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Chico Buarque é a voz do Brasil para todos

Há 47 anos na estrada, sem dúvida é titular absoluto da seleção dos craques da MPB e da literatura brasileira, camisa 10. A sua trajetória enche de orgulho os brasileiros que amam seu país e valorizam este povo único, tão bem descrito em “Leite Derramado” e no resto de sua obra. Chico Buarque de Holanda completa 67 anos neste dia 19.

Por Marcos Aurélio Ruy

Não é uma data redonda, mas é uma data de celebração da cultura nacional na pessoa de um de seus principais representantes. Chico Buarque busca a novidade, mas não o novo pelo novo.

Como ele mesmo disse, a música brasileira já traz em si a mudança. Acrescentou conhecimento para a arte, misturando o erudito e o popular, influenciado pela Bossa Nova. Toda a obra desse autor está permeada da alma do brasileiro e do sonho de um Brasil para todos, para todos os brasileiros.

Nos anos 1960 ele escreveu um artigo no jornal Última Hora intitulado “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”, justamente para mostrar a sua lucidez revolucionária, que é a mesma de quem acredita no socialismo brasileiro como futuro. Foi pioneiro ao imprimir as letras das canções, em 1967, mostrando a semelhante preocupação com letra e melodia.
 
Seguindo passos de Noel Rosa, que urbanizou o samba, Chico ajudou a politizar a MPB com temas de resistência à ditadura e de denúncia das mazelas do capitalismo dependente. E com isso chamou ainda mais a atenção da censura…

Tanto que em certo momento apenas o aparecimento de seu nome bastava para a obra ser censurada, justamente numa pressão econômica, para ver se o autor cedia. Não cedeu e ainda cutucava a onça com vara curta, às vezes curtíssima, como a canção Cálice, em parceria com Gilberto Gil, que, tendo sido proibida, eles tocaram e cantarolavam num show, quando tiveram os microfones cortados.

Em 1974, lançou um disco com canções de outros compositores tendo como faixa-título, muito apropriada, Sinal Fechado, de Paulinho da Viola. Nesse mesmo LP aparece a música Acorda Amor, sob os pseudônimos Leonel Paiva e Julinho da Adelaide, uma maneira para driblar a censura. Teve inúmeras músicas e peças de teatro censuradas.

O cale-se da ditadura

Avesso a badalações. Chico é a antítese do padrão elitista do artista isolado, excêntrico e, portanto, distante do povo. E como todo grande autor que faz opção pela temática popular, nacional, social e política, passa a ser criticado por setores da elite, principalmente da direita raivosa, com olhos voltados para Miami. Taxado de modo jocoso de “unanimidade nacional”, nunca teve unanimidade.

A crítica conservadora sempre viu em Chico Buarque um “conservadorismo” musical, quando o oposto era a verdade justamente por ele respeitar as raízes populares da cultura e com essa temática trazer inovações para a música popular brasileira. Essa direita fala mal de Chico até hoje, com sempre falou mal de Lula, do PCdoB, do MST, enfim de tudo o que tem conteúdo contrário às suas propostas.

Apoiou-se nos ombros de grandes como Noel Rosa, Pixinguinha, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Cartola, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, João do Vale, mas principalmente João Gilberto, a quem Chico disse que procurava imitar, e o “maestro soberano” Tom Jobim, de quem virou parceiro e é homenageado na música Paratodos. Mas Chico tornou-se referência obrigatória em qualquer trabalho sobre a música popular brasileira e da literatura dos últimos anos. Talvez o nosso artista e escritor mais completo. Não se rendeu às facilidades do mercado e nem cedeu à ditadura – decidiu resistir. É certo que não foi único, mas esteve entre os principais com sua obra engajada politicamente e de uma qualidade sem parâmetros.

Apresenta pela primeira vez em 1964 num show no Colégio Santa Cruz, em São Paulo, a música Tem Mais Samba, onde já mostra ao que veio: ser a voz dos que não têm voz. Os versos dessa canção já diziam “Tem mais samba no homem que trabalha/Tem mais samba no som que vem da rua”.

