Emancipação e revolução mundial: O mundo se descoloniza
O mundo avança entre comoções impostas pelas cadeias da exploração e solavancos que as fraturam. As independências são rupturas de vínculos com o explorador internacional; as revoluções, aniquilação de ordens impostas pelos exploradores internos e seus aliados transnacionais.
Por Luis Britto García, no Cuba Debate (*)
Publicado 11/08/2011 09:12
Emancipações e revoluções são as rachaduras que rompem a trama da exploração do homem pelo homem; toda independência aspira a ser Revolução. Assinalo sempre que a Conquista da América foi o maior processo de colonização da história. Com as riquezas espoliadas se manteve a hegemonia da Espanha durante dois séculos e, depois, da Europa sobre o mundo até o final do século 19.
A independência da América foi o maior processo de descolonização do mundo. O segundo grande processo de descolonização ocorreu no século 20, com a massiva emancipação política e em parte revolucionária de Estados na Ásia, África e Europa. O terceiro grande processo emancipatório e revolucionário da História arranca agora; ele abarca todo o planeta e afeta inclusive as potências até hoje hegemônicas.
As condições amadurecem
Nestes três grandes processos libertadores interagem as mesmas condições:
1) enfraquecimento conjuntural de potências imperiais pela perda de hegemonia ou conflitos entre elas;
2) imposição forçada assistemática de elementos ou práticas da modernidade em países ou camadas dominadas;
3) Preservação ou criação, dentro dos países ou camadas submetidos, de culturas de alto grau de dissonância ante as potências hegemônicas;
4) Massivas mobilizações de classes ou setores sociais populares dos povos submetidos, contra a exploração e em defesa de suas especificidades culturais.
Todas, e cada uma, destas condições se intensificam no mundo contemporâneo:
1) As potências imperiais perdem a hegemonia pelo colapso do capitalismo, que lhes impões dívidas públicas impagáveis, negação de todas as conquistas sociais de seus cidadãos, crescimento da inflação, aumento dos impostos e motorização da economia mediante uma produção armamentista que desemboca em guerras impossíveis de vencer.
2) A imposição assistemática de elementos da modernidade pelas potências hegemônicas aos países do Terceiro Mundo gera uma modernização disforme, assinalada pela dependência econômica, trocas desiguais, destruição ecológica e empobrecimento massivo de populações às quais se destruíram seus meios tradicionais de vida sem lhes oferecer inserção segura nem remunerativa no sistema capitalista.
3) O Terceiro Mundo, apesar da forte penetração cultural, preserva e cria elementos culturais que evitam que a imensa maioria da população do globo se identifique com os valores e códigos da modernização imperial.
4) As classes e povos submetidos protagonizam hoje a mais ampla mobilização já vista na história contra a exploração e em defesa de suas culturas.
Assim, a maioria dos países da América Latina e do Caribe opta democraticamente por governos progressistas; o mundo islâmico é um fervilhar de movimentos contra as imposições imperiais e os governos submissos a elas; as potências emergentes mostram claros sinais de independência em relação ao G-7.
Mas inclusive nos países do bloco hegemônico, como Inglaterra, Itália, França, Espanha, Portugal, Grécia e Islândia irrompem mobilizações sociais envolvendo multidões contra práticas que jogam a totalidade do peso do colapso financeiro sobre os ombros dos trabalhadores, enquanto nos Estados Unidos surgem graves indícios de intranquilidade social.
Como se não faltassem estopins para esta vertiginosa situação, uma crise alimentar disparada pela mudança climática e pela especulação financeira dos monopólios agrícolas triplica e quintuplica o preço dos alimentos básicos e coloca a humanidade entre a espada e a parede. Examinemos a história: grande parte dos movimentos revolucionários foram detonados pela escassez de alimentos, e a que ocorre hoje tem um caráter global.
Este sistema está em colapso: apenas a revolução mundial evitará que arraste consigo o resto do planeta.
Os impérios contra-atacam
Os impérios ameaçados pela radicalização dos povos na América Latina, Ásia, África e na própria Europa, respondem com um recurso que a agrava: a multiplicação de agressões militares em territórios cada vez mais extensos e distantes.
Estes ataques intensificam os sentimentos culturais e políticos de resistência dos povos invadidos, e são impagáveis para agressores com cofres fiscais exauridos pela crise.
Os impérios quebram
Pois os países até agora hegemônicos estão em quebra. Segundo o FMI, para 2011 a dívida externa da França equivalerá a 99% de seu Produto Interno Bruto; a da Espanha, a 74%; da Alemanha, a 85%; a da Itália, a 130%; a do Japão, a 204%; a do Reino Unido, a 94%; a dos Estados Unidos, a 100% (World Economic Outlook; OECD, Economic Outlook).
São passivos impagáveis, que é impossível cancelar desvalorizando moedas ou aumentando impostos, e que os dirigentes tratam de financiar eliminando os direitos sociais dos trabalhadores. Os Estados Unidos admitiram, em junho de 2011,que estavam a ponto de declarar a moratória de sua dívida com a China. Em julho, ocorreram complexas negociações para salvar o euro. Com razão quase todos os Estados em quebra se juntaram para saquear as reservas monetárias da Líbia e energéticas.
