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Rei muda conduta e Marrocos retoma caminho para reformas

Às 20h da quarta-feira, 9 de março de 2011, a programação de todas as redes de televisão marroquina é interrompida subitamente pelo hino nacional. Uma voz solene anuncia: “Sahibou el jalala youkhatiboukoum” (ou “Sua Majestade vai falar para você”, em árabe). Na tela, o rei Mohamed VI aparece de pé. À sua direita, seu filho, o príncipe herdeiro Moulay Hassan, de oito anos e, à sua esquerda, seu irmão, o príncipe Moulay Rachid.

Lamia Oualalou(*)

O povo já não é tão acostumado a este tipo de cerimônia. Hassan II, o pai de Mohammed VI, que reinou durante 38 anos, gostava muito de discursos. Mas hoje os marroquinos estão nervosos.

Porque, ao contrário do pai, “M6”, como é chamado pela população, odeia falar em público. Ele o faz somente em poucas ocasiões formais, como a Festa do Trono, que comemora o aniversario de sua entronização, em 31 de julho 1999.

O discurso é uma surpresa que poderá marcar a história do Marrocos. A fala do rei é curta, apenas onze minutos. Mas é suficiente para mudar o cenário político do país, com a proposta de uma reforma da Constituição em sete pontos. Pelo menos três deles podem marcar uma ruptura, ou uma transformação profunda do sistema político do país: a separação dos poderes, a responsabilidade do governo (que implica que este terá uma autonomia de fato em relação ao rei), e a independência do Poder Judiciário.

“Este é, de longe, o discurso mais importante do reinado de Mohamed VI”, afirma o jornalista Hamid Barrada, redator-chefe do semanário Jeune Afrique. O rei assegura que esta reforma era pensada ha muito tempo, mas é claramente uma resposta às manifestações dos jovens marroquinos mobilizados pelo Facebook e pelo entusiasmo criado pela queda dos ex-presidentes tunisiano, Zine el Abidine Ben Ali, e egípcio, Hosni Mubarak.

Em 20 de fevereiro, quase 50 mil pessoas saíram às ruas em 60 cidades do reino para pedir “mudanças”, e “menos poderes para a monarquia”. Cartazes proclamavam “o rei deve reinar e não governar” ou “o povo quer uma nova Constituição”.

No dia seguinte, o rei reagiu dizendo que não iria ceder à “demagogia e à improvisação”. De acordo com o cientista político Mohamed Tozy, professor da universidade Hassan II, em Casablanca, e do Instituto de Estudos Políticos de Aix-en-Provence, na França, “este discurso não é a cara dele. Parecia Hassan II, que não poderia conceber de forma nenhuma modificar sua política sob pressão da opinião publica.

Com o discurso de 9 de março, M6 mudou de rumo, restabelecendo, aos olhos da opinião publica, as esperanças e o entusiasmo que ele suscitara no início de seu reinado. Naquela época, era apelidado de “rei dos pobres”, em referência ao compromisso social, quando ele ainda era o príncipe herdeiro. Suas primeiras decisões levaram a esperar uma “primavera marroquina”.

Quatro meses após assumir o cargo, ele se livrou de Driss Basri, o todo-poderoso e temido ministro do Interior de Hassan II, responsável durante duas décadas pela repressão implacável contra todos os opositores do regime. Logo depois, ele criou uma comissão de Equidade e Reconciliação, encarregada de investigar todas as violações dos direitos humanos cometidas durante os "anos de chumbo" de seu pai, Hassan II. Uma decisão inédita no mundo árabe, parabenizada pelas organizações de direitos humanos mundiais.

Um programa televisivo diário convidava os militantes de esquerda que sobreviveram à repressão para contarem suas histórias. O povo descobriu um segredo. Em março de 2000, Ahmed Marzouky, uma das vítimas, publicou "Tazmamart, cela 10” no qual ele narra seus 16 anos de detenção em um dos piores porões da monarquia. O livro não foi censurado – algo inimaginável ainda um ano antes – e se tornou o best-seller da década.

No mesmo período, M6 fez sua primeira turnê no Rif, uma região montanhosa ignorada pelo pai durante mais de 40 anos, após a feroz repressão organizada em 1958. Ele foi recebido como um herói, e a estratégia foi repetida nas outras regiões negligenciadas por Hassan II no norte e no leste do país, na fronteira com a Argélia. Pouco depois, o rei reconheceu publicamente a importância da cultura Amazigh, dos berberes, que representam mais da metade da população, terminando com o mito de um Marrocos exclusivamente árabe.

Em 2004, ele atacou outro tabu: o do estatuto das mulheres em um país islâmico. Assim, ele ordenou a reforma da “Moudawana”, como é chamado o Código da Família, mudando a situação das mulheres perante os homens e a Justiça. Elas ganharam direitos, como a responsabilidade conjunta da família, a não-obrigatoriedade de um tutor para casar e o fim do voto de obediência ao marido. A lei também dificulta a existência da poligamia e o repúdio da mulher pelo marido, dando direito às mulheres de pedir divórcio. Uma revolução no mundo árabe. Economicamente, a situação melhorou. A taxa de pobreza reduziu lentamente e canteiros de obras foram inaugurados em todo o país.

Após as reformas, papel do monarca na condução do país deverá ser reduzido.