No mesmo ano participa do Festival da Excelsior com a música Sonho de um Carnaval, interpretada por Geraldo Vandré. Nunca mais parou. Chico já demonstrava a preocupação com o cotidiano e com a vida do homem comum, dos trabalhadores, engajou-se na resistência à ditadura (1964-1985), como ele mesmo disse em entrevista “não poderia deixar de resistir”. A mídia o taxava de “velho”, “ultrapassado”, assim como sempre taxou os comunistas de “jurássicos”, simplesmente porque tudo o que significa defesa da cultura nacional e popular para a elite é antigo. Ao contrário, Chico disse ser “comunável”, ou seja, amigo dos comunistas, sempre buscou aproximar-se e valorizar a nossa cultura, o nosso país.

A Banda

O sucesso disparou com A Banda ao vencer o Festival da Record, em 1966. E no ano seguinte escreve a peça Roda Viva, que dá uma reviravolta em sua carreira. Passa a ser mais perseguido pela ditadura, a ponto de alguns anos mais tarde ser forçado a exilar-se na Itália, de onde voltou “fazendo barulho”, como aconselhou Vinicius de Moraes.

Já denunciava a mercantilização da cultura. Chico tem a obra permeada pela moça da favela que desce o morro de blusa amarela, batendo a panela e vem para o asfalto proclamar seus direitos, como na canção Pelas Tabelas, onde o social e o individual caminham lado a lado para construir uma nova sociedade, com justiça social, liberdade, onde todos sejam iguais em direitos e a vida seja respeitada. Canta o pivete que “vende chiclete e se chama Mané” e a expressão da mãe do guri, que “trouxe uma penca de documentos para finalmente” ela se identificar, como cantou a mãe que lutava para ter o corpo de seu filho assassinado nos porões da ditadura na canção Angélica dedicada a Zuzu Angel.

Essa mistura de temas e sons e a fineza com que trabalhou os temas populares é que a elite não perdoa em Chico Buarque, como em Construção, onde escolhe terminar todos os versos em proparoxítonas (palavras mais raras em nossa língua) para falar da vida de um operário da construção e da opressão capitalista do trabalho alienado e, portanto, do trabalhador insatisfeito. Em Cotidiano, diz “meio dia só penso em dizer não, depois penso na vida pra levar e me calo com a boca de feijão”. É o social com individual, da luta incessante de um povo para ter sua vida respeitada.

Chico nunca cedeu a facilidades. Brigou com os militares quando utilizaram A Banda num comercial para o serviço militar, rompeu com a Globo pela prática de censura que tomou conta da emissora. “Não concordo com o monopólio, com o tipo de censura que a Globo andou fazendo”, disse. Anos depois também afirmaria que “o fato de a Globo ser tão poderosa, isso sim eu acho nocivo”.

Com uma visão muito crítica disse que jornalistas têm certo poder e ele não está “para agradar poderosos”. Temática que sempre norteou sua obra. Ia a Cuba frequentemente com diversos artistas participar de festivais, quando Cuba e os cubanos eram proibidos no Brasil.

Há pouco tempo, o compositor carioca criticou a política econômica de FHC e o “príncipe” da sociologia, avesso à críticas contrárias, o chamou de “repetitivo”, justamente pelas conhecidas posições políticas de Chico em apoio ao ex-presidente Lula. Na eleição da presidente Dilma, o ano passado, Chico havia dito que votaria nela por ser a candidata do Lula; no embate do segundo turno voltou à cena afirmando que com o governo Lula “o Brasil é um país que é ouvido em toda parte porque fala de igual pra igual com todos. Não fala fino com Washington, nem fala grosso com a Bolívia e o Paraguai.”

No fim do da ditadura compôs Vai Passar, um verdadeiro hino à liberdade e ao Brasil. Mas sempre com sua lucidez peculiar cantou uma “alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chamava carnaval”, com a clareza de que ainda há muito que fazer para chegarmos ao Brasil que tanto desejamos.

Não cedeu a modismos, fez o trabalho como acreditou que devia ser feito. Mesmo suas obras feitas para momentos específicos nunca perdem a atualidade, como Apesar de Você, que narrava a ditadura, mas também que pode ser o neoliberalismo com suas teses antinacionais.

