Agora, o Peru passa a fazer parte da América do Sul, avalia Fuser
Vinte e oito de julho de 2011. Nesta terça-feira, o líder nacionalista Ollanta Humala assume a presidência do Peru em meio a grandes expectativas internas e externas. Segundo o jornalista e doutorando em Relações Internacionais Igor Fuser, a vitória de Humala significa um reordenamento no tabuleiro geopolítico mundial. “Agora, finalmente o Peru passa a fazer parte da América Latina”, afirma.
Por Fabíola Perez
Publicado 28/07/2011 12:01
Para Fuser, o país se desloca do bloco pró-Estados Unidos para um bloco que defende a autonomia da América Latina e a integração. “O Peru é um dos países mais importantes da região e sua posição à direita deixava uma grande lacuna. É uma nova era para o povo peruano. Será uma transformação muito significativa para toda a América Latina”, ressalta.
Fuser lembra que o ex-militar sempre teve posições muito próximas às do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, mas não contava com um respaldo claro da população peruana para realizar reformar profundas. “Isso torna a situação de Humala bastante semelhante à situação do governo Lula e, agora, do governo Dilma”, analisa.
O especialista alerta que a imprensa não tem dado a devida importância para o significado da vitória do líder nacionalista. “É a primeira vez na história do Peru independente que a população elege um governo progressista”, lembra.
Fuser ressalta ainda que hoje o Peru vive uma situação interna bastante contraditória. “O Peru é um dos países com maior crescimento econômico do mundo (…), só que isso não tem trazido benefícios à população”, enfatiza. “Humala deverá enfrentar o confronto com a oligarquia e aplicar impostos sobre a extração de minérios, aumentando a renda estatal. Se não fizer isso, vai ter dificuldade em implantar qualquer tipo de projeto social”, acredita.
Leia abaixo a entrevista.
Vermelho: Humala declarou que seguiria o mesmo modelo político adotado pelo ex-presidente Lula. O que os diferencia?
Igor Fuser: É importante situar a eleição do Ollanta Humala no contexto político da América do Sul, olhando sob uma perspectiva ampla. Temos uma disputa entre dois grandes projetos políticos. O primeiro impulsionado pelos Estados Unidos, de manutenção dos laços de dependência dos países sul-americanos em relação ao capital internacional e à hegemonia imperialista norte-americana. Esse projeto tem como peça principal os acordos de livre comércio, que os Estados Unidos têm aplicado a partir do fracasso da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
O outro projeto unifica um conjunto variado de regimes políticos que têm como ponto comum a busca por maior autonomia, integração regional, projetos nacionais de desenvolvimento econômico e social. A vitória do Humala no Peru significa um deslocamento do país do primeiro bloco – pró-Estados Unidos – para o bloco pró-autonomia e integração. É uma mudança no tabuleiro político internacional muito significativa. O que se espera é um deslocamento do alinhamento político do Peru, afastando-se do eixo de Washington e se aproximando de outro eixo, que tem como principal polo o Brasil.
Vermelho: Por que Lula, e não Chávez?
Igor Fuser: Humala sempre teve posições muito próximas às de Chávez, com propostas de uma participação popular muito intensa, características nacionalistas, anti-imperialistas e profundamente reformista. No entanto, a situação em que o Humala chega ao governo é muito diferente do contexto em que Chávez chegou ao poder na Venezuela.
Humala não tem uma posição de hegemonia dentro do seu país. Ele não tem uma maioria clara que lhe dê um mandato para realizar reformas profundas na sociedade peruana. Ele teve 31% dos votos no primeiro turno – mais ou menos a votação que havia tido em 2006. Para ser vitorioso no segundo turno, teve que fazer alianças com setores mais conservadores da sociedade peruana – do contrário, ficaria em minoria no Congresso e não conseguiria governar. Isso torna a situação do Humala bastante semelhante à situação do governo Lula e, agora, do governo Dilma. São governos à esquerda, com um caráter reformista, desenvolvimentista, mas, ao mesmo tempo, governos de coligação, de aliança, de centro-esquerda.
Podemos esperar uma posição mais próxima ao que vinha acontecendo no Brasil, em 2003, do que acontecia na Venezuela, ou na Bolívia, onde governantes têm uma maioria forte de esquerda, com forte respaldo popular para promover políticas de mudanças sociais. Não é uma escolha do Humala. Ele não está dizendo “eu prefiro o modelo brasileiro em relação ao modelo venezuelano”, como alguns setores da imprensa dizem. Trata-se de uma situação de correlação de forças. Não que ele tenha rompido com esse modelo venezuelano.
