Pedro J. Bondaczuk: Quando o intelecto alia-se à paixão
A importância de um livro não se mede, apenas, pelo tema que aborda. E nem pela forma com que o assunto é tratado. Também a sua extensão não é, nem de longe, relevante, por não se tratar de parâmetro confiável de avaliação.
Por Pedro J. Bondaczuk
Publicado 19/09/2011 14:31
Há volumosíssimos calhamaços, de mil páginas ou mais que, quando submetidos à criteriosa análise, se revelam vazios de ideias e desérticos em termos de pensamentos e sentimentos. Não sensibilizam, nada acrescentam e raramente o leitor consegue completar sua leitura. Não passam de perdulária verborragia.
Não que conteúdo e forma não sejam importantes. São mais do que isso: fundamentais. Mas a extensão não é. Os bons escritores, aqueles que sobrepujam o tempo e o esquecimento, dão seus recados em poucas palavras, em pouco mais que uma centena de páginas, se tanto. São, além de criativos e peritos no domínio da técnica de redação, objetivos. Põem, sem rodeios, logo de cara, o “dedo na ferida” a que se propõem a expor.
Parodiando o dramaturgo Bertholt Brecht, em uma de suas tantas peças teatrais que ainda rodam mundo, encenada nos mais requintados palcos planeta afora, pode-se afirmar, categoricamente: “Há livros com conteúdo sólido e profundo e são bons. Há outros que além do conteúdo, têm forma correta, precisa e impecável, e são melhores. Há os que além do conteúdo e da forma, primam pela fluência e pela clareza e são muito bons. Mas há os que, além de tudo isso, são escritos com paixão. Estes são imprescindíveis”.
Esse é o caso específico do excelente romance de Urariano Mota, Soledad no Recife (Boitempo Editorial) – obra ficcional, posto que baseada em fatos e personagens reais – que, por reunir todas essas características simultaneamente, tem que constar das mais refinadas e preciosas bibliotecas de pessoas inteligentes, bem-informadas, cultas e, sobretudo, sensíveis, combinação que, convenhamos, é das mais raras.
Creiam-me, não exagero. Se exagero houver na minha constatação, este é para menos, dada minha relativa inabilidade para expressar-me com a clareza e a objetividade que o assunto requer. Concordo com o escritor Alípio Freire que acentuou, no texto de “orelha” do livro de Urariano Mota: “Quando viramos a última página de Soledad no Recife, o mais indicado é que nos recolhamos a um profundo e contrito silêncio ou que nos lancemos à produção de um exaustivo ensaio literário (…)”. É o que fiz, faço agora e me proponho a fazer em breve.
No caso do verbo fazer no passado, devo confessar que terminei de ler o livro de Urariano em novembro do ano passado, tão logo ele me chegou às mãos. Quando lancei no mercado Lance fatal e Cronos e Narciso, em setembro de 2010, fiz um trato com o amigo escritor. Ele escreveria a respeito das minhas duas modestas obras e eu me propunha a fazer o mesmo em relação
ao seu romance. Trato feito, trato cumprido, certo? Errado!
Urariano fez a sua parte. Redigiu inteligente e lúcida avaliação dos meus dois livros (generosíssima, sem dúvida), enquanto eu… Estava tomado rigorosamente pela mesma sensação que Alípio teve. Ou seja, a da necessidade de recolher-me a um “profundo e contrito silêncio”. Não podia limitar-me a uma análise superficial e apressada do livro. Ademais, já havia decidido redigir, oportunamente, um ensaio literário a propósito.
O caso do verbo fazer no presente é esta minha contrita confissão de débito com o amigo, essa admissão de não haver cumprido, de imediato, o trato feito. E o tempo futuro? É o aviso de que na sequência, farei várias considerações sobre Soledad no Recife que, reunidas, poderão compor (na verdade, irão) alentado ensaio literário. Só espero ter competência suficiente para expressar-me com clareza, pelo menos a minimamente próxima da do autor deste apaixonante romance.
Ajo dessa maneira não apenas consoante recomendação de Alípio Freire, lúcida e pertinente, mas, principalmente, em respeito ao enorme talento de Urariano. Convém ressaltar que não há nenhuma subjetividade no que penso desse escritor. Afinal, mesmo sem que houvesse o menor contato pessoal entre nós (ele no Recife e eu em Campinas), ou seja, sem que houvesse um reles
aperto de mão, um abraço fraterno, um olho no olho e sem que um conheça, por exemplo, nem mesmo o timbre da voz do outro, por nunca termos conversado, tenho-o na conta de grande amigo. E de fato, ele o é. Mais do que isso até, considero-o irmão que compartilha comigo (e eu com ele) sonhos e ideais comuns. Essas coisas a gente sabe, sem a mais remota necessidade de
comprovação. Sente-as.
Urariano trata desse assunto – e de muitos outros, como amor, ódio, ciúmes, traição, idealismo, etc. etc. etc. – e faz, na página 54 de Soledad no Recife, esta lapidar constatação: “Ocorrem-nos sentimentos muitas vezes sem explicação, sem uma causa clara, se podemos alimentar a esperança de que todas as coisas tenham uma causa. As pessoas do povo têm uma frase que
expressa melhor um fato sem explicação ‘isso tem lógica’. Se tiver, não é mecânica, nem está no reino do cálculo das probabilidades”. (…).
Porquanto, como Urariano observa em outro trecho do livro: “A vida está ao lado, corre célere agora mesmo, e pede, mais que pede, exige, ordena uma interpretação, um instantâneo, um flagrante. A paralisação do voo do beija-flor. Mais grave que isso, porque passa ao largo da paralisação mecânica do movimento. Não são asas em um voo congelado. Não é o instante infinitésimo no percurso e paradoxo da flecha de Zenon. É como – se me permitem comparar mal – um olhar fixo e perseguidor. Vivo, permanente e ciclópico. No entanto, além dessa ambição e muito mais além do escrito, a vida corre, ao lado de mim”.
(…)