Também enfrentou problemas com algumas músicas. A sua música em parceria com o teatrólogo Augusto Boal, Mulheres de Atenas, foi criticada por setores feministas, quando o pretendido era justamente o contrário, era atacar a repressão sexual e a opressão machista. Mais grave ainda ocorreu com Geni e o Zepelim, quando as pessoas cantarolavam o refrão da música e jogavam areia em moças que praticavam topless nas praias, no Rio, num efeito totalmente adverso ao pretendido. Chico nunca mais cantou essa canção.

As críticas eram tantas que chegou um momento em que Chico parou de cantar e fazer shows, porque isso prejudicava a sua criação e por querer deixar suas músicas para serem interpretadas por “especialistas”, mas essa decisão não pôde durar muito, o público exigiu Chico Buarque interpretando suas canções. A pérola Meu Caro Amigo, em parceria com Francis Hime, foi feita para Boal no exílio e tornou-se um hino da resistência, assim como Apesar de Você e tantas outras. Esse choro inovador denunciava que “a coisa aqui tá preta”.

Música, teatro, literatura

Chico partiu de sua música, já muito censurada para o teatro na tentativa de dissuadir um pouco essa tenaz censura a si. Suas peças desde Roda Viva também foram confrontadas. Calabar, em parceira com o moçambicano Ruy Guerra, foi inteiramente proibida e inclusive diversas canções e capa do disco censurados após terem sido liberados. Escreveu também Gota D’Água, Ópera do Malandro, Os Saltimbancos.

A guerra Chico x censura se acentuava. O primeiro livro escrito em 1974, a novela Fazenda Modelo, uma metáfora do Brasil. Escreveu o livro infantil Chapeuzinho Amarelo (1979), a menina que tinha tanto medo, mas que foi superando até que a palavra lobo virou bolo, o bolo da vida e da superação. A dedicação à literatura ficou marcante a partir de Estorvo, publicado em 1991, aí vieram Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite Derramado (2009). Isso mostra que a sua criatividade e inventividade nunca parou de crescer. Aliás, o próprio Chico afirma que com o avanço de tempo tem ficado cada vez mais exigente.

Chico Buarque representa a cultura do Brasil para todos, do Brasil para os brasileiros. E se o objetivo do artista, do escritor, do intelectual é atingir o infinito, ninguém mais do que Chico atingiu essa meta, como na canção Tempo e Artista, cujos versos afirmam que “num relance, o tempo alcança a glória e o artista o infinito.”

E mesmo antes de John Lennon afirmar com razão que “a mulher é o negro do mundo”, Chico já cantava a alma feminina como ninguém. "Cavalo de sambistas, alquimistas, menestréis, mundanas, olhos roucos, suspiros nômades, a alma à deriva. Inventado porque necessário, vital, sem o qual o Brasil seria mais pobre, estaria mais vazio, sem semana, sem tijolo, sem desenho, sem construção", disse Ruy Guerra sobre o amigo Chico.

Recentemente ele disse gostar de rap, "o tipo de música que uma vez foi feita, por mim e por outros, com uma temática social, eles fazem isso melhor, porque vêm de lá. Eles falam para sua gente, vêm das favelas e são ouvidos por todos os tipos de pessoas. Eles têm algo a dizer, muito sério." Esse é o Chico das ruas, do carnaval, do samba, da valsa, do choro, da vida, do povo brasileiro. Como disse o cubano Pablo Milanés no programa “Chico & Caetano” (Globo) “Chico Buarque não é de Itália é de Hollanda, mas é do Brasil”.

Pela sua arte e por sua trajetória parabéns Francisco Buarque de Hollanda pelo seu 67º aniversário e obrigado por ser o nosso Chico Buarque.

É grande a dificuldade de selecionar algumas canções de Chico Buarque. Abaixo alguns vídeos:

Cálice (com Gilberto Gil, 1973)

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Olhos nos Olhos (1976)

Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci

Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você

Quando talvez precisar de mim
'Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz

O que Será (A Flor da Pele, 1976)

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

João e Maria (1977)

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você
Além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rock
Para as matinês

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país

Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Sim, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido

Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim

Pelas Tabelas (1984)