Os governos da América do Sul, em sua maioria, são progressistas. Dentro desse campo, existem opções mais à esquerda e posições mais moderadas. Não há uma contradição de fundo entre elas. Ele deverá adotar uma linha mais moderada porque a situação no Peru é muito diferente da situação da Venezuela.
Vermelho: Você apontaria semelhanças e diferenças na formação da equipe ministerial de Humala e Lula?
Igor Fuser: É impressionante a semelhança. A tática política usada pelo Humala se assemelha muito àquela empregada por Lula. Humala optou por entregar os ministérios-chave na esfera econômica a setores mais conservadores, empresariais. Ao mesmo tempo, nomeou personalidades mais progressivas, mais à esquerda, em outros ministérios importantes. Mas o governo está nas mãos do Humala.
Existem mudanças que ele prometeu na campanha em torno das quais existem grandes expectativas. A mais importante é o aumento dos impostos sobre a produção de minérios – a maior riqueza do Peru é a mineração, explorada por grandes empresas transnacionais. Humala deixou muito claro que não vai estatizar esse setor da produção, porém deverá reforçar a soberania peruana diante desses recursos, aumentando os impostos.
Atualmente, a situação no Peru é um verdadeiro escândalo. As empresas extraem as riquezas, os recursos naturais não renováveis e deixam apenas algumas migalhas para a população peruana, fazendo com que o Peru se torne um país rico com uma população extremamente pobre. O que ele deve fazer após a posse é aumentar os impostos sobre essa produção. Calcula-se que até US$ 2 bilhões poderão ser arrecadados pelo Peru após as mudanças. E os impostos devem ser usados para melhorar a qualidade de vida da população e saldar a enorme dívida social que existe no Peru.
Vermelho: Humala chegou ao poder com cerca de 40% de aprovação. Como esses números podem evoluir?
Igor Fuser: No momento atual, esses números não dizem grande coisa. Eles podem aumentar espetacularmente nos próximos meses e anos ou podem despencar como aconteceu com Alan García – que chegou ao final de seu mandato totalmente desmoralizado e nem sequer conseguiu emplacar um candidato à sua sucessão.
Tudo vai depender de como o Humala corresponderá às expectativas de mudanças dos eleitores peruanos. É um eleitorado muito pobre, boa parte dele votou na Keiko Fujimori, que tinha um programa populista que também falava de melhorias sociais. Esse eleitorado pode ser conquistado por Humala. Ele vem sendo há muitos anos o principal crítico das injustiças, dos problemas sociais peruanos, é um grande defensor da parcela mais pobre da população. Tudo indica que ele vai ser fiel a essas expectativas, o que levará a um crescimento da sua taxa de popularidade e ao fortalecimento do seu governo.
Vermelho: Qual o legado de Fujimori, considerando a acirrada disputa eleitoral?
Igor Fuser: No primeiro turno, houve uma liderança muito clara do Humala contra um conjunto de outros candidatos conservadores – entre esses candidatos, a Keiko foi a mais votada. No segundo turno, as forças de direita no Peru, inclusive contando com o apoio dos EUA, perderam. Aliás, é importante deixar claro que os EUA foram os grandes derrotados – a embaixadora norte-americana no Peru se engajou completamente na campanha da Keiko. No Brasil, por exemplo, não há espaço político para isso.
A direita quase inteira se uniu em torno da candidatura de Fujimori para tentar derrotar Humala. Nesse momento, a direita demonstrou a sua total falta de respeito com o país. O Fujimori representa o que há de pior no Peru: a violência, a corrupção, o banditismo. Ele foi um ditador, está condenado na cadeia. A direita, em nome dos seus interesses, decidiu apoiar a corrupção para barrar o candidato do povo. Há uma oligarquia que odeia o povo – é a chamada elite branca que odeia tudo que seja indígena.
O fujimorismo tem certa força residual no Peru, que tende a se dissolver no governo Humala. É uma oposição muito invertebrada, que não se espera que tenha fôlego longo. A Keiko é uma personagem totalmente vazia, filha de um ex-presidente que está na cadeia, preso por corrupção. A falência da direita no Peru ficou muito evidente nessas eleições. Foi uma derrota da direita.
Vermelho: Há cinco anos, o Peru está sob o governo de centro-direita de Alan García, também marcado por acusações de corrupção. O que se pode esperar daquilo que Humala chama de “a grande transformação”?
Igor Fuser: A imprensa não tem dado a devida importância para a vitória do Humala. É a primeira vez em 200 anos da história do Peru independente que o país elege um governo progressista. Dentro da democracia, é a primeira vez que isso acontece, e a expectativa para o governo Humala é que seja uma grande transformação nacional, inclusive da cena pública. Esse foi um dos temas muito fortes da campanha dele.
