Sandra Helena Souza: Os olhos de Kadhafi
O que nos faz humanos? Você pensa que é humano? Então, sinceramente, o que sentiu vendo o assassinato/linchamento de Kadhafi? E quando soube/viu que ele foi abusado sexualmente antes de morrer?
Publicado 02/11/2011 11:44 | Editado 04/03/2020 16:30
Tentei escapar desse tema, mas ando acossada pela morte e a coincidência desse texto público no dia dos mortos me obriga a enfrentá-lo.
O que nos faz humanos? Você pensa que é humano? Então, sinceramente, o que sentiu vendo o assassinato/linchamento de Kadhafi? E quando soube/viu que ele foi abusado sexualmente antes de morrer? Costuma-se dizer que o tratamento digno dado aos criminosos a quem nossos mais arcaicos instintos recomendam a crueldade é sinal claro da civilidade que se impõe contra a barbárie, ainda que repousando sobre ela. Foi assim que aprendi, foi assim que me constituí e isso não por minha própria conta, mas pelos mais nobres valores herdados da assim chamada civilização ocidental, de matriz judaico-cristã.
O iluminismo laicizou as melhores pretensões das grandes religiões mundiais e as tornou princípios soberanos, consolidando o que nos acostumamos a chamar de humanidade, em sentido pleno, no afã de nos destacarmos da animalidade infra-humana. Sinceramente, como muitos, acreditei nisso. Por isso não consigo me livrar das apavorantes imagens a que fomos expostos, e continuamos sendo, à exaustão do assassinato festivo de um ser humano.
Não preciso mais falar dos aspectos políticos que envolvem essa morte. Importa-me mais compreender o que somos, ao reagirmos tão docilmente diante disso, quando bem sabemos o que está em jogo. Aqui em nosso Estado, recebemos a oferta diária pela televisão de corpos mutilados, afogados, decompostos, torturados, associados aos gritos lancinantes de parentes, tudo isso apresentado como ornamento da liberdade de expressão e de garantia de direitos. Expressões pérfidas, perversas, de engravatados travestidos de defensores da cidadania e intrépidos guardiões da ordem pública. Uma mentira torpe, uma ilegalidade, uma hipocrisia empresarial de resultados funestos, que cinicamente aceitamos. Mas somos bem seletivos nessa aceitação. Designamos para alguns dentre nós essa condição de párias, completamente excluídos das mais ínfimas noções de dignidade.
A morte de Kadhafi, ao vivo, foi uma espécie de programa policial em clímax, em escala global. Já estamos anestesiados. Mas assim como os olhos mortos do Che, a reza interrompida pela corda no pescoço de Saddam Hussein, o espetáculo obscuro da morte de Bin Laden, cena filtrada pelos olhos da cúpula americana, são os olhos aterrorizados de Kadhafi que me interrogam, sem cessar. Fomos expostos sem peias a uma cena primária. Adultos, crianças, todos. Uma cena que não nos deixa espaço para a salvífica elaboração da imaginação e construção de narrativas, assim como podemos fazê-lo em relação aos mortos das torres gêmeas. Ali fomos poupados, em nome da “dignidade humana” e da esperança. Que pureza.
Você que me lê deve acreditar-se ao abrigo dessa podridão tornada entretenimento, catártico, pois portador de direitos e cidadão de bem. Pois sim. Volto então a perguntar: o que você sentiu ao ver aquelas imagens se é mesmo que sentiu algo. Responda diante de seu espelho, e não espere por Deus, o que nunca responde. O trabalho é nosso, apenas nosso. Os mortos agradecem.
Sandra Helena de Souza é Professora de Filosofia e Ética da Universidade de Fortaleza (UNIFOR)