Se a polícia age fora da lei, vira quadrilha, diz subprocurador
As inúmeras denúncias de violência policial, formação de milícias e grupos de extermínio colocam em debate a origem de tanta truculência por parte daqueles que deveriam assegurar a vida humana. Para o subprocurador-geral da República, membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Ministério da Justiça e ex-membro do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial, Wagner Gonçalves, o comportamento criminoso por parte da polícia tem suas raízes, sobretudo, na ditadura militar.
Publicado 23/02/2011 17:27
Vermelho: Quais as raízes históricas e culturais da violência policial?
Wagner Gonçalves: O poder de polícia, como emanação do Estado, sempre esteve ligado às classes dominantes. O objetivo foi sempre manter a "ordem" e a incolumidade dos bens dessa classe. De outro lado, a repressão e o arbítrio policial servem a projetos políticos de poder. E, para isso, vale tudo: tortura, assassinatos, prisões arbitrárias, desaparecimento de pessoas, corrupção etc. Dizer que se vive num regime democrático, por si só, não resolve o problema da violência policial, porque ela faz parte da cultura brasileira há séculos.
Vermelho: Porque a transição da ditadura para a democracia não conseguiu extinguir as práticas do regime autoritário?
WG: Na verdade, porque não houve a ruptura das estruturas de poder que estavam vigentes no tempo da ditadura. Houve uma transição consentida pelos militares, que impuseram, inclusive, uma autoanistia. Todos os vícios e práticas espúrias continuarem incólumes. Se a impunidade era a regra, no regime democrático, ela continuou. Era uma polícia voltada para a repressão e assim continua. Por isso mesmo, as corregedorias internas praticamente não funcionam. Não há controle externo efetivo (obrigação constitucional) pelo Ministério Público. Aliás, as organizações policiais se opõem com "unhas e dentes" a esse controle.
Vermelho: Qual o caminho para ajustar os órgãos de segurança à realidade democrática?
WG: Unificar a atuação da Polícia Militar e Civil. Acabar com a justiça militar. Todos os policiais têm de ser julgados, por qualquer crime, pela Justiça Comum. Aproximar a polícia do Ministério Público e do Juiz de Direito. Todos devem trabalhar no mesmo prédio e em sistema 24 horas. Lá o cidadão encontra o juiz, o promotor e a polícia. Realidade democrática requer transparência, união das instituições e órgãos públicos no combate ao crime, inclusive àqueles praticados por policiais.
Vermelho: Quem são as vítimas da violência policial?
WG: Não são os deputados, os promotores, os ricos comerciantes, os empresários ou pessoas das classes dominantes. São os "invisíveis" e os "demonizados" aqueles que a sociedade não enxerga, não vê ou não se preocupa. Estes estão a "deus dará". E só se tornam notícia, com alguma capacidade de reação (apuração e denúncia), quando os números de mortos começam a incomodar.
Vermelho: O Estado detém o monopólio do uso da força, exercido pelas polícias. Quais os limites dessa força?
WG: O limite é a lei, sempre tendo por base o princípio jurídico da razoabilidade. Se a Polícia age fora da lei, por exemplo, se faz prisões arbitrárias e tortura, ela deixa de ser polícia, para se tornar uma quadrilha armada paga pelo Estado. Se tal força, assim exercida, atende, mesmo equivocadamente, aos anseios populares por segurança, chegará um dia, como sempre ocorre, que se perde o controle dessa força. De força policial passa-se à força bruta, a ser um esquadrão da morte, agente de corrupção, de tortura. Os exemplos são muitos: aqui (Goiás) e em outros estados.
Vermelho: Qual o papel da polícia na sociedade?
WG: Proteger essa mesma sociedade, ser uma polícia cidadã, não ver o cidadão comum como um inimigo, trabalhar no combate às causas da violência, atuar preventivamente, antecipar-se aos fatos, trabalhar com inteligência nas investigações, atuar em sintonia com os demais poderes para ter maior eficácia no combate à criminalidade.
