"Ficha Limpa sim, mas com respeito à democracia"

Abaixo artigo elaborado pelo membro do Comitê Estadual de Goiás, Paulo Victor Gomes sobre a Lei da Ficha Limpa. 

Em primeiro lugar é fundamental destacar a importância da Constituição Federal (CF) e do conceito de “segurança jurídica” para a consolidação da democracia brasileira. Nossa República ainda engatinha, e nossas instituições precisam se fortalecer para que não voltemos a nos submeter a regimes de exceção como a ditadura militar implantada em 1964. A Carta Magna de 1988 cumpre papel imprescindível nesse processo.

Vale lembrar o contexto histórico-político no qual se insere a última Assembléia Nacional Constituinte. O país saía de um regime autoritário que fechou o Congresso Nacional e cerceou a liberdade do povo brasileiro. O texto constitucional foi forjado no calor da reconquista dos direitos democráticos, e pretendeu eliminar as brechas que pudessem permitir um possível retorno às trevas da opressão. 

 
Chegamos, então, ao conceito de segurança jurídica. Tal valor está intensamente relacionado ao Estado Democrático de Direito. Os princípios que norteiam o ordenamento jurídico devem estar diretamente conectados com os direitos fundamentais, individuais ou coletivos. A defesa da estabilidade desse ordenamento se dá fundamentalmente através da garantia da inviolabilidade da Constituição ou de qualquer uma de suas normas, e se confunde com a sustentação da própria democracia. 
 
Onde a Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) se encaixa nessa discussão? O projeto de louvável iniciativa popular foi aprovado “com o escopo de purificação do mundo político, habitat dos representantes do povo”, como bem ressaltou o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, a ânsia pela moralização imediata do processo eleitoral fez com que graves afrontas à democracia fossem embutidas no texto da lei. 
 
Volto a salientar que um mero choque com qualquer valor introduzido na sociedade brasileira pela CF deve ser encarado como uma afronta à democracia. A Lei da Ficha Limpa não peca apenas uma, mas diversas vezes ao ir de encontro com vários princípios constitucionais. Me limito a citar cinco deles, que considero os mais graves. 
 
A primeira diretriz que trago ao debate é o princípio da irretroatividade da lei em prejuízo do réu. Nenhum ato pode ser considerado ilícito se praticado anteriormente a instauração de legislação correspondente. Isso para evitar que determinado legislador utilize de sua posição para perseguir algum adversário político, por exemplo. Ao estabelecer uma punição (a inelegibilidade) para pessoas que foram condenadas antes da publicação da lei, a LC135/2010 fere frontalmente este princípio. 
 
Além disso, há o fato da chamada Ficha Limpa estabelecer punições idênticas para infrações diversas. Nossa Carta Magna estabelece que violações diferentes sejam tratadas pelo sistema jurídico com sanções diferentes. A lei em questão determina, por exemplo, que alguém condenado por corrupção receba a mesma punição que alguém que cometeu um erro formal na prestação de contas de campanha eleitoral. Devemos convir que trata-se de um completo absurdo.           
 
Falta à Lei Complementar 135 o respeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Como afirmou o ministro Dias Toffoli (STF), “há tratamento assimétrico da lei (…) quando ela limita a restrição ao ius honorum às pessoas nela indicadas (‘o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais’), deixando os demais agentes políticos ou públicos a descoberto”. É como se casuísticamente o legislador estivesse escolhendo as pessoas a serem atingidas pela lei. 
 
Há uma grave afronta ao princípio da presunção de inocência (inciso LVII, do art. 5º da CF de 88), quando se determina como atos ilícitos as renúncias aos mandatos para escapar de cassação. A não ser que um processo alcance a fase de trânsito em julgado, não podemos considerar o processado como “culpado”. O Ministro Toffoli chegou a classificar este ponto como “manifestação de abuso do poder de legislar”. 
 
Por fim, trago à tona o debate que prevaleceu no último julgamento do STF acerca do tema: o princípio da anualidade da lei eleitoral. O Art. 16 da CF de 1988 deixa claro que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. O questionamento de nossa Corte Suprema foi sobre o fato de a Lei da Ficha Limpa alterar ou não o processo eleitoral de 2010. 
 
Dias Toffoli afirmou que “a inovação no campo de inelegibilidades afeta o processo eleitoral, por acarretar a participação menor de postulantes a cargos políticos, não sendo possível conferir a normas dessa natureza a imediata eficácia”. Estou de pleno acordo! Ora, se a quantidade de candidatos na disputa não alterar o processo eleitoral, nada é capaz de fazê-lo. Tanto altera que estamos até hoje, quase seis meses após o término do pleito, discutindo quem está ou não está eleito. Sendo assim, seria crime de lesa-pátria aplicar a lei nas últimas eleições. 
 
Como afirmou o Ministro Fux, “por melhor que seja o direito, ele não pode se sobrepor à Constituição”. Toffoli, em outra ocasião, declarou que “muitas vezes compete ao Poder Judicial o desagradável papel de restringir a vontade popular em nome da proteção do equilíbrio de forças democráticas”. Não sou contra a moralização das eleições, apesar de acreditar que a “ficha limpa” deva ser um critério de escolha dos eleitores antes de norma estabelecida, mas nem por isso caio no “populismo jurídico”, de certos setores da sociedade que preferem atender ao clamor popular de forma irresponsável. 
 
Com disse Fux, “a tentação da aplicação imediata é muito grande, até para quem vota contra, mas deve ser resistida, sob pena de comprometimento de valores mais elevados”. A LC135/2010 é uma lei para a posteridade. Enquanto isso, o Congresso Nacional e a sociedade brasileira devem se empenhar em sanar os erros cometidos e aperfeiçoar essa importante ferramenta de combate à corrupção.
 
*Paulo Victor Gomes é estudante de Ciências Sociais na UFG, e membro do Comitê Estadual do Partido Comunista do Brasil (PCdoB-GO)