Correia da Fonseca: crônica de um europeu envergonhado

O dia já está para acabar e ainda hoje não encontrei notícias da Líbia em qualquer um dos canais portugueses. Esta ausência pode ter um significado, o de que aquilo não avança. Entretanto, procurando por outras vias, me deparo com algumas informações, não exatamente acerca da evolução das operações militares, mas sobre outro aspecto, aliás nada irrelevante: a Human Rights Watch – insuspeita de simpatias pelas ditaduras em geral e pelo líder Kadafi em especial, acusa os rebeldes líbios de pilhagens, incêndios e violações, o que para um movimento reivindicativo de liberdades democráticas não parece nada adequado.

Por outro lado, diversas fontes estimam em mais de um milhão de mortos, sem contabilização dos feridos graves que sobrevivem apenas um punhado de dias, as vítimas civis dos bombardeamentos da Otan. Como se sabe, a guerra que a Otan declarou à Líbia sob o alto patrocínio do Conselho de Segurança da ONU exclui a intervenção de tropas em solo líbio, o que bem se compreende, pois ao fazer a guerra em terra morre-se muito e, nesse aspecto, já bastará à Otan o que vem acontecendo no Afeganistão.

Assim, a Otan parece estar limitada a matar lá do alto, do céu, por vezes até utilizando aviões não tripulados, o que garante a sobrevivência dos matadores. Em terra, para morrer e matar, estão os insurgentes líbios, certamente municiados de armas e de anseios democráticos, sobretudo e mesmo exclusivamente via Facebook e similares, já que as notícias que nos chegam nunca sequer afloraram outras vias de abastecimento. Note-se, de passagem, como é maravilhoso o suporte tecnológico a que se chegou e que permite o fornecimento por essa via de material bélico tão pesado como aquele que nos vemos na televisão.

Acontece, porém, que esta guerra me deprime. Ou melhor, me envergonha. Porque sou europeu, porque ser europeu me agrada, e porque esta guerra de suposta libertação dos líbios está em quase total medida a ser feita por países europeus.

Bem sei, como toda a gente pode saber, que por detrás deles estão os Estados Unidos, patrões da Otan enquanto arregimentação de parcelas disciplinadas e também patrões diretos de cada um dos estados orgulhosamente soberanos, ora essa, que integram a aliança. Nem por isso, contudo, deixo de imaginar a cara de Sarkozy, por exemplo, quando a televisão me traz a notícia de mais uma intervenção de aviões franceses contra Trípoli.

E quem fala de Sarkozy poderia falar de outros responsáveis políticos europeus que em maior ou menor grau aceitaram participar no que parece terem projetado como uma fácil e proveitosa blitzkrieg não exatamente contra Kadafi – alegadamente brutal –, contra o povo líbio e o petróleo que, sendo seu, deve constituir uma riqueza nacional cujas vantagens financeiras revertam em seu favor. Trata-se, pois, de uma ação bélica de assalto e rapina. E, como bem se compreenderá, ações destas não são compatíveis com a ideia da Europa a que gosto de pertencer.

Poderá dizer-se, e com razão, que essa mítica ideia da Europa civilizada e pacífica é uma ideia parva. Pois, nem por isso me envergonho menos dos crimes que a Europa cometa, até porque os cometerá um pouco em meu nome. Por acaso (e utilizo aqui a expressão muito em sentido literal), Portugal não tem vindo a ter uma intervenção direta nesta espécie de cruzada que não visa libertar dos infiéis o Santo Sepulcro, como outrora, mas sim o Apetitoso Crude, o que não é a mesma coisa.

De fato, em matéria de hostilidades portuguesas contra a Líbia parece só a comunicação social portuguesa estar em campanha, e não pouco, e sem a menor transigência para com o princípio jornalístico de atenção ao contraditório, omissão que de resto já não surpreende tendo em vista todos os precedentes. Mas o meu país está lá, nesse bando, confunde-se com ele não apenas por óbvias razões geográficas, mas também por ter integrado um projeto de alguma, muita ou pouca, integração europeia.

Ora, acontece que ainda não me libertei de outra ideia da Europa, de uma ideia ligada aos nomes de Galileu e Newton, de Descartes e (se me permitem) Marx, de Bach e Beethoven. Também de Damião de Góis e Vieira. Tonto ou nem por isso, chego a supor como certo que também eles sentiriam a vergonha que tanto me incomoda. E fico, diante da televisão, à espera de notícias que me informem que acabou, enfim, a razão do meu desconforto.

Correia da Fonseca é colaborador do portal ODiário.info