Max Altman: No Peru, mais respeito aos fatos e à democracia
Confirmada a vitória eleitoral de Ollanta Humala, os grandes meios de comunicação internacionais e brasileiros estamparam seu sentimento com manchetes e matérias em duas direções: “mal menor” e “reação do mercado”.
Por Max Altman
Publicado 10/06/2011 11:01
O povo peruano não votou majoritariamente no mal menor entre Humala e Fujimori. Elegeu conscientemente Ollanta Humala como seu presidente. Já em 2006, Humala saiu à frente no primeiro turno contra Alan Garcia, obtendo 30,6% contra 24,3%. No segundo turno, contra tudo e contra todos, com frágil base partidária, isolado e sem poder montar alianças, perdeu para Garcia por 52,6% contra 47,3%.
Desta vez, contando com o apoio dos partidos de esquerda e seu próprio Partido Nacionalista melhor estruturado, Ollanta obteve no primeiro turno, contra quatro fortes opositores – Alejandro Toledo, ex-presidente; Pedro Pablo Kuczynski, ex-ministro e apoiado pelo empresariado; Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori; Luis Castañeda, ex-prefeito de Lima –, robustos 31,7%.
Ou seja, insistentemente, um terço do eleitorado votava por um ‘bem maior’. No segundo turno, conquistando adesões de setores da classe média e de personalidades políticas, alcançou a vitória com 51,5% contra 48,5% de Keiko.
O voto consciente evidenciou-se também nas eleições parlamentares, que se feriram no mesmo dia do primeiro turno: a coalizão Gana Peru de Humala, de um parlamento unicameral de 130 assentos, obteve 47 cadeiras, tornando-se o maior agrupamento partidário, majoritário, embora com maioria relativa; a Fuerza 2011 de Fujimori, 37; Peru Posible de Toledo, 21; Alianza por El Cambio de PPK, 12; Solidaridad Nacional de Castañeda, 9; APRA de Alan Garcia, 4.
Quanto à reação do mercado, em especial dos especuladores, não passa de terrorismo econômico. Como o foi o anúncio de que latas de leite irão escassear nos supermercados. A postura da mídia, ao destacar a voz do mercado, simplesmente reflete os interesses das classes dominantes, ao mesmo tempo em que adverte como vão atuar: ‘está bem, você ganhou, mas as regras do jogo nós é que estabelecemos’.
Quando os privilégios dessa gente, que vive apregoando seu amor à democracia, à liberdade, aos direitos, são ameaçados, mandam às favas todos esses valores, dão as costas à voz do povo, partem para a violência institucional.
Todos os meios de comunicação de massa, impressos, televisivos e radiofônicos do Peru, com exceção do jornal La Republica, tudo fizeram para impedir o triunfo de Humala. O diário centenário El Comercio, porta-voz das elites locais e que detém uma poderosa rede de mídia, assumiu com total desfaçatez o papel de partido político anti-humala, distribuindo sem cerimônia as mais grosseiras calúnias e infâmias contra o candidato da coligação Gana Peru, batendo na tecla de sua ligação íntima com o presidente Chávez e praticamente orientando ideologicamente a campanha eleitoral de todos os demais concorrentes. Enfim, um exemplo acabado de campanha suja.
E também não é segredo para ninguém que o Departamento de Estado desencadeou todo um esforço político, financeiro e de propaganda para evitar que alguém de fora do establishment assumisse a presidência. Estamos falando, por exemplo, de Roger Noriega, conhecido homem-forte da diplomacia norte-americana para a região, que denunciou ter Humala recebido 12 milhões de dólares de Chávez para financiar sua campanha. E da CNN. Quem assistiu à entrevista da âncora Patrícia Janiot com Humala presenciou uma bateria de perguntas, na verdade um interrogatório, que expressavam as preocupações de Washington. Alan García também não foi um mero espectador. Valeu-se da máquina do Estado para engrossar a campanha direitista com o fim de derrotar Humala.
Muito se fala do sucesso do crescimento econômico do Peru que na última década alcançou a média de mais de 7% ao ano. Um verdadeiro “milagre peruano”. Não deixa de ser expressivo, apesar do milagre, de o Peru não ter conseguido reduzir a pobreza e a extrema pobreza nem a desigualdade social, tampouco enfrentar a lógica da acumulação capitalista que gera a concentração da riqueza e polariza a sociedade. A participação salarial no Peru é de 22% do PIB, contra cerca de 44% no Brasil. A porcentagem de trabalhadores informais é extraordinariamente alta, mais da metade da força de trabalho.
Aqui cabe a pergunta: o que quer dizer “milagre econômico”. Altos índices de crescimento a ditadura militar brasileira conseguiu alcançar também, ao lado uma perversa distribuição da riqueza, o que levou o Brasil a ser um dos países mais desiguais do mundo. Agora, se esse milagre significa vultosas rendas das grandes corporações mineiras, do sistema financeiro e das empresas multinacionais então o neoliberalismo existente no país incaico está sendo certamente bem-sucedido.
Contudo, se o sucesso significar inclusão social, distribuição de renda, justiça social, qualidade de vida para as grandes massas, independência econômica, proteção ambiental, em suma o “bom viver” segundo a expressão dos povos originários, o “milagre peruano” é um rematado fracasso. Pois foi essa grande massa de trabalhadores pobres oprimidos, o fator essencial da vitória de Ollanta Humala.
No momento em que a reação e o império tentam passar ao contra-ataque, com insólita agressividade, a vitória de Humala muda notavelmente o cenário geopolítico regional em sentido contrário aos interesses da Casa Branca.
De imediato, a Aliança do Pacífico conformada por países com governos de direita, México, Colômbia, Peru e Chile, persistentemente alinhavada por Washington com o fim de se contrapor à Unasur e à Alba, perdeu uma de suas duas peças vitais para o controle da Amazônia.
Reforça-se o clima de transformação política e social que se iniciou em nossa região nos últimos anos do século passado, visto que consolida um grande bloco de países progressistas e revigora a Unasur e todos os organismos regionais independentes, como o Banco do Sul, o Conselho de Defesa Sulamericano.
Entretanto, Ollanta Humala se verá diante de severos desafios. A batalha contra a direita peruana será obstinada e feroz em todos os terrenos. No plano político, o primeiro grande desafio será o de consolidar a governabilidade, montando em bases programáticas uma maioria sólida no parlamento. E, principalmente, ampliar sua base social em organizações e setores populares ainda distantes e em fatias da classe média, a par de consolidar a frente política que seu partido formou com os partidos de esquerda e centro-esquerda.
No terreno governamental, iniciar com vigor programas de inclusão social sem desarrumar a economia. Como fazê-lo, porém, num país em que a carga tributária é de míseros 15 por cento do PIB? Como pode o Estado com isso ser indutor do desenvolvimento com distribuição de renda? A taxação dos lucros extraodinários das mineradoras não será suficiente. Havia um imposto sobre transações financeiras, instituído em 2002 para financiar a educação no Peru, cuja meta de dispêndio deveria ser 6 por cento do PIB. Esse imposto foi reduzido no governo Toledo porque distorcia o mercado. Poderia ser recuperado. Sem recursos, Humala terá as mãos atadas para cumprir o programa anunciado nos palanques e nas ruas.
Ollanta Humala, no entanto, é um líder combativo e honrado que há muito vem denunciando as injustiças que se praticam contra o povo peruano. Há razões de sobra a alimentar as esperanças de que será fiel aos compromissos e ao povo que o elegeu.