Última viagem de Che Guevara é recontada em documentário
“Ninguém sai imune de uma viagem. Muito menos Ernesto Che Guevara”. É com essa frase que o poeta e cineasta argentino, Carlos Pronzato, caracteriza a relevância das sagas de Che Guevara pela América Latina. Para contar a história da segunda e última viagem de Che – que compreende o roteiro Argentina, Bolívia, Peru, Equador e, mais tarde, Cuba –, o cineasta entrevista o amigo de infância e companheiro do médico, Carlos Calica Ferrer.
Por Fabíola Perez
Publicado 23/06/2011 15:17
A partir da entrevista, nasce o documentário “A última viagem de Ernesto Guevara pela América Latina”. Depois de viajar pela América do Sul, acompanhado pelo amigo Alberto Granado – aventura que deu origem ao filme “Diário de Motocicleta”, lançado em 2004 –, Chê ganha uma segunda produção.
Poetas, escritores, intelectuais e admiradores de um dos personagens mais conhecidos da história da América Latina foram convidados a assistir a pré-estreia do filme no último dia 19 no Espaço Cultural Mané Garrincha e, nesta quinta-feira, o documentário será exibido durante a 19ª Convenção Nacional de Solidariedade a Cuba, que ocorre entre os dias 23 e 26 de junho no Memorial da América Latina, em São Paulo.
Pronzato conversou com a reportagem do Vermelho e contou como conheceu Calica em Buenos Aires, na Argentina. O documentarista falou ainda do gosto por viagens e como a experiência de fazer a trilha inversa do caminho de Che – do México a América do Sul – influenciou sua percepção para recontar a história do personagem.
O cineasta, que atualmente vive em Salvador, na Bahia, recorda que foi apenas quando chegou ao Brasil, após a década de 1980, que começou a refletir sobre a necessidade de “devolver” aos personagens que haviam cruzado seu caminho uma narrativa artística de suas histórias e relatos. O objetivo do documentário, segundo Pronzato, é de complementar o livro “De Ernesto a Che” e de incentivar os jovens a conhecerem o mundo por meio das viagens. “As viagens por terra são insubstituíveis. Por terra e, se possível, de carona. Viagens assim não tem um fim específico, o fim em si é somente viajar”.
Vermelho: Como foi o primeiro contato com Carlos Calica Ferrer, acompanhante de Guevara?
Carlos Pronzato: Eu já trabalho há anos acompanhando movimentos sociais e personagens da América Latina. Carlos Calica Ferrer é companheiro de Che em sua segunda e última viagem, em 1953. Em 2007, em Buenos Aires, na Argentina, o convidei para assistir um longa-metragem meu, o “Carabina M2, uma arma americana, Che na Bolívia” – documentário que faz um panorama de como foram os 11 meses que Chê passou na Bolívia, em 1967. Calica foi assistir a estreia e gostou muito do filme. A partir daí estabelecemos uma amizade. Batíamos alguns papos em cafés e, cada vez que nos encontrávamos, eu perguntava se não havia a possibilidade de eu lhe entrevistar sobre sua viagem. Em julho de 2010, na Copa do Mundo, eu fui para a Argentina e consegui entrevistar Calica no apartamento dele, em Buenos Aires.
Nessa entrevista ele conta, durante várias horas, como foi a viagem, como foi a saída de Buenos Aires, quando Che ainda era Ernesto Guevara, um estudante de medicina. Ele fala também sobre a chegada da primeira viagem, com Alberto Granado, seu primeiro companheiro. Então, assim que Che se forma em Medicina, ele viaja com Calica, amigo de infância e de adolescência. O documentário foi feito a partir dessa única entrevista. A ideia veio a partir do livro “De Ernesto a Che” que conta detalhadamente a história da última viagem. Eu li o livro e fui procurar Calica para fazer a entrevista. O objetivo do documentário é que o filme integre o livro e complemente a história.
Vermelho: Como surgiu a ideia de recontar a história por meio do relato de um dos companheiros de Guevara?
CP: A importância de a história ser contada por um companheiro de Che se dá pela proximidade de eles tinham, da relação de amizade. O pai de Calica Ferrer era o médico que tratava da asma do Che. Ele tinha asma e morava em Buenos Aires. Por causa disso, foi com toda a família para o centro da Argentina, uma região seca e montanhosa que faria bem a sua saúde. E quando conhece a família Ferrer começa toda essa amizade.
