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Cem anos: Redol criou o neorrealismo contra a censura fascista

A coragem inegociável e a criatividade para avançar na vida e na literatura apesar da truculência nazista fazem de António Alves Redol um dos grandes expoentes da luta comunista em Portugal. Além disso, foi um extraordinário e pródigo autor. Em dezembro de 2011, os camaradas portugueses comemoram seu centenário com filme que retrata vida e obra, além de muitas outras homenagens.

Por Christiane Marcondes*

Uma delas aconteceu nesta quarta (7) na Casa da Imprensa, articulada pelo Partido Comunista Português (PCP), precisamente no local onde ocorreu o velório do “grande escritor e cidadão exemplar”, como salientou o líder dos comunistas portugueses, Jerónimo de Sousa.
O secretário-geral do Partido Comunista Português enalteceu Redol como “figura maior da literatura portuguesa” e “escritor de dimensão internacional”, que sempre aliou à atividade literária “uma intensa e constante intervenção política, como resistente antifascista e militante comunista”.

A sala de assembleias da Casa de Imprensa encheu-se para ouvir o dirigente comunista falar do autor de Gaibéus, o primeiro romance neorrealista português, lançado em 1939, fato que qualificou como “verdadeiro ato de coragem”. E explicou por que, apresentando o cenário político da época:

“No nosso país, o processo de dominação fascista no Estado, concebido por Salazar, inspirado no fascismo italiano e no nazismo alemão, tinha acabado de ser concretizado, com a censura férrea, a proibição dos partidos políticos, a promulgação do famigerado Estatuto Nacional do Trabalho, a imposição da constituição fascista, a criação do Tribunal Militar Especial, da polícia política (então chamada PVDE), do campo de concentração do Tarrafal, da Legião Portuguesa, e de todo um vastíssimo conjunto de instrumentos repressivos. Isto, enquanto, lá fora, terminava a Guerra de Espanha com a vitória dos fascistas e Hitler dava início à 2ª Guerra Mundial e ao seu sonho de domínio do mundo”

Gaibéus nasceu quando a morte rondava

Não causa espanto, portanto, que em maio de 1965 Alves Redol tenha registrado num prefácio da reedição da citada obra: “Gaibéus nasceu quando muitos morriam por nós”. Disse mais: "Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem."
O romance Gaibéus é o ponto de partida da obra romanesca de Alves Redol. Mas é também o ponto de chegada de uma longa reflexão do autor sobre o significado e o papel da arte, o primeiro edifício do programa de uma literatura nova.

Dessa reflexão, surgiram uma série de artigos de Redol, publicados em jornais de Vila Franca de Xira, onde vivia – Vida Ribatejana (entre 1927 e 1934) e Mensageiro do Ribatejo (entre 1934 e 1940). Também inspirou o conteúdo de uma conferência sobre arte, proferida em Vila Franca em 1936.

Fiel ao seu ideário, Redol, antes de escrever Gaibéus, realizou um amplo trabalho de campo – deslocou-se repetidas vezes à lezíria, chegou mesmo a instalar-se no campo para recolher dados sobre o trabalho nos arrozais. Os seus blocos de apontamentos contêm numerosas indicações técnicas sobre o cultivo do arroz.

As próprias relações familiares lhe serviram de documento – o pai de Redol era oriundo da região de origem dos gaibéus. Hoje Gaibéus é comumente aceito como o romance que marca o aparecimento do neorrealismo em Portugal. Eis o mundo que Alves Redol nos apresenta no seu primeiro romance.

História simbólica do embate de duas diferentes mentalidades, a desunião entre gaibéus e rabezanos é um triste e profético paradigma das oposições, ainda hoje bem marcadas, entre os camponeses dos minifúndios e os dos latifúndios.

Bolsos vazios e uma garrafa de vinho do Porto

Alves Redol nasceu em Vila Franca de Xira, no dia 29 de Dezembro de 1911, filho de António Redol da Cruz, comerciante, e de Inocência Alves Redol. Frequentou o Colégio Arriaga, em Lisboa, onde concluiu o curso comercial.

