Filme de Cacá Diegues mostra um Brasil com esperança no futuro
“O Maior Amor do Mundo” apresenta o Brasil – encenado em favela do Rio de Janeiro – com seus problemas contemporâneos, conseqüências de toda uma história de desleixo da elite para com o país e seu povo.
Por Marcos Aurélio Ruy*
Publicado 01/12/2011 14:56
Com uma filmagem sombria — as cenas transcorrem quase todas num plano escuro, como escura é a visão que a elite tem sobre o povo deste lugar –, a obra de Diegues retrata um país em profundas transformações, assim como o protagonista Antonio (José Wilker, com atuação brilhante) vai se transformando ao ter contato com a realidade dessas pessoas pobres, faveladas, negras na maioria.
Como remanescente do Cinema Novo, Diegues, sempre procurou retratar o país sem retoques em seus filmes. Em “O Maior Amor do Mundo”, o diretor chega a ser ácido em sua crítica à elite brasileira, uma elite que se apresenta distante dos mais pobres, com se vivesse em outro país, supostamente europeu, ou pior, hoje em dia a elite está mais voltada para Miami. Por isso, o próprio cineasta afirmou que usou de cenas externas para a obra ter maior verossimilhança.
A narrativa de “O Maior Amor do Mundo” traz a vida de um cientista brasileiro que nasceu em 1950, no dia 16 de julho, justamente quando o Brasil perdeu aquele jogo fatídico contra o Uruguai na final da Copa do Mundo, em pleno Maracanã. Aí já começa a fina ironia de Cacá Diegues, porque é impossível que um mau resultado num jogo de futebol, mesmo em final de Copa do Mundo, possa alterar a vida de um país. Mesmo assim esse jogo atingiu nosso protagonista em cheio na figura de seu pai (primeiro Marco Ricca, excelente, depois Sérgio Britto, dispensa comentários) que torturava o filho adotivo em cada aniversário de modo a causar-lhe ódio.
O filme apresenta uma construção psicológica dos personagens fundamental para a trama e mostra que o individual e o social caminham lado a lado de maneira dialética, porque somos fruto do relacionamento, interpretamos os fatos que se nos relacionam, mas também somos frutos desses fatos que alteram nossas vidas, tanto que o Antonio vai se transformando com o desenrolar da trama, de acordo com o conhecimento que vai adquirindo da realidade brasileira e de seu povo, da qual se mantinha distante como toda elite sempre se manteve das questões relacionadas ao país e a seu povo.
Antonio torna-se importante astrofísico e professor universitário nos Estados Unidos e retorna ao país após décadas de ausência para receber uma condecoração do governo brasileiro, em 2006, justamente quando o ex-presidente Lula encerrava seu primeiro mandato e disputava eleição para o segundo. Apenas esse fato já mostra uma mudança no Brasil, porque o jovem estudante saiu do país para estudar como bolsista no exterior em função de não dar valor aos cientistas por aqui. O filme mostra como o governo militar abortou o progresso e se submeteu aos ditames imperialistas, cedendo às suas vontades.
A história como pano de fundo
Mas o filme já começa em 1950, ano em que Getúlio Vargas volta ao poder através do voto e com sua eleição retoma o poder um projeto nacionalista de desenvolvimento, até hoje muito criticado pelos que defendem a submissão do país aos interesses externos. Ao mesmo tempo o astrofísico que sabia ter apenas uma semana de vida, Isa seu retorno ao país para um acerto de contas com o passado após saber, em conversa com seu egoísta e ranzinza pai que sua mãe biológica não era desconhecida de toda a família como se pensava e o seu pai adotivo era também seu pai biológico. Aí então, movido pela curiosidade de conhecer o passado para entender o presente, vai atrás de informação e entra em cena a favela, onde ele nasceu.
Além dessa busca, o filme mostra o funcionamento fragmentário e seletivo de nossa memória, através de flashes e da brincadeira de criança de tapar um olho e depois o outro e com isso mudar o ângulo de visão das coisas. Diegues brinca com isso, enfocando as cenas sempre de ângulos diferentes com muito humor. Nessas lembranças Antonio vê seu pai torturando-o em seu aniversário pela derrota do Brasil no famoso jogo, onde muita gente viu o que passou a se chamar de “complexo de vira-lata” do brasileiro após essa derrota. “O Maior Amor do Mundo” mostra que esse tal complexo foi construído ideologicamente em todos os tempos para impedir que o povo brasileiro criasse autoestima suficiente para acreditar em si mesmo e assim pudesse querer mudar as coisas.
O filme mostra também a relação de classes no Brasil como perversa e preconceituosa. Mostra historicamente o racismo brasileiro claramente estampado em suas cenas. Porque aqui não houve segregacionismo institucional, mas de modo explícito criou-se uma segregação culturalmente construída.