A declaração da bancarrota fiscal dos Estados Unidos levaria consigo a derrocada da divisa (o dólar) sem lastro que impõe ao resto do mundo como pagamento de suas obrigações. Outro tanto poderia acontecer com o quebra do euro, cuja saúde não é exemplar.
Repassemos a história universal: quase todas as revoluções da época moderna foram precedidas por bancarrotas fiscais que debilitaram e deslegitimaram os Estados e os forçaram a solicitar sacrifícios impossíveis e consensos sociais problemáticos para conjurar os déficits.
Estes países em bancarrota se desvanecem também pelo declínio demográfico: não têm consumidores para seus produtos, nem braços para produzi-los. Até 2010 o mundo tem por volta de 7.5 bilhões de habitantes. Os EUA têm 313.232.000 habitantes, toda a União Europeia tem 501.259.840. Suas taxas de crescimento populacional são insignificantes.
Mais de três quartos do crescimento populacional da UE se deve à imigração. Suas economias dependem dela e da terceirização de forças de trabalho no exterior, e a ambas são negados todos os direitos; as massas podem responder negando toda lealdade ao sistema que as espolia.
Como resultado disso, o exército da primeira potência imperialista da Terra é formado essencialmente por mercenários, recrutados majoritariamente entre suas marginalidades excluídas: afro-americanos, hispânicos e pobres. Os beneficiários das políticas do império se negam a lutar por ele. O Império Romano caiu depois que seus exércitos deixaram de ser integrados por cidadãos e passaram a depender de forças mercenárias. A experiência poderia ser significativa para potências que dependem cada vez mais da agressão militar.
A quebra fiscal e demográfica das potências até agora dominantes não significa a renúncia automática à sua hegemonia, em termos pacíficos. Foi precisamente num clima de bancarrota do Estado e proletarização das classes médias que surgiram os fascismos europeus para tratar de reconquistar mediante a violência racista as posições perdidas.
A energia fóssil se esgota
Enfim, o capitalismo em colapso, com sua economia de consumismo, de desperdícios e de supercrescimento do setor de serviços, com suas máquinas militares e seu sistema de concentração da população em megalópoles, está também irreversivelmente condenado pelo acelerado e iminente esgotamento das reservas de energia fóssil que o sustentam.
Mais de 90% da energia que o planeta consome vem do petróleo e seus derivados; as potencias hegemônicas têm escassas reservas naturais, e a nível mundial já se alcançou o topo de sua produção. De agora em diante, a exploração do petróleo e do gás só terá rendimentos decrescentes, antes de seu esgotamento em um período que pode durar pouco mais de meio século.
Os Estados Unidos são o maior consumidor mundial de hidrocarbonetos, gastando com eles atualmente uns 600 bilhões de dólares por ano. Sua crise fiscal poderia impedi-los de continuar com esses desembolsos. Ante isso, intensifica as também impagáveis guerras de saque de hidrocarbonetos, que em longo prazo podem resultar em um confronto de magnitude global com as demais potências do planeta.
É também por pouco tempo que os países imperialistas podem reforçar e aplicar sua preponderância tecnológica em tais conflitos contra os países menos desenvolvidos; historicamente a sofisticação tática tem fracassado contra a resistência cultural e política popular, como ocorreu nos grandes fiascos do imperialismo – na Coreia, Vietnam, Cuba, Argélia, Afeganistão, Iraque, Somália, e na atual agressão contra a Líbia, onde eles esperavam decidir o conflito em poucos dias, mas se defrontaram com uma resistência patriótica que poderá a agressão converter em descalabro para os EUA e seus satélites da Otan .
O mundo se libera
Existem recursos científicos e tecnológicos para reverter essa maquinaria monstruosa no rumo de uma civilização fundada na conservação da natureza, no aproveitamento das energias e recursos renováveis e na reciclagem daquilo que já foi consumido.
Mas assim como o sistema não pode ganhar suas guerras imperialistas porque não entende o funcionamento social, econômico e cultural dos povos que invade tampouco se compreende a si mesmo o suficiente para empreender as reformas culturais, sociais e econômicas que o salvariam. Paralisado nesse modelo predatório que o condena a buscar o lucro próprio na ruina de todos, é incapaz de entender que a salvação de todos é a condição de sua própria sobrevivência.
Nunca como agora a ameaça nuclear tem sido tão insuficiente para garantir que as plutocracias formadas por uma insignificante porcentagem da população mundial se apropriem dos recursos e do fruto do trabalho do resto da humanidade. A Terceira Revolução, uma prodigiosa era de mudanças e movimentos renovadores, está em marcha.
(*) García é escritor, ensaísta, dramaturgo venezuelano, autor de mais de 60 livros, Prêmio Casa de Las Américas 1969 (com “Abrapalabra”) e 1970 (com “Rajatabla”)