidir a Sociedade Brasileira de Química, entre 2008 e 2010. Mas voltando no tempo, a pesquisadora da UFF fez questão de dar destaque a Clara Immerwahr, que em 1890 pôs os estudos à frente da proposta de casamento feita pelo químico Fritz Haber, conhecido pela síntese da amônia. Cursou química como ouvinte e foi a primeira mulher na Alemanha a ter o título de doutora, em 1900. No ano seguinte, porém, aceitou o casamento e, talvez sem saber, assinou o fim de sua carreira científica. Apesar de trabalhar com o marido, o nome de Clara nunca foi citado. O casamento representou também o fim da própria vida, de certa maneira: ela se opôs ao marido e ao país quanto à produção de armas químicas na Primeira Guerra Mundial, que considerava uma “perversão da ciência”.
Em protesto contra o papel de Haber na supervisão do primeiro ataque de gás na história militar, ela, acusada pelo marido de ser traidora da pátria, se suicidou em 1915, aos 45 anos. Uma mulher que poderia ter feito contribuições para a ciência, assim, acabou entrando para a história pela coragem de manifestar sua convicção pacifista sem ceder às pressões sociais e familiares.
Na história do Prêmio Nobel, 40 mulheres já foram laureadas: apenas quatro em química. A primeira foi Marie Curie, em 1911. Casada com o físico Pierre Curie desde 1895, os dois faziam parte do trabalho em colaboração e, juntos, descobriram que a pechblenda, um mineral descoberto por Becquerel, era rica em polônio e rádio, dois elementos mais radioativos que o urânio. A dedicação à vida de ciência, que ela conseguiu conciliar com a familiar, também custou caro a Marie. Em 1934 ela morreu de leucemia, como muita gente que trabalhava com química da radioatividade antes que se conhecessem os efeitos nocivos dessas substâncias.
Em seguida foi a vez no Nobel de sua filha Irène, que dividiu o prêmio com o marido (e antigo doutorando de Marie Curie), Frédéric Joliot, em 1935. Depois de Pierre e Marie Curie terem se destacado por estudos com a radioatividade natural, sua filha alcançou a láurea máxima da ciência revelando a radioatividade artificial, em que elementos que não teriam esse comportamento são induzidos a serem radioativos. Como a mãe, Irène não foi eleita para a Academia Francesa de Ciências – os respectivos maridos foram.
Outro destaque de Maria Vargas foi para a britânica nascida no Egito Dorothy Crowfoot Hodgkin, que se apaixonou pela química ao fazer um experimento de crescimento de cristais de sulfato de cobre na escola. Desenvolveu a paixão com amplo apoio dos pais, que lhe permitiram montar um laboratório no sótão de casa. Em 1945, por meio de estudos de cristalografia, ela determinou a estrutura química da penicilina, descoberta por Alexander Fleming 16 anos antes. Para transformar o fungo em medicamento antibiótico, que mais tarde veio a salvar milhões de vidas, era preciso sintetizar em laboratório a substância ativa. A descoberta a conduziu, aos 47 anos e já com três filhos, a tornar-se membro da Royal Society, a academia de ciências britânica.
Casada com Thomas Hodgkin, um idealista de esquerda, ela conseguiu o reconhecimento como pesquisadora e como mãe: foi dela a primeira licença-maternidade paga na Universidade de Oxford. Dorothy também determinou a estrutura da vitamina B12, trabalho que levou a várias aplicações médicas e lhe trouxe o Nobel em 1964.
Mais recentemente, em 2009, a israelense Ada Yonath, do Instituto Weizmann, foi a quarta ganhadora do Nobel de Química, por desvendar a estrutura do ribossomo, uma estrutura celular central na produção de proteínas. Entre as laureadas, ela é a única em que não há menção a casamento, por isso escapa à conclusão da palestrante Maria Vargas: “Escolha bem o marido se quiser ter uma boa carreira científica”.