A ruptura política com o passado, porém, não durou muito tempo. "O primeiro problema grave ocorreu em 2002”, lembra Hamid Barrada. "Na época, a USFP (União Socialista das Forças Populares), o principal partido da esquerda, tinha vencido as eleições legislativas. No entanto, o rei optou por nomear um tecnocrata próximo dele como primeiro-ministro, ignorando as regras democráticas”, acrescenta. Em vez de protestar, a esquerda abaixa a cabeça: a USFP aceita participar do governo, nomeando vários ministros, apesar de não chefiar o Executivo.

Reforçado pela falta de reação, M6 continua em sua conquista pelo poder absoluto. Após ter deixado pensar que iria flexibilizar o protocolo real, o soberano assume todas as encenações do regime. Na festa do trono, ele reproduz aquela que o historiador Abdellah Laroui chama de “coreografia da subserviência”: o soberano vestido de branco, a cavalo, avança no meio de uma multidão de pessoas que se curvam, enquanto os funcionários do palácio, vestidos com o barrete vermelho típico dos antigos escravos, gritam mensagens de bênção.

Conforme a Constituição, é o rei quem preside as raras reuniões do Conselho de Ministros, realizadas em vários palácios espalhados por todo o reino. A esquerda, que fez uma oposição dura ao pai, assistiu à concentração de poderes do filho praticamente sem esboçar reação. "Este é o legado de Hassan II: instituições em bom funcionamento e elites políticas domesticadas", analisa Hamid Barrada.

Opositores viram apoiadores

Cansados pela repressão ou seduzidos pela cooptação, os opositores de outrora viraram torcedores do rei, convencidos, já desde os últimos anos do reinado de Hassan II, da necessidade de reforçar a instituição monárquica. "A USFP não queria romper com Mohammed VI, como rompera há 40 anos com Hassan II”, explica Fathallah Oualalou, membro da direção política do partido, ex-ministro da Fazenda e atual prefeito de Rabat, a capital do país. Essa cautela refletia a suposição de que, ao contrário do pai, M6 fosse um rei fraco. Além disso, ainda hoje a maioria da população vê o rei como o responsável por garantir da unidade e da soberania territorial.

Como “Comandante dos fiéis”, descendente direto do profeta Maomé – e, portanto, segundo a tradição, porta-voz de Deus na terra – o soberano aparece também como a principal proteção contra o avanço do islamismo fundamentalista. O Marrocos não precisou esperar pelos ataques de 11 de setembro de 2001 para desenvolver o medo dos "barbudos". O confronto entre os islâmicos e o exército na vizinha Argélia, na década de 1990, tinha causado uma guerra civil que matou mais de 200 mil pessoas, e deixado um marco profundo nos países vizinhos.

Em 16 de maio de 2003, cinco bombas explodiram quase simultaneamente em Casablanca, a capital econômica do país, fazendo 41 mortos e mais de cem feridos. Estes ataques suicidas, perpetrados por militantes islâmicos moradores de uma favela da periferia da cidade, lembraram de forma trágica como a pobreza e o desespero constituíam um sério perigo ao reino. Mas, em Rabat, o poder fez desse incidente um pretexto para reforçar o autoritarismo. "Depois de anos de melhorias, voltamos a ter presos políticos, todos islâmicos", diz Latifa Bouhsini, uma feminista muito ativa no movimento dos direitos humanos.

Entretanto, ao contrário dos militantes de esquerda reprimidos por Hassan II, o destino dos presos “barbudos” não provocou, nem provoca, indignação ou solidariedade. As grandes potências ocidentais fecham os olhos, e os EUA chegaram a terceirizar para o Marrocos o encarceramento de alguns prisioneiros, para não ter que torturá-los em território norte-americano – as “extraordinary renditions” efetuadas pela CIA (Central de Inteligência Norte-Americana) durante o governo de George W. Bush. "Os partidos de esquerda não se mobilizaram para os islâmicos", lamenta Bouhsini.

Jovens voltaram a se mobilizar e protestos tomaram Casablanca em 20 de fevereiro.

Nas ruas, nos cafés, nas medinas – centros populares das cidades – de Rabat e Casablanca, todos repetem o mesmo conceito: "Nós não queremos fazer a revolução contra o rei, Marrocos não é a Tunísia ou o Egito. Mas o rei deve fazer um gesto para mudar as coisas”.

Ao anunciar uma profunda reforma da Constituição, Mohamed VI surpreendeu pela rápida capacidade de adaptação aos ventos de mudança que estão varrendo o Maghreb. "Ele reagiu à pressão interna e externa, vendo o que aconteceu no mundo árabe, e levando em conta a percepção das potências ocidentais", analisa um ex-alto funcionário do governo, que prefere manter o anonimato. "Este é um ponto comum da dinastia Alaoui, ausente em outros países do mundo árabe: saber olhar para fora. É por isso que Hassan II anunciou as aberturas nos anos 1990. Agora, é o mesmo reflexo”, segue.

Com seu discurso de antecipação, o rei provavelmente salvou a monarquia. Resta saber se os jovens marroquinos vão conseguir salvar a revolução que acaba de começar. "Tudo dependerá da relação de forças, temos de permanecer vigilantes, sair na rua, nos organizar", diz El Kacem Basti, um militante de esquerda de quarenta anos, feliz de ver os jovens se mobilizarem pela primeira vez.

Ele voltou a protestar no último domingo (20/03), outra convocação “Facebook”, para mostrar ao rei que a vontade de mudança permanece intacta. "Esperamos que com o discurso de M6, os jovens não cantem vitória antes do tempo. Se for assim, estamos perdidos”, conclui.

(*) Enviada especial a Casablanca

Fonte: Opera Mundi