Claro que nenhum governo está livre da corrupção, mas certamente será muito melhor que seus antecessores. A expectativa é de muitas mudanças, tanto no plano externo quanto no plano interno. Antes de assumir, Humala viajou por diversos países, inclusive para Cuba, onde criticou o bloqueio imposto pelos EUA. São sinais muito positivos que é preciso levar em conta.
O contexto em que Humala vence as eleições é muito importante. Há uma ofensiva militar dos EUA na América do Sul, essas bases militares espalhadas por toda a região, o acordo militar que eles fizeram com a Colômbia. Poucos meses antes das eleições, os EUA promoveram uma reunião chamada Aliança do Pacífico – formada pelo Chile, Colômbia, Peru e México – justamente os quatro governos da América Latina que têm uma relação de aliança com os EUA. Esse resultado no Peru quebra essa Aliança do Pacífico – que é uma concorrente da Unasul, e os EUA odeiam a Unasul. É uma vitória do campo progressista na América do Sul muito importante e uma derrota do imperialismo.
Vermelho: Quais as principais demandas da população peruana que votou em Humala?
Igor Fuser: O Peru é um dos países que tem apresentado o mais alto desenvolvimento econômico do mundo – comparado à China e superior ao Brasil. Se olharmos as taxas de crescimento da economia peruana, elas giram em torno de 8% e 9% ao ano. Só que esse crescimento econômico não tem trazido benefícios à população. Esse dinheiro é apropriado pelas empresas transnacionais e pela oligarquia, por uma pequena minoria de peruanos muito ricos, aliados ao capital transnacional.
A grande expectativa dos peruanos é que eles tenham uma participação na riqueza nacional, que haja uma redistribuição de renda e a diminuição da pobreza. Nesse sentido, os movimentos sociais peruanos tiveram um papel muito importante na vitória do Humala.
Há um elemento de confronto que o Humala terá de enfrentar: ele vai ter que aplicar impostos sobre a extração dos minérios. O país não tem indústria, tem uma agricultura subdesenvolvida e, se o Humala não entrar em confronto com as transnacionais e aumentar a renda estatal sobre a produção de minérios, vai ter dificuldade para implantar qualquer tipo de projeto.
Vermelho: A origem de Humala deverá impactar em sua imagem durante sua relação com as classes mais pobres? Como no caso de Lula no Brasil?
Igor Fuser: Sem a menor dúvida. O Humala é a cara do peruano. O Alan Garcia é um sujeito de 1.90 de altura, branco, parece um europeu. É um sujeito das elites, da oligarquia branca, enquanto o Humala é um sujeito de origem popular, de origens indígenas. É claro que a origem dele é muito diferente da origem do Lula. Mas ele é visto pela população mais pobre, principalmente no interior do país, como um ídolo, como “um dos nossos”, alguém igual a “nós” que finalmente chegou ao poder para trazer melhorias à população peruana. Se ele fizer um bom governo, não se entregar à direita e continuar firme no propósito reformista, vai crescer muito. Ele pode ser tornar um líder comparável ao Evo, ao Lula, ao Chávez.
Vermelho: Durante a disputa eleitoral, a imprensa peruana deixou claro seu posicionamento contra Humala. Como essa relação com a imprensa tende a continuar?
Igor Fuser: Esse é um dos grandes problemas que o Humala terá pela frente. A imprensa no Peru agiu do mesmo jeito que a mídia empresarial age no Brasil. A imprensa atua como se fosse um grande partido político de direita, conservador. Atacaram Humala de todas as maneiras, mas as empresas de mídia foram derrotadas. E vão continuar se aproveitando de todas as brechas para sabotar o governo. Vai ser uma queda-de-braço permanente. E a dificuldade vai ser justamente pelo leque de alianças que Humala construiu. Ele não vai ter condições de aplicar medidas mais duras de quebra dos monopólios da mídia, como vem sendo feito em outros países. Ele está com as mãos amarradas para enfrentar o monopólio da mídia.
Vermelho: Com a vitória de Humala, a integração latino-americana sai fortalecida?
Igor Fuser: Agora, finalmente o Peru passa a fazer parte da América do Sul, do ponto de vista geopolítico. Era realmente uma grande lacuna, e o Peru é um dos países mais importantes da região, pelo tamanho, pela população, pela participação na bacia amazônica e ao mesmo tempo pelo cenário andino. A Unasul, a Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos), os vínculos com o Brasil vão se fortalecer muito, em termos políticos e em termos culturais.
Vermelho: Vinte e oito de julho de 2011 poderá ser considerado o início de uma nova era para o Peru?
Igor Fuser: É uma nova era para o povo peruano. Tudo indica que será de fato. E é uma mudança muito importante para toda a América do Sul.