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Edu Lobo: o grave e o agudo, música e letra em Beatriz

Ao cantar "Beatriz", Edu percebeu um detalhe no casamento entre letra e melodia que muito o impressionou: a nota mais baixa da canção coincidindo com a palavra chão ("Me ensina a não andar com os pés no chão") e a mais alta, com a palavra céu ("Se ela um dia despencar do céu"). “Conversei com Chico a respeito. Perguntei a ele se era intencional ou se se devia a um estranho acaso. Você conhece o Chico. Não respondeu, e até hoje não sei o que aconteceu.”

Quando Flávio Pinheiro, diretor do Instituto Moreira Salles, convidou Edu Lobo para reviver um de seus primeiros LPs na série que o IMS vem apresentando sobre grandes discos brasileiros, o compositor o surpreendeu com uma pergunta:
– E por que não "O Grande Circo Místico"?.

Pinheiro não tinha pensado tão alto. Ter Edu interpretando as canções – música sua e letra de Chico Buarque – para um dos mais admiráveis trabalhos conceituais da discografia brasileira seria um acréscimo de luxo à série iniciada em tempo de samba, primeiro com a dupla Wilson Moreira & Nei Lopes e depois com Monarco. Pois é justamente este disco que vai ser tocado nesta terça-feira, às 20h, no auditório do IMS.

Primeiro, 'Jogos de dança'

Edu Lobo contará com o acompanhamento de seu próprio violão, o piano de Cristóvão Bastos e os sopros de Carlos Malta, os mesmos que cuidarão dos temas instrumentais. Entre uma canção e outra, o compositor será entrevistado pelo jornalista Hugo Sukman sobre a história do LP. Uma história que começou com Edu compondo um balé, "Jogos de dança", que acabou chegando ao conhecimento do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba. Depois de encenado, o mesmo Guaíra, através de Naum Alves de Souza, encomendou a Edu novo espetáculo de dança:

– Gosto de lembrar uma história que aconteceu com Cole Porter – diz ele. – Alguém perguntou a ele de onde vinha sua inspiração para compor tão belas canções. Resposta: "Vem do telefonema do produtor". Houve um tempo que a gente fazia música a toda hora, visitando Vinicius (de Moraes), indo um à casa do outro. Sempre havia alguém sugerindo ou pedindo uma canção. Aquele tempo passou. Hoje, só nos inspiramos quando nos encomendam algum trabalho.

O de Naum tinha apelo todo especial para Edu, um apaixonado pelo teatro musical: o novo balé seria baseado em "O Grande Circo Místico", poema de Jorge de Lima publicado em 1938 no livro "A túnica inconsútil". Edu propôs um balé cantado, com os números de dança acontecendo sobre canções:

– No fundo, eu pensava num musical. Daí querer Chico Buarque como parceiro, já que tínhamos, juntos ou separados, experiência em musical.

Naum topou, Chico também, e o novo balé começou a nascer. O poema de Jorge de Lima não é exatamente um roteiro, de balé ou de musical. Já nos primeiros versos surge uma série de personagens que não chegam a viver uma história: "O médico imperial da imperatriz Teresa, Frederico Knieps, resolveu que seu filho também fosse médico/ Mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes/ Com ela se casou, fundando a dinastia do circo Knieps/ De que tanto se tem ocupado a imprensa."

– Tanto os personagens como a própria história, foram construídos pelas letras do Chico – explica Edu.

Letras escritas sobre melodias escritas antes. Segundo Edu, tudo em tempo, fluindo, sem qualquer problema. A única exceção era justamente uma de suas primeiras tentativas, valsa de melodia acidentada.

– Chico ia completando as outras letras e deixando essa, que chamávamos de "valsona", para depois – conta Edu. – Parecia que não conseguia fazê-la. Um dia, sugeri a ele que fizesse uma letra sobre a reação do público diante do artista de circo, sempre em dúvida se era desse jeito, se era daquele outro, se era bom, se era mau, como costuma acontecer com certas plateias. Na mesma hora ele me disse que ia para casa cuidar da "valsona".

Chico foi e voltou, depois de transformar a equilibrista Agnes na atriz Beatriz, melhor rima que a outra, e uma grande canção ganhou vida: "… Será que ele é moça?/ Será que ela é triste?/ Será que é o contrário?/ Será que é pintura/ O rosto da atriz?".

Dias depois, sozinho, ao cantar mais uma vez "Beatriz", Edu percebeu um detalhe que muito o impressionou: a nota mais baixa da canção coincidindo com a palavra chão ("Me ensina a não andar com os pés no chão") e a mais alta, com a palavra céu ("Se ela um dia despencar do céu").

– Conversei com Chico a respeito. Perguntei a ele se era intencional ou se se devia a um estranho acaso. Você conhece o Chico. Não respondeu, e até hoje não sei o que aconteceu.

"Beatriz" é certamente a canção mais marcante do balé. Foi gravada soberbamente por Milton Nascimento, dos poucos com extensão de voz para cantá-la. Acabou dando nome à neta de Edu. Mas há outras preciosidades que ajudaram a fazer do disco, como se diz, um clássico. "O Grande Circo Místico" é muito remontado, pelo Guaíra e outras companhias. O disco, com orquestrações de Chiquinho de Moraes ("Não conheço quem escreva tão bem", garante Edu), é a trilha oficial, com Jane Duboc, Gal Costa, Gilberto Gil, Simone, Tim Maia, Zizi Possi e os autores, além de Milton.

– Para este espetáculo, vamos ensaiar apenas quatro temas, já que os outros sete eu tenho apresentado em shows. ~

Fonte: João Máximo, para O Globo