A cena em que Antonio leva Luciana (Taís Araújo, com excelente atuação) para jantar no hotel onde estava hospedado é didática. Ao chegar ao recinto com todo seu luxo, a moça sente-se constrangida e se espanta com os olhares espantados dos presentes ao verem uma negra aparecer naquele restaurante não como garçonete, mas como cliente. Linda cena. Diegues mostra com uma transparência exuberante as manifestações de racismo inclusive entre os mais pobres, porque o racismo brasileiro vem desde a escravidão e sua construção ideológica ainda persiste, apesar das enormes mudanças dos últimos anos. A cena onde Hugo Carvana (impagável), personagem cego narra suas peripécias com uma personagem e diz “só depois descobri que ela era preta”.
Passado, presente, futuro
Na busca de suas raízes, o protagonista encontra um país desconhecido em franca transformação, que ele só percebe ao tomar contato com essa realidade. As mudanças ficam evidentes ao ver que Luciana, negra e favelada, faz curso universitário, coisa impensada tempos atrás. Daí vê-se a forte contestação dos setores privilegiados da sociedade em relação ao sistema de política afirmativa em discussão para ser instaurada nas universidades brasileiras. E como o personagem vai adquirindo consciência no desenvolvimento da narrativa, o enquadramento do filme se adequa a essa transformação do personagem para mostrar que o país está mudando, mas tem os muito que caminhar para atingirmos o objetivo de uma nação livre da miséria e de tanta desigualdade. A certa altura, Antonio promete deixar sua herança para a avó do menino (Léa Garcia), já demonstrando uma nova visão da realidade e a vontade de mudá-la é quando a avó retruca: “você acha que eles vão deixar seu dinheiro para uma preta velha como eu?”
Diegues mostra também que o Brasil está mudando, mas tem muito que avançar para acabar com a pobreza ainda existente. O protagonista encontra o menino apelidado de Mosca (Sérgio Malheiros) cooptado pelo tráfico de drogas, como muitos dos jovens e crianças da favela.
Trágica cooptação que dá abrigo e salário, mas também está matando nossas crianças e jovens, sem piedade. Numa conversa com Mosca, Antonio diz: “eu poderia ser você”, como se invertesse o raciocínio de você poderia ser eu, se tivesse uma chance na vida. Ele fala isso quando descobre que suja mãe era favelada e negra, então ele próprio um miscigenado, como a maioria dos brasileiros.
A mudança que se vai operando nele começa a transparecer, quando ele promete ao garoto que lhe deixaria sua herança, suficiente pra ele largar aquela vida e estudar. Mais uma vez a educação aparece como uma peça importante pra mudar o país. É quando o menino diz que nunca foi à escola. Fica claro que muita coisa ainda tem que mudar no Brasil, apesar das enormes transformações por que estamos passando desde 2003.
Em sua busca, Antonio encontra o amor na personagem de Taís Araújo, por isso o título “O Maior Amor do Mundo”, onde tudo se mistura: o social com o individual, o regional com o universal, a vida com a morte, o amor com o ódio. A luta de classes está presente em todos os momentos e o filme mostra a formação do país na construção de uma identidade nacional, agora com os trabalhadores participando da trama, não mais como meros coadjuvantes. Nesse fato reside o humor e a esperança de Diegues no futuro do país e na desconstrução da dicotomia da elite em relação à nação brasileira. Uma elite que se sente acima até mesmo de sua própria decadência na atual crise por que passa o mundo capitalista.
Ponto forte da película também é a trilha sonora ao cargo de Chico Buarque (dispensa comentários), que denota cada cena, no passo a passo da história. Segundo o próprio Diegues a escolha de Chico se deu porque esse filme “pedira ter sido escrito pelo Chico” e poderia mesmo. A música permeia toda a trama em total sincronismo. A canção do final “Sempre” diz: “Eu contemplava sempre/Feito um gato aos pés da dona/Mesmo em sonho estive atento/Para poder lembrar-te sempre/Como olhando o firmamento/Vejo estrelas que já foram/Noite afora para sempre/O teu corpo em movimento/Os teus lábios em flagrante/O teu riso, o teu silêncio/Serão meus ainda e sempre/Dura a vida alguns instantes/Porém mais do que bastantes/Quando cada instante é sempre”.
A obra de Cacá Diegues é um soco na cara de grande parte de nossa elite voltada para si mesma, antinacional, antipopular e submissa ao imperialismo. Exatamente por isso, o filme foi praticamente ignorado pela mídia, com uma crítica colocando-o como um dos “dez piores filmes” brasileiros, justamente no que essa obra tem de melhor: estampar a elite que temos burra e egoísta, sem um pingo de piedade. E apesar de “O Maior Amor do Mundo” ter cinco anos vale a procura para assistir essa obra fundamental da cinematografia nacional. Mostra ainda que o cinema brasileiro renasceu forte, mesmo após a tragédia Collor de Mello. Então, vamos encher de pedidos para que a TV exiba essa obra fundamental do cinema nacional.
Trailer do filme:
*Colaborador do Vermelho