Sobre Fernando Pessoa: Nem Salazar pode destruir o homem
A produção poética de Fernando Pessoa mostra como a grande obra de Arte pode ir além das imposições políticas e, mesmo, das intenções de seu autor
Por O. C. Louzada Filho*
Publicado 30/06/2011 12:17
Um homem de direita, em cuja obra poética possam estar presentes componentes irracionais cultuados pelo fascismo salazarista, pode ser um bom poeta? A pergunta faz sentido, nesta comemoração dos noventa anos do nascimento de Fernando Pessoa.
De início, é preciso deixar claro: Pessoa nunca chegou aos limites atingidos por alguns colegas seus. O romancista norueguês Knut Hamsun, por exemplo, era nazista e chegou a colaborar com os invasores de seu país. O poeta Ezra Pound chegava a pregar o antissemitismo em seus poemas e definia Mussolini em transmissões radiofônicas durante a Segura Guerra.
O caso de Pessoa é mais complicado. Durante os anos 20 e 30 escreveu os poemas de Mensagem, cujo misticismo servia como louvação dos mitos arcaicos invocados pela ditadura salazarista. Não se tratava do discurso fascista, mas de poemas ligados ao ocultismo. O culto de Pessoa às “ciências esotéricas” o aproximava da posição sebastianista, o culto irracional de um Portugal voltado ao destino de defensor da já tão citada “civilização ocidental”.
E retorna à questão: ainda assim, ou apesar disso, Fernando Pessoa seria um grande poeta? É, sem dúvida. E como se explica essa contradição, já que o fascismo é necessariamente mentira e, portando, dificilmente andaria junto com a criação artística?
O mais correto é recorrer à obra – na qual a posição política de qualquer autor está sempre presente, mesmo como indício ou possibilidade esboçada – para tentar compreender essa contradição. Tomemos, por exemplo, um dos 35 Sonetos, que Pessoa escreveu em inglês, e nos quais está mais presente seu pensamento ocultista.
Por Fernando Pessoa
Espraia-se em espuma a onda verde
Sobre a areia molhada. Eu olho, e cismo.
Não é isto o real, decerto. Algures
Se vê ser isto apenas aparência.
Céu, mar, esta vasta alegria externa
Este peso de vida que sentimos
Não é algo real, mas só um véu.
Real, só o que nisto não é isto.
Se nisto houver sentido, e se é vigília
Viver das coisas este sonho claro
Como de mais valor terei sonhar
E mais real o mundo imaginário,
Mas sonho pavoroso, atroz insulto,
Este sonho da gente. o Universo.
A colocação se filiaria ao pensamento de direita mais radical: não existe o concreto mas alguma coisa indefinível além dele. Na verdade, Fernando Pessoa ia muito longe nesse raciocínio. Chega a afirmar, em seus Textos Filosóficos que “a própria existência do mundo é uma crença nossa. Nada nos prova que existe uma coisa qualquer”.
As caraminholas idealistas servem sempre a quem é – concreta e realmente – dono do poder. Na época de Pessoa, o fascismo salazarista.
Mas, quando falamos do poema, estamos tratando de uma obra de arte. E elas, quando bem realizadas, têm a possibilidade de irem além do que possa pretender seu autor.
Não é possível negar a qualidade da poesia de Pessoa. E o valor estético costuma revelar, além da forma e através dela, algumas verdades universais.
Mais uma vez como as duas coisas se conciliam?
A criação é uma forma de trabalho. Mas uma forma específica. O poema (mesmo usado como mercadoria que se vende sob a forma de livro) , revela sob a forma de obra de arte, sua capacidade de até mesmo passar a perna em quem o escreve.
O Soneto de um lado nega a realidade imediata: “ela é só um véu”. Afirma que o mundo é um “sonho pavoroso, atroz insulto”. Isso serviria ao pensamento de direita na medida em que nega o concreto que se encontra à nossa frente, nosso dia a dia, nossa vida. Embora, e desde já se possa lembrar que o dia a dia possa, por vezes, ser realmente um “atroz insulto”.
Mas um poema tem um significado necessariamente ambíguo. Na sua leitura se reconhece: Não é isso o real!”. Diante do mar, da praia, das ondas: “Isso é só um véu”. Existe algo nisso que não é isso. Aí – de certa forma – a obra já vai mais longe: manifesta o fato real do homem colocado diante da paisagem, reconhecendo que a aparência que vê manifesta alguma coisa mais. Sua simples presença, carregada de tempo histórico, já seria suficiente para mostrar que o devaneio na praia “não é bem isso”, não se limita às formas vistas.
“Toda ciência seria supérflua se a aparência das coisas coincidisse diretamente com a sua essência”: a afirmação é de Marx. De certa maneira, o soneto de Pessoa – entre outras coisas, já que um poema não se pode resumir em uma única afirmação – também diz isso.
O momento de fascinação perante o mar nos lembra que, para o homem, a realidade vai além do que é apenas e simplesmente visto, como a ciência vai além da simples aparência. É como se o idealismo do poema (místico, esotérico, “ocultista”) o traísse no momento em que cria uma obra de arte. A realidade é algo mais do que se vê: a obra de arte revela, ao nível estético, o que de sua maneira os textos científicos também fazem. Aí, sem a ambiguidade que um poema tem, mas num discurso direto e claro.
Um poema bom não pode ser uma manifestação partidária. Já foi lembrado como ele exige uma liberdade que não se coaduna com a imposição de ideias, imposição que é característica do discurso fascista.
Mas, nem o fascismo pode destruir a criação humana. O que Fernando Pessoa pensava politicamente – e nessa área Salazar sai perdendo – cai por terra diante de uma manifestação maior: a presença do homem no mundo. E de sua capacidade de criar, e de modificá-lo.
* O crítico literário Oswaldo Corrêa Louzada Filho escreveu este artigo (publicado no jornal Movimento em 03/07/1978) para comemorar os 90 anos de Fernando Pessoa.