Vermelho: De que forma e em que situação a polícia está autorizada a usar a força?
WG: A força sempre deve ser usada com moderação e para evitar um mal maior. É lógico que, quando atacada ou em situações de risco, o uso da força pode se fazer necessária. O que não se permite é a humilhação, a pancadaria, os abusos e os atos arbitrários, quando a pessoa suspeita já está dominada ou se entrega. São inúmeros os casos.
Vermelho: A polícia emprega força e usa armas de fogo indiscriminadamente?
WG: Sim. As estatísticas anuais de mortes decorrentes do uso de armas de fogo por policiais equivalem a verdadeira guerra civil. A maioria tem por justificativa a "resistência" ou a troca de tiros. Comparado aos países desenvolvidos, tais estatísticas são chocantes.
Vermelho: Existe uma "demanda" dentro da sociedade para a prática da violência policial? A impunidade estimula essas práticas ilegais?
WG: A sociedade brasileira vê, indignada, os acusados de improbidade administrativa, corrupção, crime de colarinho branco etc. nunca irem para a cadeia. Os processos se eternizam e a impunidade é a regra. De outro lado, o cidadão, no seu bairro, toma conhecimento da ocorrência de crimes cometidos por menores ou adultos e, no fundo, muitas vezes, reclama da polícia, que não está agindo, quase a demandar uma ação policial "de qualquer maneira". Sente-se, assim, indignado e desamparado. Mas é importante reconhecer que demandar a prática da violência policial, sem o respeito aos direitos humanos, é que leva segmentos da Polícia a se transformarem em verdadeiros criminosos. O dia em que tal "segmento" atinge o cidadão que, por equívoco, foi confundido com algum bandido, ele tem a exata noção de que práticas ilegais só levam à barbárie.
Vermelho: Como deve ser o controle e acompanhamento sobre o exercício da força policial?
WG: A segurança pública, diz a Constituição, é dever do Estado e responsabilidade de todos. Por isso, os órgãos policiais devem trabalhar em consonância com a sociedade. Deve-se criar
polícias de bairros ou polícia cidadã, por exemplo, de modo que haja canais de interação com a sociedade. A Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), como vem sendo chamada no Rio de Janeiro, é um exemplo bem-sucedido, até agora, dessa prática. De outro lado, afora o controle externo do Ministério Público, deve-se trabalhar com a contra-inteligência interna, de modo que haja mecanismos de avaliação e controle dos atos de polícia. As corregedorias devem ter total independência de atuação e responsabilizar os maus policiais, afastando-os, inclusive, da corporação.
Vermelho: Existe um excesso de corporativismo na polícia militar, ao proteger seus membros criminosos?
WG: Salvo exceções, o corporativismo é a regra. Esclareça-se que isso não é exclusividade somente da policiar militar. Falta severidade nas corregedorias que apuram e punem os casos de ilegalidade? As corregedorias internas, como os fatos demonstram, não são eficientes no combate às ilegalidades e abusos praticados por policiais em todo o país.
Vermelho: A violência policial ameaça a democracia?
WG: Toda violência atinge cidadãos em seus direitos humanos básicos. Se a democracia tem por fundamento a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade do direito à vida, tudo aquilo que o agente do Estado faz contra tais valores atenta contra a democracia.
Vermelho: O fato dos torturadores da ditadura nunca terem sido julgados reflete na violência policial?
WG: Todos os cidadãos de um país, em qualquer época, têm direito à memória e à verdade, inclusive no que se refere à responsabilização de seus torturadores da época da ditadura. Só o Brasil, na América Latina, não penalizou os criminosos de seu regime militar. Creio que a estrutura de poder e a mentalidade da época, incrustada em segmentos do aparato policial, ainda contribuem para referida violência, infelizmente.
De Goiânia,
Alfredo Mergulhão