Ando com minha cabeça já pelas tabelas
Claro que ninguém se toca com minha aflição
Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela
Eu achei que era ela puxando um cordão
Oito horas e danço de blusa amarela
Minha cabeça talvez faça as pazes assim
Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas
Eu pensei que era ela voltando pra
Minha cabeça de noite batendo panelas
Provavelmente não deixa a cidade dormir
Quando vi um bocado de gente descendo as favelas
Eu achei que era o povo que vinha pedir
A cabeça de um homem que olhava as favelas
Minha cabeça rolando no Maracanã
Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas
Eu jurei que era ela que vinha chegando
Com minha cabeça já pelas tabelas
Claro que ninguém se toca com minha aflição
Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela
Eu achei que era ela puxando um cordão
Oito horas e danço de blusa amarela
Minha cabeça talvez faça as pazes assim
Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas
Eu pensei que era ela voltando pra
Minha cabeça de noite batendo panelas
Provavelmente não deixa a cidade dormir
Quando vi um bocado de gente descendo as favelas
Eu achei que era o povo que vinha pedir
A cabeça dum homem que olhava as favelas
Minha cabeça rolando no Maracanã
Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas
Eu jurei que era ela que vinha chegando
Com minha cabeça já numa baixela
Claro que ninguém se toca com minha aflição
Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela
Eu achei que era ela puxando um cordão

Trecho do romance “Leite Derramado” (2009)

“(…) O leite de Matilde era exuberante, agora mesmo ela encheu duas mamadeiras antes de dar o peito à criança. Eu gostava de vê-la amamentar, e quando ela trocava a criança de peito, às vezes me deixava bicar no mamilo livre. Com isso saímos um pouco atrasados, ficando as mamadeiras com a Balbina só por precaução, pois um jantar na minha mãe não passaria das onze. Nos tempos do meu pai, sim, os banquetes no casarão eram célebres por atravessar a noite, reuniam políticos de todas as correntes e as mulheres mais deslumbrantes da cidade. Ardiam tochas no jardim, a casa cheirava a alfazema, até as estátuas estavam de banho tomado, e eu menino gostava de circular pelos salões silenciosos e solenes, minutos antes do início da festa. Gostava de ser o dono daqueles espaços ainda imaculados, só eu com minhas sombras a deslizar no mármore, diante de garçons perfilados como sentinelas. Mas este seria um jantar reservado, sem garçons nem tochas, porque mamãe ainda guardava luto, e a muito custo concedera em abrir a mansão para um simples engenheiro. Como imagino o quanto lhe custara ao amor-próprio escrever seguidas caras à Companhia, até conseguir para o filho o antigo posto do marido.

Mas no que o vigia abriu o portão, me surpreenderam as fartas luzes em todas as janelas, como numa casa de muitas crianças. Com o jardim às escuras, o casarão parecia flutuar na noite, quase mais imponente que nos tempos de papai. Talvez mamãe quisesse deixar claro aos franceses que, no fim das contas, a casa dos Assumpção não lhes devia favor algum. Ela estava no piano, que desde a viuvez praticava sem soar, apenas roçando as teclas, para honrar meu pai e não esquecer Chopin. Passou comigo e com Matilde para o sofá luís-quinze ali mesmo na sala de música, onde o mordomo nos serviu champanhe e o seu refresco. Sentado entre as duas, eu me sentia um pouco tenso de postura, o sofá luís-quinze não era confortável.
 
Permanecemos um tempo sem assunto, ao som do pêndulo do grande relógio, enquanto Dubosc não chegava do seu habitual coquetel na embaixada francesa. Mamãe amava o silêncio, e para o ressaltar, em breve voltou ao piano e retomou sua valsa muda. Mas quando o relógio deu dez horas, fechou a tampa com estrondo, chamou o mordomo com um sininho e mandou servir o jantar. Matilde levantou-se num pulo, como era do seu jeito, e postou-se na minha frente para ser admirada, o vestido areia sobre o sol estampado em sua pele. Então pode ser que eu a tenha despido com os olhos, como se dizia, porém neste momento a memória me prega uma peça. Dispo Matilde com os olhos, mas ao invés de vê-la nua, vejo o vestido sem o corpo dela. Vejo-me a cheirar o vestido, a alisá-lo por fora e pro dentro, a agitá-lo par ver o caimento da seda, vou levá-lo. Em troca de seiscentos mil-réis, recebo o embrulho de uma das mãos velhas, cheias de pintas, e acho que era aí que eu queria chegar. Cheguei às mãos sarapintadas da madame, de quem vi meu pai comprar um vestido rodado azul-celeste, na mesma semana em que foi assassinado. (…)"