Pepe Escobar: a morte da legislação internacional
Comecemos com a invocação de um ícone cultural do Ocidente, Dante: “Abandonai toda a esperança, vós que entrais” – porque a legislação internacional que conhecemos até aqui foi morta com uma estaca no coração.
Por Pepe Escobar, no AsianTimes
Tradução: Colectivo Vila Vudu
Publicado 14/05/2011 09:30
O “novo” darwinismo sociopolítico implica neocolonialismo humanitário, assassinatos seletivos – que são execuções extrajudiciais – e guerras combatidas por aviões-robôs comandados a distância, os drones, guerreadas em nome de uma “carga que pesa sobre o homem branco”[1] recauchutada.
No torvelinho de mentiras e hipocrisia que envolveu o assassinato de Osama bin Laden, a questão que ainda tem alguma relação com a justiça é como um homem desarmado, codinome “Geronimo”, foi capturado vivo e imediatamente executado à vista de uma de suas filhas – depois de invasão rápida como raio, a território de país teoricamente “soberano”.
Quanto à guerra pantanosa que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) guerreia contra a Líbia, fato é que a opinião pública ocidental engoliu a ‘explicação’ segundo a qual um ataque militar contra país soberano aconteceu sem qualquer violação da Carta das Nações Unidas. Pode-se falar de lobo (o neocolonialismo) em pele de cordeiro (uma “guerra humanitária”).
No coração dessa questão estão os próprios conceitos de lei internacional – aceita por todas as nações “civilizadas” – e do que seja uma guerra justa. Mas para as elites ocidentais, não passam de detalhes: houve debate de alto nível sobre as implicações de a ONU legitimar uma guerra da Otan, cujo objetivo último – e jamais declarado – é a mudança de regime.
Darwinismo à Tomahawks
A imunda operação no norte da África mostra-se ainda mais imunda, se se sabe que a guerra da Líbia foi conceito construído para atender duvidosos interesses da França; que a Arábia Saudita entregou aos EUA um voto falso, como se fosse voto da Liga Árabe, porque queria livrar-se de Muammar Gaddafi e, simultaneamente, ficar liberada para esmagar as manifestações pró-democracia no Bahrain; que a Líbia ofereceu ao AFRICOM do Pentágono a possibilidade perfeitamente viável de construir uma base militar africana; que um punhado de “rebeldes” sem eira nem beira seqüestraram os legítimos protestos dos líbios e tentam um golpe de estado, unidos a desertores do governo de Gaddafi; Jihadis ligados à al-Qaeda; e exilados como o informante da CIA general Khalifa Hifter, que viveu os últimos vinte anos nos EUA, em Virginia.
A coisa fica ainda mais imunda, se se sabe que, dia 19 de março, as elites financeiras de Washington/London/Paris autorizaram o Banco Central de Benghazi a comandar sua própria – a mando do ocidente – política monetária, oposta à política financeira estatal e completamente independente do banco central nacional líbio em Trípoli. Gaddafi trabalhava para livrar-se do dólar e do euro e para fazer do dinar-ouro uma moeda comum africana – e já reunira em torno de seu projeto muitos governos africanos.
A guerra contra a Líbia foi vendida globalmente sob o slogan “R2P” (ing. Responsibility to Protect, “Responsabilidade de Proteger”) – “novo” conceito do imperialismo humanitário que foi brandido à fartura em Washington pelas três chefes-de-torcida/rainhas amazonas: a secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton, a embaixadora dos EUA à ONU Susan Rice e Samantha Power, conselheira do presidente Obama.
Grande parte do mundo emergente – a verdadeira “comunidade internacional”, não aquela ficção que aparece nas páginas da mídia-empresa ocidental – viu aquela guerra como o que é: o enterro do conceito de soberania nacional, e o “reenquadramento” espertíssimo do texto original do art. 2, sec. 1 da Carta da ONU, que define o princípio da igualdade de todos os Estados soberanos.
Viram que os “decisores” que “decidiram” sobre a Responsabilidade de Proteger eram exclusivamente Washington e um punhado de capitais europeias. Viram que a Líbia está sendo bombardeada pela Otan – que não bombardeia nem o Bahrain, nem o Iêmen nem a Síria. Viram que os “decisores” nem tentaram negociar um cessar-fogo dentro da Líbia, ignorando os planos propostos pela Turquia e pela União Africana.
Atores poderosos como Moscou e Pequim, claro, também viram que o princípio da “Responsabilidade de Proteger” poderia ser invocado no caso de agitação no Tibete e em Xinjiang – e que o passo seguinte seria a Otan invadir território chinês. O mesmo no que tenha a ver com a Chechenia, com o fator extra de hipocrisia de que os chechenos têm sido há anos armados pela Otan através das redes ligadas à al-Qaeda no Cáucaso/Ásia Central.
E a América Latina também entra na lista dos possíveis “salvos” por intervenção “humanitária” da Otan, na Venezuela e na Bolívia.
Eis afinal o novo significado de “lei internacional”: Washington – com o Africom ou a Otan – intervém onde bem entenda, com ou sem resolução específica do Conselho de Segurança da ONU, em nome do princípio “R2P”; e todo mundo fecha os olhos para os danos colaterais, para os golpes (jamais declarados) e para as legiões de refugiados que atravessam o Mediterrâneo e que ninguém vê ou considera.
Quanto ao fato de por que Gaddafi é atacado, enquanto os al-Khalifas no Bahrain, Saleh no Iêmen e Bashar al-Assad na Síria se safam, é simples: você não é ditador do mal, se é um dos “nossos” filhos da puta, quer dizer, se joga pelo “nosso” manual. O destino dos “independentes” como Gaddafi é ser assado e trinchado. E a coisa fica ainda mais fácil, se o ditador acolher uma base militar em seu território, ou, como os al-Khalifas, toda a 5ª Frota dos EUA.
Se os al-Khalifas não fossem lacaios dos EUA e lá não houvesse base militar norte-americana, Washington não teria problema algum numa intervenção militar a favor dos xiitas pacíficos e na maioria favoráveis à democracia que se manifestam contra uma tirania sunita sanguinária que precisa da Casa de Saud para reprimir o próprio povo.
E há os problemas de lei. Imaginem o que seria Gaddafi no banco dos réus. Corte marcial, ou corte civil? Corte canguru – como com Saddam Hussein –, ou garantir-lhe todos os meios “civilizados” de defesa e julgamento? E como comprovar crimes contra a humanidade? Como usar informações obtidas sob tortura, não, desculpem, sob “interragatório superestimulado”? E quanto tempo duraria o julgamento? Anos? Quantas testemunhas? Milhares?
Muito mais fácil resolver tudo com um Tomahawk – ou um balaço na cabeça –, e chamar a coisa de “fez-se justiça”.
[1] No orig. “white man’s burden”. É título de um poema de Rudyard Kipling, publicado em fevereiro de 1899. No poema, Kipling exige que os EUA assumam, como império, “a carga que pesa sobre os homens brancos”. A publicação coincidiu com o início da guerra dos EUA contra Filipinas e com a ratificação, pelo Senado dos EUA, do tratado que punha Porto Rico, Guam, Cuba e as Filipinas sob controle dos EUA. É poema racista, mas foi muitas vezes citado como ‘um hino’ a favor do imperialismo estadunidense e, pela mesma razão, tem sido ferozmente criticado em todo o planeta. A expressão “a carga do homem branco” aparece em vários contextos como metáfora de “imperialismo” (NTs, com informações de History Matters).