Três questões da transição no Egito
No momento em que ares de mudança varrem o Egito e alguma mudança parece iminente na vida política no mundo árabe, Marwan Bishara, principal editor de política da rede Al Jazeera, avalia a velocidade e a eficácia da transição para a democracia.
Por Marwan Bishara*, em Al-Jazeera
Publicado 15/02/2011 14:07
Qual o risco de a transição não se completar no Egito?
Decisões recentes do Conselho Supremo das Forças Militares, de dissolver o Parlamento que nada representa e é resultado de eleições fraudadas, parece apontar para o desmantelamento do velho regime e sinaliza a construção de novo regime.
Mas a insistência dos militares, que mantêm o governo de Ahmad Shafiq, construído por Mubarak para fazer a transição levanta várias preocupações. A suspensão da Constituição também é faca de dois gumes.
Se, por um lado, permite a formatação de uma nova constituição, também deixa os militares livres para agirem como melhor lhes pareça, na defesa de seus específicos interesses, mais do que no interesse da revolução.
É preciso perguntar também por que os militares não se limitaram a cancelar as leis de exceção ou por que ainda não libertaram sequer os presos durante as últimas três semanas, antes até de que se cogite de libertar todos os demais prisioneiros políticos.
Tudo isso chama a atenção para a importância de se manter a pressão sobre os militares, até que o regime esteja completamente desmontado e convoque um novo governo para acompanhar a transição até que que se façam eleições democráticas.
Hoje, é crucial que a pressão continue, para que se possa continuar a esperar por mudanças. Se é indispensável trabalhar com os militares para promover mudança pacífica, também há o risco de qualquer progresso ficar preso, refém dos interesses exclusivos dos próprios militares.
Os que tenham poder sobre os militares egípcios – o governo Obama, por exemplo, têm de forçar os generais a agir como autênticos guardiões da revolução e da transição para uma democracia republicana.
Sem isso, há risco real de a revolta escapar completamente a qualquer controle, se os militares voltarem às práticas – e aos negócios – de antes, enquanto esvaem-se o espírito da revolução e o potencial que tem de alastrar-se para toda a região. Muitos têm muito a perder, se se consumarem as mudanças históricas em andamento no Egito.
Quem mais perde com o sucesso da revolução egípcia?
No curto prazo, perdem todos os autocratas na Região, que certamente verão crescer a pressão contra eles, na medida que se dissemine no mundo árabe e até no mundo muçulmano o espírito do poder das massas. Também perdem os grupos como al-Qaeda, que aposta mais na violência que no poder do povo.
No longo prazo, perdem as três teocracias, ou governos baseados em fundamento religioso que há na região – Israel, a Arábia Saudita e o Irã –, que podem ver sua legitimidade contestada, a favor da legitimidade civil e democrática, na medida em que mais e mais pessoas se ergam em levante popular e exijam o direito de serem governados como cidadãos e povos, sem qualquer imperativo superior de religiões e seitas.
Um Egito unido, democrático e forte pode voltar a ter a influência que teve durante tanto tempo, de liderança no mundo árabe. Facilmente eclipsará a Arábia Saudita, chamará a atenção de todos os árabes para a ocupação israelense em terras árabes e ofuscará a ambição dos aiatolás iranianos, que aspiram a liderar a região.
Nenhum desses três regimes tem qualquer interesse em que a revolução egípcia seja bem sucedida, digam o que disserem nas declarações públicas. Se tiverem meios para conter ou para abortar a revolução egípcia, qualquer deles os usará, sem hesitar. Afortunadamente porém, as agendas conflitantes, a animosidade e as diferenças que os separam impedirão que esses três regimes teocráticos e autocráticos unam-se para conspirar contra a jovem revolução egípcia.
Como a revolução egípcia alcançará seus objetivos?
Para que o poder popular e a democracia alcancem o sucesso, é preciso que se mantenham firmes e continuem a pressionar a favor das mudanças.
A aliança com os militares deve ser condicionada ao desempenho dos militares.
A revolução já fez muito, mas é preciso promover ainda muitas mudanças. Não é uma festa, a luta para reverter décadas de estagnação, corrupção e nepotismo.
É indispensável fazer ver aos militares que o povo na rua não aceitará reformas cosméticas que induzem à rendição e à passividade e diluirá o espírito revolucionário que empurra para mudanças, nem se aceitará simples troca de nomes e cargos. Os militares têm de convencer-se de que terão de varrer da mesa todas as soluções e meios antigos.
Só o espírito e a ânsia por mudança radical serão garantia confiável para as conquistas de agora e impedirão que sejam perdidas ou desperdiçadas em cessões e concessões futuras. Nas palavras de um republicano norte-americano: “o extremismo, na luta pela liberdade não é vício. A moderação na luta pela justiça, não é virtude.”[1]
Os revolucionários egípcios afinal alteraram o antigo motto árabe “In-shallah”, se deus quiser, que pressupõe inação e incapacidade para decidir. Hoje se ouvem mais gritos de “Ma-shallah” – “essa é a vontade de deus” e é dever do povo fazê-la acontecer e respeitar.
Enquanto os comandantes militares egípcios tentam que tudo volte à “normalidade” – à estagnação, no entender de muitos –, os egípcios estão na luta para alcançar o extraordinário.
[1] É frase de Barry Morris Goldwater, 1909-1998, senador pelo Arizona, candidato do Partido Republicano às eleições presidenciais de 1964, em The Conscience of a Conservative (1960), p. 15 [NTs, com informações de http://en.wikiquote.org/wiki/Barry_Goldwater].
* Marwan Bishara é editor de Política da Al Jazeera.
Tradução: Vila Vudu