Da cozinha ao laboratório
Ana Maria Goldfarb mergulhou na história até os registros da visão sobre características femininas na Grécia Antiga de Aristóteles e Ptolomeu: entre outras, ela listou fragilidade, doçura, covardia, volúpia, habilidade e argúcia. Estas duas últimas hoje parecem positivas, mas na época eram vistas como relacionadas ao conceito de techné, uma capacidade manual mais para a cozinha do que para o laboratório. De qualquer maneira, o laboratório químico antigo era repleto de caldeirões, por isso era território aberto às damas.
O quadro mudou no século XVII, quando a nova ciência mandou as mulheres de volta à cozinha. Mas algumas resistiram e continuaram suas pesquisas por meio de associação com homens. Foi o caso da irlandesa Lady Ranelagh, que estimulou o irmão Robert Boyle a estudar química em seu laboratório de destilação. A projeção pelos estudos químicos que entrou para a história da ciência foi toda dele, mas, de acordo com Ana Maria, a sombra da irmã transparece em todos os seus escritos.
A ciência superficial para salões teve destaque no século XVIII. Foi a época de atividade do casal Lavoisier, em que Antoine ficou eternizado com o justo título de criador da química moderna. Madame Lavoisier teve um papel menor, mas era poliglota e desenhava esquemas dos experimentos feitos pelo marido e pelos colegas. Permaneceu, porém, invisível, lamenta Ana Maria. “Ela precisava saber bastante de ciência para separar o que interessava registrar.”
No século XIX e no início do XX, a educação era por vezes vista como algo nocivo para a própria saúde das mulheres e para as funções de esposa e mãe que deveriam desempenhar. Mesmo assim, alguns trabalhos científicos eram desempenhados pelas mulheres, que teriam maior capacidade de concentração exatamente por terem a mente vazia de pensamentos e ideias, segundo declaração do físico britânico James Chadwick citada por Ana Maria.
Foi esse contexto que Marie Curie superou, mas sem conseguir realçar as demais mulheres de seu laboratório, que permaneceram entre as muitas “ilustres desconhecidas” da ciência. “Ela era um verdadeiro trator”, avaliou Ana Maria, “passava por cima do que fosse necessário passar, além de ser boa estrategista”. De outra maneira, teria permanecido ofuscada pelo marido.
Exceção relativa
Foi exatamente disso que tratou Gabriel Pugliese. A escolha de um bom parceiro, como no caso do casal Curie, pode ao mesmo tempo abrir caminhos e sombreá-los, ele mostrou. “Marie Curie teve sucesso como exceção na tradição de mulheres invisíveis”, disse. Segundo ele, o trabalho dela sobre a descoberta da radioatividade foi ignorado na Academia de Ciências até que o marido assumiu a coautoria. Só aí se iniciou a discussão sobre o tema, que veio a se revelar importante.
“Fazer parte do casal permitiu a Marie Curie o acesso ao mundo científico, mas também foi inviabilizador.” Para Pugliese, esse casal é um ilustre exemplo de como se via a química e a física: a primeira faria parte do campo do fazer, das habilidades manuais e portanto seria mais feminina, como já tinha mostrado Ana Maria Goldfarb. Já a física exigiria pensamento teórico, uma capacidade mais masculina. No que a radioatividade transcendeu a química e se aproximou da física, a descoberta foi abraçada por Pierre Curie e rendeu ao casal o Nobel. De Física.
Essa identificação da física e da química com os estereótipos de masculino e feminino ressalta o paradoxo do papel do casal para a ascensão da mulher a uma posição de destaque na produção de conhecimento. E é esse paradoxo que Pugliese destaca no livro que publicará em 2012, Sobre o caso Marie Curie. E que torna irônica, do ponto de vista histórico, a homenagem do Ano Internacional da Química a Marie Curie.
Fonte: revista Pesquisa Fapesp