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Depois do fim, recomeçar é preciso

Mulheres contam de que maneira retomaram suas vidas depois de longos períodos vivendo sob a violência entre quatro paredes. Infelizmente, elas são minoria. Só no país, uma mulher é assassinada a cada duas horas. A maior parte por ex-maridos e parentes.

Marlene rompeu com a violência

Maria Marlene Monteiro Araújo, 54 anos, é empresária. Maria de Lourdes Ferreira dos Santos, 48, se especializou em cozinhar. Sara Teixeira, 51, aprendeu há dois anos e meio a fazer trabalhos artesanais. Além da mesma faixa etária, as três têm algo em comum: viveram uma boa parte de suas vidas de cabeça baixa, escondidas, agredidas e humilhadas por seus companheiros. Hoje, elas dão nome, endereço e mostram a cara.

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“Eu não me arrumava, não tinha mais autoestima. Me olhava no espelho e só conseguia ver a Marlene que ele (o ex-marido) dizia que eu era: aquela que saia com todos os homens e que era a culpada pela morte do meu pai. Quando cheguei aqui (na Capital), em 1980, vim porque fiquei marcada onde nasci, Poção (PE). Tinha saído com um rapaz e acabei falada na cidade. No dia seguinte que cheguei, recebi a notícia da morte de meu pai. Me culpei durante muitos anos. Meu ex-marido sabia e usava isso para me manter dominada”, lembrou Marlene.

Ela deixou um bilhete de despedida para a família e partiu para a cidade grande. Passado alguns meses, seu pai acabou morrendo em um acidente de cavalo. Durante muito tempo, ela acreditou que tinha culpa na morte do progenitor. Atualmente, Marlene, que sofreu violência psicológica de seu marido durante os 20 anos que permaneceu casada, afirma ter superado essa questão e mantém bom relacionamento com os familiares.

Para dar a volta por cima, por indicação de amiga, procurou em 2001 a Casa Beth Lobo, centro de referência em atendimento à mulher vítima de violência doméstica de Diadema, no ABCD Paulista, onde foi atendida durante dois anos.

“Quando comecei a recuperar minha essência, depois de um ano, ainda estava casada. Foi então que ele arquitetou meu fim. Me fez largar o trabalho para entrar com ele em uma sociedade numa empresa de prestação de serviços. Passei tudo para o nome dele. Meses depois, foi embora levando todo o dinheiro, tudo o que eu tinha, até meu filho. Ficamos eu e minha outra filha com R$ 176 na conta”, contou Marlene, que retomou o trabalho de vendedora de perfumes importados e criou grife de bolsa com marca que leva seu nome. Para atingir a superação, atribui o apoio que recebeu de amigos e dos filhos.

Lourdes mora atualmente em São Matheus, onde vivia quando conheceu seu ex-marido em 1998. Baiana de Itapé, já tinha sido casada durante oito anos. Ela trabalhava como vendedora em um depósito de gás para sustentar os três filhos do primeiro casamento. Ele, motorista. Depois de um ano de namoro, engravidou e foram morar juntos em Mauá. Tudo ia muito bem até ser agredida pela primeira vez, ainda grávida (de sete meses). “Me deu tapas, socos e até tentou chutar a barriga. Chamei a polícia, mas acabei não falando nada. Ele me ameaçou, apontando uma faca para mim. Se eu contasse me matava”, declarou Lourdes.

Os anos se passaram e as cenas violentas se repetiram. O marido saia com outras mulheres, bebia e era usuário de drogas. “Foi numa quinta-feira de madrugada, depois de apanhar durante muitas horas seguidas, que decidi procurar um vizinho, que coincidentemente conhecia uma pessoa que trabalhava em uma casa-abrigo (para mulheres ameaçadas de morte). Aproveitei que ele dormiu, bêbado, peguei meus filhos, documentos e fui embora”, relatou a baiana que, dias depois de ter se alojado na casa, em 2002, descobriu que estava grávida do segundo filho do casal. Lourdes ganhou neném e passou um ano no abrigo. Com o tempo, arranjou trabalho, chegando a atuar como cozinheira na casa-abrigo durante quatro anos e meio.

