De Ernestito ao homem do século
Em 1933, no pequeno município de Alta Garcia, província de Córdoba na Argentina, Carlos “Calica” Ferrer Zorrilla de 4 anos foi apresentado por seus pais a um amigo de 5 que marcaria para sempre a sua vida, e mais tarde a história de toda humanidade: Ernesto Guevara de La Serna, ou apenas Ernestito como era chamado.
Publicado 02/12/2011 16:40
estilingada na testa (Calica está ao lado) / Foto: Reprodução
Na conservadora e provinciana cidade de Alta Garcia, além da asma, os Guevara e os Ferrer tornaram-se próximos por compartilharem visões progressistas sobre diferentes assuntos e simpatizar ideologicamente com o socialismo clássico. Um exemplo das posições que compartilhavam, estava relacionada à situação da Espanha na década de 1930. Ambas as famílias declaravam apoio incondicional à nova República que havia se instalado no país, que logo se explodiria em uma guerra civil e por, consequência, na ditadura fascista de Francisco Franco.
A viagem, a segunda pelo continente de Ernesto, acabaria transformando o amigo de Calica no Comandante Che Guevara. “Mas quando viajamos, Ernesto não sabe que vai chegar a ser Che, isso é uma coisa que é preciso ter cuidado para não super dimensioná-lo. Para não tirá-lo da realidade. Che é um homem de carne e osso. E quando era criança, adolescente e jovem fez as travessuras que faz qualquer ser humano”.
Na formação de Che, Calica destaca uma pessoa importante. “Eu digo que a sua melhor preparação política é a partir do momento em que ele conhece a sua primeira mulher, Hilda Gadea. Uma mulher que era intelectualmente muito preparada, que realmente o colocou no marxismo. A partir daí, Ernesto passa a perceber qual pode ser a forma de encarar as coisas para começar o que tinha de ser feito imediatamente: reunir doze tipos para fazer uma revolução”.
Ecos
Quarenta e quatro anos depois de sua morte, ainda parece impossível dimensionar o personagem histórico Ernesto “Che” Guevara. Calica cita um outro amigo pessoal de Guevara, o ex-ministro cubano Orlando Borrego, para ajudar a sintetizar a falta de proporção. “A biografia de Che ainda não está escrita. Todas as boas verdades vão se somando pra que ela seja escrita. É Fantástico imaginar que a vida de um homem de 39 anos, depois de tantas coisas escritas, ainda não se pode condensar o que foi”.
Na visão do amigo, quando triunfa a revolução, Che se consolida como a figura forte, jovem e revolucionária. “É importante destacar a idade que tinha. Aos 32 anos era o primeiro comandante. Depois foi Ministro. Instituiu fábricas, colégios, foi educador. Foi embaixador itinerante da revolução”.
Uma outra definição lembrada por Calica é a do comandante cubano. “Em poucas palavras, Fidel Castro definiu Che como um personagem que soube despertar uma chama de insurgência e de justiça dos latino-americanos e que depois se recorre a outras lugares”.
Carne, osso e mito
Calica carrega consigo as duas visões de Che, uma de seu amigo e a outra do mito. “É uma questão de evolução de um amigo que cresce, que cresce, que cresce. E que mesmo depois de morto se engrandece ainda mais. Por um lado, me sinto feliz que assim seja. Dei-me conta que seu exemplo e sua morte tiveram um destino útil para humanidade.”
Para Calica, mesmo os seus opositores, em sua maioria e de alguma forma, respeitam o revolucionário. “Das pessoas, digamos mais indiferentes, em geral pelo menos reconhecem em Che um homem muito valente, que deu sua vida por um ideal. Já os que fazem uma crítica implacável como a que sai da cabeça de Mário Vargas Llosa, que por exemplo vai ao jornal mais conservador da Argentina, La Nación, e publica disparates ridículos, creio que estes não tenham efeito. É tão contundente o peso de Che, que para seus detratores não há muitos argumentos”.
Além de escritor, Calica se dedica a estudar e divulgar a memória do herói da Revolução Cubana. Por alguns anos, durante as décadas de 1970,1980 e 1990, a imagem de Che esteve “apagada” em seu país de origem. Calica explica que anos de ditadura seguido de anos do governo Carlos Menem foram fundamentais para este quase lapso de memória “Primeiro uma ditadura. Depois o medo que ela deixou de a qualquer momento um milico se levantar e novamente assassinar mais 30 mil pessoas. Então as pessoas não falavam muito de Che. Por fim, é preciso entender que os 10 anos de [Carlos] Menem, se não foram tão trágicos, foram tão ruins quanto a ditadura. Vendeu-se e privatizou-se tudo. Não era um ambiente propício para pensar que Che poderia ter mais homenagens.”
Apesar das ditaduras e dos governos liberais, Calica entende que na América Latina de hoje a luta do revolucionário continua tendo reflexos. “Por exemplo, quando falei com Che sobre ir à Bolívia disse: ‘Não! Bolívia, não’. Porque ali observei um indígena manso, castigado. E ele pensou o contrário. E a prova está que, pela primeira vez na história da Bolívia, à frente está um indígena de esquerda. Que pode não ser o ideal, mas que é parte de todo um processo que está ocorrendo na América. Incluindo Venezuela, Equador…”.
Das tantas produções, “Diários de Motocicleta” de Walter Salles e “Che” partes 1 e 2 de Steven Soderbergh são citados por Calica como bons filmes a respeito do amigo. No entanto, ele diz que não são poucas as vezes que escuta, lê e vê bobagens. “Tenho escutado cada mentira, que muitas vezes tenho que intervir.”
Com orgulho e saudade, Calica fala do amigo. Mas se perguntado sobre uma autobiografia sua ele responde “Veja bem, se você conhecesse um amigo de Karl Marx, iria querer saber sobre Marx. Não sobre o seu amigo”.
Serviço
De Ernesto a Che – A segunda e última viagem de Guevara pela América Latina
Autor: Carlos "Calica" Ferrer
Editora: Planeta
Páginas: 238
Fonte: Brasil de Fato