Marco Albertim: Susto
– Fecho a porta?
– Não precisa.
– Mas está fazendo frio!…
– Não precisa! Não estamos em nossa casa.
Por Marco Albertim
Publicado 17/06/2011 11:32
Mundinho temera ser morto pelo outro, mas não tinha quase nada no corpo, na sacola com o zíper estropiado. Deitado sem a camisa, com a calça que usara durante o dia e coberto com o único lençol tirado da sacola. Não seria roubado, não por Sansão, mesmo sabendo que ele tinha apenas a roupa do corpo.
– Mesmo assim, rapaz! O que vão pensar de dois machos trancados numa casa abandonada, com vizinhos a poucos metros?! Nem pensar!
Deitados, cada um num banco de madeira, comprido, sem caber a largura do corpo. Uma única sala, a casa tinha. Cadeiras quebradas, pés de bancos, de cadeiras, tudo solto, espalhado; num canto, um birô de madeira, o que restara dele.
– O que você está fazendo? – Desconfiado, Sansão.
– Procuro um lenço na sacola. Estou resfriado.
Sós, no escuro, os dois olhando para a porta aberta, para a janela com vidros quebrados. Distraindo-se no que a noite não escondera, não escondia, no distante ruído de vozes, de veículos, caminhões pesados. Um não recusando a companhia do outro, sem ninguém mais para trocar palavra, inda que desconfiados, com suspeitas mútuas.
Mundinho, 25 anos; Sansão, 30. Conheceram-se ali, na margem da rodovia, descarregando caminhões para a vistoria dos fiscais. No fim do dia, com as gorjetas, alimentaram-se com a sopa preparada numa birosca com balcão e paredes de madeira. Enquanto havia gente, conversaram, assuntaram sobre a rotina no posto fiscal; as chances de ganhos.
– Pra onde você vai? – quis saber Sansão.
– Pra São Paulo; se não der, fico no Rio de Janeiro.
– Estou vindo de lá.
– De São Paulo! Aqui não tem trabalho.
Madrugada, os ruídos dos automóveis rarearam. A cancela do posto fora levantada, suspensa. Os dois, com o sentido no mundo, distinguiram um meio de se defenderem das recusas do dia.
– Não posso voltar para lá.
– Por quê?
– Cumpri pena. Já sou conhecido dos homens.
– O que você fez?
– Matei um cara. Ele quis me enrabar. Foi em Santos, no cais.
– Cumpriu a pena toda?
– Não. Me comportei bem na cadeia.
– Como é a vida na cadeia?
– Aqui é melhor. Estou com sono. Vamos dormir.
Deram-se uma trégua nas suspeitas. Dia seguinte, moídos nas costas mas descansados dos pressentimentos, tomaram café juntos; café e pão seco, do dia anterior.
Na rodovia, a cancela fora reposta, os caminhões, parados, sendo vistoriados. Mundinho e Sansão, atentos, a poucos metros dos fiscais. Até o meio da tarde, nenhum fora descarregado. Os dois não almoçaram, não tinham conseguido dinheiro. Antes de a noite chegar, um caminhão carregado de toros de madeira serrados, retangulares, compridos, parou; parou sem que os fiscais fizessem sinal. O motorista desceu, perguntou aos fiscais onde contrataria dois homens para descarregar a madeira; não ali, mas na cidade, no armazém que comprara a madeira. Os fiscais apontaram para Mundinho e Sansão. Os dois subiram na carroceria. Na frente, na boleia, o motorista tinha de seu lado sua mulher.
O caminhão saiu da avenida, entrou num portão ao lado de uma loja, estacionou nos fundos. O armazém tinha trabalhadores de braços grossos, acostumados na lida dura. A encomenda não previra o uso de seus trabalhadores no descarrego da madeira. Sansão e Mundinho, desgarrados da família, da rotina com refeição em horário certo, diária, tiraram a camisa. O motorista julgara-os incapazes de cumprir todo o trabalho, mas entrevira a chance de lhes pagar pouco. Um trabalhador do armazém, quando os viu suados, rostos incendidos, não calou a impressão:
– Vou fica só pra ver…
Ás 18 horas, rogando ajuda sem nada dizer, Sansão e Mundinho tinham fome muita, sede e vontade de desistir.
– Vão aguentar? – perguntou o motorista já impaciente.
O trabalhador do armazém riu, riu com os braços cruzados para enrijecer a musculatura do corpo. Mundinho mirou-o com ódio, com ódio e inveja. Já se deparara com homens como aquele, vira-os tão ou mais suados quanto ele; votara-lhes pena, julgara-se fora do risco de se tornar peão. Agora tinha ódio àquele homem por ter-lhe inspirado inveja.
