Justiça de SP confronta versão de familiares e torturador Ulstra
O Tribunal de Justiça de São Paulo viverá um dia agitado e de relevância histórica na próxima quarta-feira (27), quando uma audiência vai confrontar a versão do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante de um dos principais aparelhos de repressão da ditadura (1964-85), com a de suas vítimas.
Publicado 23/07/2011 15:42
A sessão, marcada para o período da tarde no Fórum João Mendes, no centro da capital paulista, diz respeito a uma ação por danos morais movida pela família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, militante assassinado nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), o aparelho de tortura que Ulstra confirma ter comandado de 1970 a 1974, um dos períodos de recrudescimento do regime totalitário.
A revisão da anistia
Os parentes não visam à obtenção de indenizações financeiras, mas ao reconhecimento pelo Estado brasileiro de que o militar é o responsável pela morte. Uma eventual decisão favorável aos Merlino não significa a possibilidade de prisão do coronel reformado, já que o processo corre no âmbito cível.
"O momento nos parece mais importante na medida em que, pela primeira vez na Justiça, as pessoas que foram torturadas e que o viram ser torturado vão poder testemunhar", afirma Angela Mendes, historiadora e companheira de Merlino à época da morte.
O jornalista, na legalidade, havia regressado ao país para preparar a volta de Angela, que se encontrava em condição ilegal. Preso em 15 de julho de 1971, cinco dias após a volta, o integrante do Partido Operário Comunista (POC) foi levado às dependências da Operação Bandeirante (Oban), na rua Tutóia. Torturado durante 24 horas seguidas, foi deixado sem socorro pelos militares. Dias depois, com gangrenas, foi conduzido ao Hospital Geral do Exército, onde morreu.
Angela, sem poder regressar, viajou da Europa para o Chile e para a Argentina. Teve de deixar os países sul-americanos à medida que ocorriam golpes de Estado – 1973 em Santiago e 1976 em Buenos Aires. Outra vez no Velho Continente, retornaria ao Brasil apenas após a promulgação da anistia, em 1979.
As testemunhas arroladas pelos familiares são antigos companheiros de partido, que viram o militante após a sessão de tortura ou que ouviram de um carcereiro a versão sobre os fatos. Serão ouvidos também o ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, Paulo Vannuchi, que presenciou parte dos fatos, e o historiador e escritor Joel Rufino dos Santos.
Do lado do militar foram escalados o ex-presidente da República, José Sarney – atualmente senador pelo PMDB-AP –, então integrante da Arena, o partido de sustentação da ditadura; Jarbas Passarinho, titular de diferentes ministérios durante o regime; três generais e um coronel da reserva. Eles irão depor por meio de carta precatória, evitando o comparecimento ao Tribunal de Justiça. Ulstra, a princípio, está dispensado de depor, e pode valer-se do direito de não comparecer à audiência para evitar ficar frente a frente com algumas de suas vítimas.
Três anos depois
Esta é a segunda tentativa da família Merlino contra Ulstra na Justiça. Na primeira, em 2008, uma ação civil declaratória objetivava o mesmo que havia sido conquistado pela família Teles. Pai, mãe e filhos conseguiram que o Judiciário de São Paulo reconhecesse a condição de torturador do general reformado, responsável por comandar um operativo de violações que não poupou de traumas nem mesmo duas crianças.
Naquela ocasião, no entanto, o mesmo Tribunal de Justiça que havia aceito o caso dos Teles rejeitou o processo movido pelos Merlino. O caminho encontrado, então, foi o de mover uma ação por danos morais que ao menos reconheça que Ulstra violou os mais básicos direitos humanos.
Os familiares de vítimas da ditadura ainda estão relutantes quanto à possibilidade de ações no âmbito penal. O problema é que, apesar de a Corte Interamericana de Direitos Humanos haver determinado no ano passado que a Lei de Anistia não deve ser usada como guarida para torturadores, o Supremo Tribunal Federal (STF) teve entendimento diferente, considerando que o processo de anistiamento conduzido em 1979 foi fruto de um amplo acordo da sociedade.
Para Angela Mendes, enquanto não se levar a cabo a Justiça de Transição, que prevê submeter a júri os responsáveis por crimes imprescritíveis sob o ponto de vista do Direito Internacional, o Brasil seguirá a assistir à tortura como método de investigação e à execução extrajudicial como método de condenação. “Esse processo é importantíssimo para nós, mas é apenas um passo. Concluído este processo, ainda não teremos só com isso conseguido o que já conseguiram outros países da América Latina. É um momento da luta.”
Fonte: Rede Brasil Atual