Por meio do documentário, ele narra os detalhes e curiosidades dessa amizade. É uma história fundamental para a América Latina e para o mundo. Che diz logo no começo do filme: “agora o acompanhante mudou, Alberto se chama Calica”, para marcar a passagem da primeira para a segunda aventura. Alberto foi o acompanhante de Che durante a viagem que originou o filme “O Diário de Motocicleta”. Eu estudo a epopeia de Che há muitos anos e na convenção vou lançar também o livro “Che, um poema guerrilheiro”, com uma biografia resumida e 22 poemas meus dedicados ao personagem.
Vermelho: Quais os aspectos importantes da relação de amizade e admiração entre você, como cineasta, Calica e Che?
CP: O primeiro aspecto é o fato de eu ter feito essa mesma viagem, 30 anos depois deles, assim como muitos latino-americanos fizeram e continuam fazendo. Acredito que a verdadeira escola de conhecimento do nosso entorno é viajar, e viajar por terra. E se puder, viajar trabalhando no decorrer do percurso. O que me une a Calica é ter feito um pouco disso. Admiro essa viagem, foi uma inspiração para mim. Entre os anos de 1981 e 1987, fiz o mesmo percurso que eles fizeram só que de maneira inversa, vindo do México para o Sul.
Che vai se transformando durante a viagem, em contato com a pobreza, com uma realidade que ele não conhecia na Argentina. Ao longo da primeira viagem, Granado percebe como Che passa a se interessar de uma maneira especial por questões sociais. Tem algumas passagens, no Peru, no Chile que mostram claramente esse interesse social. Calica também percebe essa fase de mudanças ecompreende que a transformação de Ernesto começa no Equador, onde o médico começa a atuar sob um viés político e social mais aguçado.
Vermelho: Qual a representatividade simbólica dessa última viagem de Guevara e Calica?
CP: A segunda viagem se inicia, de fato, ainda na primeira. O final da primeira viagem é o primeiro ponto fundamental, por que Che queria terminar seu curso de medicina, ele se forma em um tempo recorde, faz 14 disciplinas em um ano. E esse crescimento do interesse social de Che é bem representado pelo destino que ele tem na segunda viagem. É nessa viagem que ele se transformar no comandante Guevara, depois que conhece Fidel.
Por isso, o ponto crucial dessa viagem é no México, quando se encontra com Fidel Castro, apresentado por Raul. Nesse período, Calica vai jogar futebol na Colombia e depois, segue para Venezuela. Eles perdem o contato durante um tempo. Acredito também que toda viagem leva a uma transformação. Ninguém sai imune de uma viagem. Muito menos Che Guevara. Foi ao longo desses percursos que Che teve sua formação sócio-política vivenciada e experimentada na prática.
Vermelho: “Ninguém sai imune de uma viagem”. Você fez o trajeto inverso do caminho de Chê. Qual a contribuição dessa experiência para o projeto?
CP: O saldo da viagem ainda está em processamento. Mas essa viagem foi responsável por tudo que eu faço hoje. A literatura, as poesias, os contos, o teatro e principalmente o cinema, voltado à produção de documentários. Depois que voltei da Argentina, fui morar durante um tempo em Salvador, na Bahia. A partir daí começa a se processar todo o meu interesse em devolver para a América Latina e para todas as pessoas com quem estive durante esse período, toda a experiência que passei no campo artístico e político. Todos os meus documentários têm um viés político, histórico e de formação. Passei por muitos lugares que ele tinha passado, e isso foi uma experiência muito boa.
Vermelho: Qual a sua percepção em relação ao resultado final do projeto?
CP: É uma ideia que vem sendo trabalhada há tempos. Fizemos a pré-estreia foi no espaço cultural Mané Garrincha. E para a minha surpresa, as pessoas pediram o livro depois de assistir ao filme. Ou seja, o documentário cumpriu seu papel principal de instigar a curiosidade dos telespectadores para conhecer o livro.
Mais do que tudo, esse trabalho foi um presente a Calica, no sentido de incentivar os jovens a refazerem essas viagens que eles fizeram há mais de 50 anos. E isso não pode acabar. As viagens por terra são insubstituíveis. Por terra e, se possível, de carona. Uma viagem dessas não tem um fim específico, o fim em si é somente viajar.