O motorista se deu conta de que teria que jantar com sua mulher; os dois, moços, recém-casados. Impacientou-se para ser gentil com a esposa. Chamou o trabalhador do armazém, pediu que também ajudasse no descarrego das madeiras, a troco de um dinheiro.
Às 19 horas o serviço teve fim. Mundinho e Sansão foram pagos com a metade do dinheiro que o motorista separara para eles; o trabalhador do armazém recebeu a mesma quantia, inda que tivesse começado do meio em diante.
Voltaram para o posto fiscal, para a birosca com a sopa gordurosa, fumegante. Antes, tomaram banho nos fundos da moradia improvisada, com água num balde, tirada do poço nos fundos da birosca.
Tarde da noite, a birosca vazia, a cancela suspensa, apenas um fiscal sentado sob a guarita na margem da rodovia. Sansão viera de São Paulo, carregara-se do modo de dizer do paulista. O cearense de Aquiraz, ouvindo-o falar, urdia-o conhecedor do mundo. A eloquência de Sansão, lesionando a gramática, impressionara-o.
Mundinho seguiu Sansão rumo à guarita. Sentaram-se numa das aberturas que havia nos dois lados do abrigo. No centro, o fiscal sentado numa cadeira trazida do escritório do posto, afastado da rodovia. Era um fiscal pobre, não concursado, mais ajudante que um fiscal. Os seus chefes, sabendo-o necessário, não tinham confiança nele; nele e nos iguais.
Suspeitavam que, ganhando pouco, recebiam propinas de caminhoneiros sem a nota fiscal da mercadoria.
– Salve, Sansão! – o fiscal cumprimentou. Mundinho não foi cumprimentado, só Sansão sabia o seu nome. No plantão, o fiscal passaria a noite e a madrugada ali. Os dois foram bem-vindos.
– Salve, xará! – Não tinha o seu nome, o fiscal, mas conveio que a palavra faria bem à imaginação do cearense. – Fica até que horas?
– Cinco da manhã.
– Quem vai lhe render?
– Não sei. É uma equipe de fiscais, vem de Fortaleza. A gente só fica de noite, de madrugada, quando não há movimento.
– Por que vocês não ficam durante o dia?
– Porque não confiam na gente…
O homem tinha uma voz arrastada, os cabelos ralos sobre o rosto escuro de feições finas. Vestia um fustão comum, calça cáqui, aparentando pouco mais de quarenta anos. Nos pés, um par de chinelos de borracha. Sobressaía o contraste com os homens do posto, operando rádios, telefones, calculando impostos.
– Por que não botam uma luz aqui? Fica no escuro à noite toda.
– É ordem da chefia. Pode passar algum motorista com raiva da apreensão, da multa… E atirar na guarita.
– Huum…
Mundinho não sabia o que dizer para cevar a conversa. Contentou-se em ouvir, mostrar interesse nos rumos de cada raciocínio.
As palavras de Sansão eram ouvidas pelo fiscal como um aluno absorvendo o palavreado do professor. Mundinho tinha noção disso, mas não dera, não dava a entender de que também se submetera ao jeito do paulista. Ali, é bom dizer, havia igualação entre os fiscais da base da hierarquia, carregadores como Mundinho e Sansão, o dono da birosca que os tinha como fregueses; e um soldado de polícia ou outro, trabalhando no Presídio Paulo Sarasate, nos fundos, recuado de tudo.
O fiscal bocejou sono. Não havia ninguém no escritório. Sansão, percebendo que o homem queria dormir sem a presença deles, levantou-se, despediu-se. Mundinho seguiu-o. Não havia barulho na rodovia. O céu juncara-se de estrelas. Ninguém para olhar. Ouvia-se, quem tivesse os ouvidos atentos, o estrídulo de grilos, o pio raro de uma coruja. Em volta, coqueiros, cajueiros e um vasto canavial.
Os dois deitaram-se nos bancos. Não trocaram palavras, não tinham o que dizer; não depois do malogro no armazém de madeira.
Na noite seguinte, o mesmo fiscal estava no plantão. Um soldado de polícia, fardado, liberado de seu turno, parou na guarita. Conversou com os três, discorreu sobre a rotina no presídio.
– O sargento passou um mês detido no quartel. Punição braba para um sargento. Ele me fez trabalhar três turnos seguidos, sem descanso. Fui falar com o tenente. Teve uma corregedoria. Ele foi punido. Sabe o que é isso? Abuso de autoridade!
