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Jaime Sautchuk: Língua e Revolução

Volta e meia me pergunto se as inscrições que vejo em muros, pichadas ou em cartazes são mesmo aquilo que estou vendo. Há coisas do arco da velha. Quando são de lojas ou anúncios de porcarias, tudo bem. Mas, quando são mensagens políticas, de mobilização popular por alguma causa justa, não dá para aceitar.

Por Jaime Sautchuk*

Aí, sempre me lembro de Graciliano Ramos. Li isto lá atrás, na minha adolescência, mas nunca mais esqueci. No romance Angústia, que ele escreveu em Maceió, a trama é de um sujeito comum, apaixonado por uma mulher também de classe média baixa, vamos situar assim, só que transava com gente das altas rodas, por prestígio e dinheiro. E ele passava batido.

Numa dessas andanças, a moça engravidou e, como era normal, o endinheirado tratou de arranjar um aborto. Foram, pois, a uma parteira num bairro qualquer, mas o personagem os seguiu, para ver o que sucederia. A mulher tinha até uma plaqueta na casa, e nela escrito apenas “D. Albertina – parteira”.

O nosso personagem se ajeitou num boteco em frente. Com dinheiro pouco e muita sede, pediu uma cachaça bem chorada e ficou olhando para a rua. Num muro em frente, havia uma inscrição. Mas aí eu deixo para o Graciliano contar:

“Proletários, uni-vos”. Isto era escrito sem vírgula e sem traço, a piche. Que importavam a vírgula e o traço? O conceito estava dado sem eles, claro, numa letra que aumentava e diminuía. Talvez a datilógrafa dos olhos agateados morasse por ali, num dos becos que iam ter à rua suja. Escondida num quarto escuro, a datilógrafa dos olhos agateados ocupava-se em bater na máquina um boletim subversivo. Um irmão decoraria dele a frase mais incendiária, que seria copiada a carvão no muro de uma igreja de arrabalde.

Aquela maneira de escrever comendo os sinais indignou-me. Não dispenso as vírgulas e os traços. Quereriam fazer uma revolução sem vírgulas e sem traços? Numa revolução de tal ordem não haveria lugar para mim.

Está na cara que o personagem é baseado no próprio autor, que misturava com maestria a militância política com as letras, seu ganha-pão nos jornais de então. Aliás, a obra mais prima de Graciliano, que é Vidas Secas, foi escrita em capítulos num jornal do Rio de Janeiro, como se fosse um seriado de TV dos nossos dias.

Basta ler e sentir a divisão de capítulos para observar isso, pois nos permite até ler em partes, como se fossem contos, com começo, meio e fim, até chegarmos, etapa por etapa, ao final do romance. Por isso, foi tão linear para Nelson Pereira dos Santos levar o romance para o cinema, num filme também genial.

Mas não era disso que eu queria falar. Os grandes revolucionários, desde Lênin, Ho Chi Minh, Mao, Fidel, Che Guevara, Lumumba e por aí afora, sempre escreveram de modo a serem compreendidos por todos. Não é o caso de erudição, mas de certezas no trato da língua. Textos muito rebuscados, que uns chamam de acadêmicos, normalmente escondem desconhecimento de causa.

Lênin chega a ser encantador no seu jeito de escrever. A editora oficial da antiga União Soviética editou as obras (quase) completas dele, em 47 robustos volumes, em várias línguas, menos em português. Com índices rigorosos, em dois volumes, é possível buscar escritos sobre os mais diversos temas, e ver como ele tinha cuidado em explicar as coisas direito.
E entre Marx e Engels havia discussões enormes sobre formas de apresentar seus textos. Marx engoliu o Manifesto Comunista em seco, por achar que tinha ficado muito superficial. Imaginem se tivesse aprofundado.

É certo que não é muito fácil destrinchar O Capital, por exemplo. Mas levemos em conta que, neste caso, a complexidade é decorrente da necessidade de embasar uma teoria que mudou e ainda vai mudar o mundo. E, no final das contas, ninguém nunca conseguiu explicar melhor o capitalismo do que ele. Ou seja, a obra passa as idéias com clareza.
Nos muros ou na internet, pois, cuidar da escrita é sempre um dever de quem luta por um mundo melhor. Desde que com vírgulas e traços…

* Jaime Sautchuk trabalhou nos principais órgãos da imprensa, Estado de S. Paulo, Globo, Folha de S.Paulo e Veja. E na imprensa de resistência, Opinião e Movimento. Atuou na BBC de Londres, dirigiu duas emissoras da RBS