Testemunha atenta da realidade à volta, cedo começou a conhecer o mundo dos gaibéus, dos avieiros, dos camponeses e dos pescadores da região. E, aos 15 anos, deu prova dessa atenção e das preocupações que o atormentavam num artigo publicado em Vida Ribatejana.

Eram os primeiros passos de um longo caminho que viriam a fazer de Redol o escritor que, como lembrou Jerónimo de Sousa, “levou para literatura os problemas dos trabalhadores, os seus anseios, as suas aspirações, as suas lutas”.

Dois anos depois daquele artigo, partiu para Luanda, onde chegou com “os bolsos vazios, uma garrafa de vinho do Porto na mão e uma grande vontade de vencer”, como ele próprio recordaria mais tarde. Mas não teve vida fácil em Angola, onde foi empregado de escritório, professor no ensino noturno, com salário “curto”, e colaborador da Vida Ribatejana, semanário para o qual continuou a escrever, mas sem recompensa financeira pelos artigos. Uma doença obrigou-o a voltar para casa.

Esporte, literatura e arte

De novo em Vila Franca de Xira, funda o Goal, semanário ribatejano de Desporto, Literatura e Arte, cujo primeiro número saiu no dia 11 de Janeiro de 1933. Tinha 22 anos e revelava já preocupações de natureza social e imensa vontade de intervir na realidade que o envolvia, sempre guiado pela ideia de encontrar soluções para os problemas e as injustiças que identificava.

Alguns anos mais tarde, já na década de 1940, acabaria por aderir ao PCP e Jerónimo de Sousa fez questão recordar esse período de “luta intensa e de intensa intervenção do Partido”, para qualificar a disposição de Alves Redol e para salientar que, enquanto militante, ele desenvolveu “grande e empenhada atividade, quer participando na organização local do Partido, quer dando o seu contributo para a construção das greves de 1943 e 1944 – na sequência das quais Soeiro Pereira Gomes é forçado a mergulhar na clandestinidade – quer, ainda na organização dos intelectuais comunistas”.

Nunca é demais recordar os célebres passeios de barco no Tejo, essa forma engenhosa de os intelectuais comunistas se encontrarem e reunirem, iludindo a vigilância da polícia fascista – passeios de que Redol é um dos principais organizadores, com Soeiro Pereira Gomes e António Dias Lourenço.

Alves Redol morreu em novembro de 1969, três meses antes de completar 57 anos, e o seu funeral, recordou o dirigente comunista, “constituiu uma impressionante manifestação do apreço, da admiração e da gratidão que lhe votaram os trabalhadores e o povo”.

BIBLIOGRAFIA

Romances
Gaibéus (1939)
Marés (1941)
Avieiros (1942)
Fanga (1943)
Anúncio (1945)
Porto Manco (1946)
Horizonte Cerrado (1949)
Os Homens e as Sombras (1951)
Vindima de Sangue (1953)
Olhos de Água (1954)
A Barca dos Sete Lemes (1958)
Uma Fenda na Muralha (1959)
Cavalo espantado (1960)
Barranco de Cegos (1961)
O Muro Branco (1966)
Os reinegros (1972)

Teatro
Maria Emília (1945)
Forja (1948)
O Destino Morreu de Repente (1967)
Fronteira Fechada (1972)

Contos
Nasci com passaporte de Turista (1940)
Espólio (1943)
Comboio das Seis (1959)
Noite Esquecida (1959)
Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos (1962)
Histórias Afluentes (1963)
Três Contos de Dentes (1968)

Literatura Infantil
Vida Mágica da Sementinha (1956)
A Flor Vai Ver o Mar (1968)
A Flor Vai Pescar Num Bote (1968)
Uma Flor Chamada Maria (1969)
Maria Flor Abre o Livro das Surpresas (1970)

*com informações de agências