– Aqui não tem abuso de autoridade, tem só desconfiança entre os chefes e a gente – completou o fiscal.
Sansão e Mundinho calados; inda que entre o militar e eles houvesse afinidades. O soldado estava fardado, tinha direito a viajar de ônibus sem pagar. Mundinho e Sansão mourejavam… Quando havia no que mourejar.
O encontro e a conversa se repetiram por três, quatro noites. Até Mundinho já arriscara um arremedo de conversa com os relatos do soldado. Sansão, já falante com o soldado, também o impressionou.
No primeiro domingo, o soldado daria plantão a partir das cinco da tarde. Passou na birosca, viu Sansão e Mundinho sentados, mudos, olhando desatentos para a rodovia.
– Já comeram?
– Não. – Os dois responderam ao mesmo tempo.
– Venham comigo.
Seguiram o soldado até o presídio, uma construção com apenas um pavimento, grande, cercada de cajueiros, jaqueiras, palhas de cana.
– Vamos jantar no presídio, no meio dos presos. Mas não tem problema. São todos mansos.
Na entrada, os dois foram revistados; rotina.
– O que é isso? – quis saber o soldado que revistara Mundinho.
Mundinho levantou a camisa, solta sobre o cinturão da calça. Mostrou o cabo de uma escova de cabelo, no bolso de trás, os fios dentro do bolso.
Sansão não estranharia a comida. Mundinho estava com fome, muita fome. Os soldados, alguns deles, também se juntaram aos presidiários, sentando-se junto às mesas dispostas no refeitório. Garfos e facas de mesa para dar conta do macarrão servido em travessas, macarrão com bife, tudo rosado no colorau. Os presos, vestidos com o uniforme cor-de-rosa, a mesma cor das paredes do presídio, dentro e fora. Dois deles percorrendo as mesas, com a travessa de comida, servindo a quem quisesse repetir. Sansão e Mundinho repetiram a refeição. Havia mangabeiras em volta do presídio. Serviram-lhes suco de mangaba.
Os dois voltaram para a birosca. O dono não fez comentário, olhando-os com os olhos cheios de perguntas.
A noite transcorreu fria, muda.
– Amanhã não vou procurar serviço. Vou pedir carona. Vou chegar a São Paulo pulando de cidade em cidade. Nem que demore um mês – adiantou Mundinho.
– Tem todos os documentos?
– Tenho.
– Boa sorte.
– É cedo pra gente se despedir. Vamos esperar até amanhã.
– A gente tá sempre se despedindo, sem dizer nada. Ninguém sabe o que vai ser do dia seguinte.
O dono da birosca fumava um cigarro feito ali, com cheiro forte, babando no papel. Sentado, olhando para o lado, com um braço sobre o balcão. Não tinha os sentidos na conversa dos dois, ou não dava a entender isso. Chegara ali para alimentar, vender cachaça a carregadores, a fiscais pobres, soldados, uma prostituta ou outra. Não sairia dali nunca.
Mundinho pegou carona no começo da noite do dia seguinte. Passara toda a tarde no lado da guarita. O caminhão estacionou sem nada na carroceria. Com a cancela impedindo a passagem, tivera que parar. Mundinho, com a sacola na mão, pediu-lhe a carona até onde pudesse ir, quanto mais longe dali melhor.
– Vou pra Russas. Mas se você dormir, boto pra baixo da boleia – Tinha medo de dormir, o motorista, não queria alguém dormindo de seu lado.
Russas, ainda no Ceará, deixaria Mundinho distante de Fortaleza, da moradia improvisada, da companhia impróspera de Sansão. Não teve tempo de se despedir dele, que se afastara para mijar. Não deixou recado com o fiscal, visto que estava em companhia de seus chefes.
O caminhão entrou em Russas quase meia-noite. Mundinho ficou na rodovia, num restaurante prestes a fechar as portas. Sentou-se num canto. Quando tudo ficou no escuro, foi para perto da porta fechada, deitou-se junto à parede, fez da bolsa o travesseiro. Passou dois dias ali catando uma carona que o levasse para mais longe, perto de seu destino. Alimentou-se com a comida dada pela dona do restaurante, em troca da limpeza do banheiro, do sanitário. Na manhã do terceiro dia, com restos da madrugada sumindo, foi acordado por soldados da polícia. Na direção, o soldado que o chamara para comer no presídio, olhando-o constrangido. Um sargento desceu do veículo:
– Onde está seu amigo?
Mundinho não tinha amigos.
– Sansão, rapaz! Diga onde ele está!
– Ficou no posto…!
– Ele matou o dono da birosca.