"Aprendi muito nesse período. Vi a situação de outras e isso me fortaleceu. Enxerguei que é possível retomar a vida sem olhar para trás", disse a cozinheira que atualmente está desempregada e mora com os filhos, que ajudam a manter a casa. Sobre um futuro relacionamento ela é bem objetiva: "Homem machão não tem vez comigo. Estou sozinha e feliz. Se aparecer alguém precisa me respeitar".

Marlene, está sozinha e tem consciência de que é consequência do que viveu. "Vivo lendo livros e vou em palestras de autoajuda. Estou em busca do autoconhecimento", reconheceu a empresária. Mesmo assim, se considera uma vencedora.

A assistente social Marilda Lemos, especialista na questão, ressaltou que são muitas as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para quebrar o ciclo da violência doméstica. "É um processo longo. Ora avança, ora retrocede. Não há um tempo médio. os obstáculos são tão subjetivos, como a cultura machista que impõe a ela a obrigação de se casar e permanecer assim. O que acaba impedindo-a de deixar a relação, mesmo agredida", explicou Lemos.

No campo objetivo, ela explicou que os serviços públicos que existem precisam funcionar para não criar a sensação de abandono e frustração. “Se algum desses serviços não funcionar, ela passa a desacreditar numa saída, o que acaba interrompendo todo o processo. É preciso suporte e criar programas de geração de renda para ultrapassar a barreira financeira", concluiu Lemos, apontando outra causa para a permanência da mulher em relações violentas.

Já a assistente social Elza Maria Campos, coordenadora da União Brasileira de Mulheres (UBM), destacou que é preciso reconhecer a luta histórica do movimento feminista e de mulheres na conquista das políticas públicas, em especial a Lei Maria da Penha.

“Mas ainda temos um bom caminho para percorrer. Garantir que os serviços tenham estrutura e equipe preparada para atendimento continuado, humanizado e de boa qualidade às mulheres que passam por um período de busca de autonomia e de libertação da condição de subalternizada, de oprimida, de violência”, afirmou Elza Campos.

Além disso, é preciso um olhar público para as questões de gênero . “A violência contra a mulher, como violência de gênero, não pode continuar sendo um problema ‘privado’ das mulheres. Tem que ser tratado como uma questão ‘pública’ e, portanto, resolvida no campo da política, devendo ser enfrentada através de políticas públicas implementadas pelo Estado”, ponderou.

Casada

Sara Teixeira, 51, permanece casada e feliz ao lado do homem que durante quase 28 anos a agrediu. Desde 2008, quando Sara procurou o centro de referência de São Bernardo, o marido que antes bebia e a agredia verbalmente, modificou-se. "Nunca pensava em me separar. Aprendi com minha mãe que casamento é para sempre. Mas cheguei ao ponto de procurar meus direitos para me separar. Hoje, ele me respeita e até me dá o dinheiro que ganha nos bicos que faz", contou Sara, que comemora 31 anos de casamento.


crédito: Correio de Notícias

Da família, sua irmã C.T. , 42, é a mais traumatizada. Ela apanhou duas vezes do cunhado. "Sempre tive um gênio difícil, reconheço. Mas, depois da primeira vez que apanhei dele, em 1996, fiquei pior, mais retraída e com dificuldade de me comunicar. Na segunda vez, em outubro de 2008, ele me espancou. Aí houve pressão para ela (Sara) procurar a delegacia", recordou a irmã, com muita emoção.

Sara procurou uma delegacia e o serviço especializado de sua cidade, que tomou conhecimento sobre C., que atualmente se declara em pleno processo de “libertação” por meio de uma oficina de dança que faz há seis meses. "Conseguimos romper o silêncio que havia por causa da violência. Falo abertamente com todos ", relatou Sara.

Deborah Moreira, da redação do Vermelho