Publicado 08/12/2011 10:50 | Editado 04/03/2020 16:30
Tomo a liberdade de resgatar a história da minha família, que na época no Brasil não podia se expressar e nem sequer viver com ideias democráticas. Foram momentos de muita tensão, entre o Estado Novo (1946) e a Ditadura Militar, nos anos de 1964 a 1968, e que ainda se estendeu até 1985. Com a criação da Comissão Nacional da Verdade, vai ser aberto o baú das injustiças contra o povo e a própria sociedade. Momento oportuno para colocar em pratos limpos tudo que aconteceu naquela época.
A veracidade dos fatos é a minha própria vida e a de minha família. Não temos documentos, mas temos fatos concretos de desrespeito e autoritarismo que ocorreram e ficaram para sempre na memória.
A vida do meu pai e todos os meus irmãos foi de tremenda luta pela sobrevivência, e os resquícios dessa época são grandes e deixaram muitas feridas abertas. Qual o perigo que oferece um trabalhador (meu pai era soldador), que só tentava organizar a classe que ocupava? Por que viver na clandestinidade um operário, por simplesmente pensar em uma sociedade mais justa e solidária? Por que um líder comunitário que procurava ajudar a sociedade por melhores condições de vida era perseguido? Como uma filha de um “sonhador” não poderia assumir um concurso público ou trabalhar numa empresa por causa do nome do pai?
Um homem que não podia usar sua própria identidade, porque não era bem recebido pela classe patronal e uma sociedade militarista atrasada. Lembro-me de histórias contadas pelo meu pai que teria levado um tiro de “raspão” no braço direito em um comício de Luís Carlos Prestes, na chamada “Coluna Prestes", no fim da década de 1930. Para não ser preso, ele fugia. Ele escrevia cartas para minha mãe em um papel em branco com limão. Para ler a carta, era preciso colocar o papel aparentemente branco sob a luz. Portanto, todo cuidado era pouco, para a sobrevivência. Contava, em forma de piada, acontecimentos verdadeiros, como, por exemplo, que todo sujo de carvão (para não ser reconhecido), a polícia federal chegou a perguntar a ele por ele próprio. E dizia: “sei lá quem é esse fdp” e pegando uma pá com carvão jogou pó no olho do policial. E assim, mais uma vez, fugiu e continuava vivendo na clandestinidade, sem praticamente identidade própria.
Lembro-me muito bem quando eu estava junto dele e Dom Helder Câmara, em 1963, antes de ir para Recife, pediu para ele não deixar cair o “Centro Maternal da Piedade” – local onde as mulheres lavavam as roupas para a sobrevivência e suas crianças ficavam no berçário. Lembro também quando ele contava que o então governador Virgílio Távora estava em uma reunião em Messejana e outras pessoas estavam falando mal de meu pai, e o governador perguntou a essas pessoas, “esse Aloísio é o da Piedade? Pois enquanto vocês estão falando mal dele aqui, ele está lá trabalhando pela comunidade”. Meu pai tinha uma ligação com a esposa do Virgílio, a Luiza Távora – ele a chamava de “Dona Zelinda” e conseguia tudo com ela para a comunidade.
Tenho uma irmã que estudou na Escola Normal Justiniano de Serpa na época em que alunos pularam o muro para não ser levados pela polícia. Daí ela não foi mais para a escola. Só após alguns anos, ela continuou a estudar no Colégio São José, onde terminou o Segundo Grau. Outro irmão foi depor na Polícia Federal, pois era do Centro de Estudantes Secundaristas do Ceará. Lá também quem participava era perseguido.
O lema de meu pai era “justiça, igualdade e fraternidade”. E por causa desse “projeto” a minha família sofreu perseguições, foi negado emprego a ele e a todos os irmãos mais velhos. E ele teve que trocar de profissão e passou a ser contabilista. Enfim, vivíamos de trabalhos diários para a sobrevivência. Eu poderia dizer que matar um leão por dia era fácil. O problema maior era conviver com as cobras.
Nessa luta diária, eu, com menos de dez anos de idade, tinha a preocupação de sobrevivência e, todos os dias, esperava meu pai trazer a notícia: se tinha conseguido dinheiro para comer no dia seguinte, pois, em muitos deles, não se tinha nem o necessário. Como dizia minha mãe, era “arroz e feijão na água e no sal, sem mistura”, pois emprego fixo era negado a toda família. Eu passei a ajudar meu pai nessa busca diária por dinheiro a partir dos 12 anos. Tinha uma irmã que cobria botões. Outros faziam serviços de escrita fiscal para mercearias. Outro irmão trabalhava como pintor numa empresa de um primo da minha mãe. Teve época em que meu pai devia tanto, que tomaram até o “ganha pão” dele, que era uma máquina de escrever e outra de calcular.
Eu, como filho mais novo, vi os meus irmãos serem privados de emprego, de falar, de gritar por condições mínimas de saúde e de sobrevivência. Com um ano de idade perdi a visão do olho direito. Outro irmão se arrastava pelo chão – não andava – era paralítico de nascença e morreu com 18 anos. Uma irmã mais nova morreu ainda. Vi minha irmã mais velha ser demitida e o dinheiro, guardado em casa, após alguns anos (talvez 15 anos), quando precisou, não valia mais nada, pois foi trocada a moeda do país. Outra irmã fugiu de casa para casar.
A história do Brasil tem uma dívida com a sociedade que precisa, pelo menos, conhecer a verdade, o que aconteceu com o povo que muito lutou, e não tinha sequer identidade própria.
Como foi difícil a caminhada até aqui. Ficaram os frutos da organização de classe, trabalhos comunitários, luta por justiça e melhores condições de vida e de saúde. Posso dizer que a luta continua, mas pelo menos hoje temos a liberdade de expressar as opiniões, mesmo sabendo que ainda reinam as injustiças sociais e que o trabalho é desvalorizado pelos empresários. Os lucros ainda são concentrados nas mãos dos patrões e os trabalhadores ainda não estão conscientes de que é o trabalho que gera a riqueza.
Que este Brasil, de hoje e do futuro, aprenda com a história. Que os fatos sejam revelados, para que nunca mais voltem governos autoritários. E que se possa apontar o erro, falar e expressar com liberdade. Posso dizer que, na ditadura, perdeu-se o brilho e a graça, diante da violência e da falta de Deus nos corações das pessoas, acreditando que a Comissão da Verdade revelará ao povo brasileiro a memória oculta nas sombras do regime de exceção.
* Mirton Peixoto é Diretor de Ação Sindical do Sindjorce e do DIEESE-CE; ministro extraordinário da Sagrada Comunhão da paróquia Bom Jesus dos Aflitos (Parangaba) e fundador da comunidade Santo Expedito (Maraponga).
Fonte: Sindjorce