Professor da UFMG diz que protestos no Egito fortalece as redes
Estudioso de teoria democrática e das relações entre comunicação e política, Ricardo Fabrino Mendonça vê nos acontecimentos recentes em países como Tunísia e Egito uma indicação da capacidade das tecnologias digitais de dar projeção a questões políticas e criar novas possibilidades de mobilização.
Publicado 09/02/2011 13:31 | Editado 04/03/2020 16:50
Estudioso de teoria democrática e das relações entre comunicação e política, Ricardo Fabrino Mendonça vê nos acontecimentos recentes em países como Tunísia e Egito uma indicação da capacidade das tecnologias digitais de dar projeção a questões políticas e criar novas possibilidades de mobilização. Nesta entrevista, Fabrino, que é doutor em Comunicação pela UFMG e professor do Departamento de Ciência Política, analisa o novo regime de visibilidade instaurado por tais tecnologias e o modo como ele afeta o engajamento dos cidadãos com a política.
As mobilizações que estão provocando mudanças políticas em países como Egito e Tunísia são exemplos típicos do poder das redes sociais em ambiente digital?
As manifestações que estão ocorrendo no Norte da África são potencializadas pelas tecnologias digitais, o que fica evidente na capilaridade dos protestos. Essas tecnologias geraram uma reorganização dos fluxos comunicativos que permeiam a sociedade, criando novas possibilidades de mobilização. É preciso lembrar, aqui, do temor de muitos pesquisadores e ativistas de que a sociedade civil viesse a se desmobilizar em todo o mundo depois do boom de movimentos políticos que marcou os anos 1970 e 80. Tais temores pareciam bastante concretos com a desarticulação de muitos movimentos e a institucionalização de outros. O que se nota, contudo, é uma reformulação no repertório de ações desses atores, com a contribuição decisiva das ferramentas da web 2.0. As redes sociais facilitaram a rápida projeção de demandas sociais e permitiram um grau de mobilização que, em outros tempos, exigiria esforços e recursos tremendos. Essas redes permitem a conexão entre diversos âmbitos de interação, facilitando as trocas comunicativas que alicerçam protestos sociais.
E esses fenômenos ultrapassam as fronteiras entre países…
Claro. A repercussão mundial dos protestos na Tunísia e no Egito, bem como daqueles que se seguiram às eleições presidenciais no Irã em 2009, reflete a possibilidade de internacionalização desses fenômenos. As questões políticas não são mais facilmente tratáveis no plano nacional e os Estados tampouco parecem capazes de manter invisíveis assuntos polêmicos. Basta lembrar as tentativas de controle do Twitter e do Facebook e das formas encontradas pelos manifestantes para burlar tal censura. Essa projeção internacional de fenômenos políticos que antes tendiam a permanecer circunscritos a um território acena para a possibilidade de articulação de algo como uma sociedade civil global, embora esta seja uma questão bastante controversa. A existência de tal entidade, bem como sua legitimidade, é alvo de amplo debate acadêmico. Também é preciso ter cuidado para não julgar que o Estado nacional tornou-se um ator desimportante ou fraco.
Você mencionou as tentativas de bloqueio ao Twitter e a outras redes sociais. Por que esses dispositivos preocupam tanto os governos?
Porque eles dão visibilidade a demandas e eventos que poderiam continuar invisíveis. E trata-se de uma visibilidade muito forte, linkada em imagens, relatos, depoimentos, gravações in loco. As pessoas gravam o que está acontecendo nas ruas com seus celulares, postam no Twitter e imediatamente aquilo está na rede. Aqueles que tentam bloquear as redes sociais buscam interromper os fluxos comunicativos durante movimentos de protesto, tanto para dificultar a mobilização interna quanto para impedir a projeção externa desses acontecimentos. É interessante observar que a visibilidade tem uma dimensão fundamental de proteção dos manifestantes. Ela desperta o interesse de entidades de direitos humanos, organizações da sociedade civil, meios de comunicação e impede, frequentemente, que alguns atos violentos sejam realizados. Os grupos sociais que lutam contra formas de opressão precisam de visibilidade para se resguardar.
E essa visibilidade também se vê transformada? Como ela se configura?
É possível falar de um novo regime de visibilidade, que se manifesta pela diluição. A visibilidade parece ter se capilarizado tanto quanto as ações políticas. Se o “grande irmão” de Orwell já foi usado como metáfora para abordar a onipresença de uma visibilidade centralizadora, nota-se que sua ubiquidade aumentou com a proliferação de novas microvisibilidades que subvertem a lógica da centralização. E esse formato comunicativo, representado pelas redes sociais, atravessa diversas arenas em um fluxo contínuo – por exemplo, quando o Twitter serve de fonte para jornalistas e de assunto para as conversas em uma mesa de bar.
Os telefones celulares têm papel importante aí, não?
Sim. Eles são o signo dessa visibilidade móvel e diluída. E o mais interessante é que, tal como as redes sociais, e conectados a elas, eles deslocam os entendimentos entre público e privado. O telefone celular contribui para “bagunçar o coreto”, rearticulando definições e criando novas dimensões e imbricamentos entre o que antes era distinto. O que é vivenciado no âmbito privado pode ser facilmente publicizado, ao passo que o espaço público é perpassado por interações de natureza privada. Acompanhando o novo regime de visibilidade, notam-se novas relações entre público e privado.
Que relação têm os acontecimentos recentes, no que se refere a estratégias de mobilização, com outros nos últimos tempos?
O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), do México, é tido como o primeiro caso de mobilização com significativa utilização da internet e repercussão no ciberespaço. Em 1994, uma ampla rede envolvendo ativistas de direitos humanos, movimentos diversos e simpatizantes da causa foi estabelecida sobretudo a partir de e-mails e sites. Os protestos contra a reunião da Organização Mundial do Comércio em Seattle, em 1999, também são emblemáticos. Em ambos os casos, as tecnologias digitais de comunicação mostraram capacidade de mobilizar, rapidamente e a baixo custo, pessoas de diferentes localidades. Em muitos outros casos, nota-se a potencialidade da internet de articular pessoas que, muitas vezes, não se caracterizavam como militantes de uma causa nem estavam dispostas a participar de reuniões presenciais periódicas. O que parece ter se tornado mais frequente é um tipo de mobilização mais pontual, em torno de eventos ou causas específicas, mais do que de bandeiras amplas.
Essa mobilização é mais espontânea? Ou ela é tão estratégica quanto antes?
Parece haver um ciclo entre espontaneidade e estratégia. É difícil saber o que começa antes: a estratégia se desdobra em atos espontâneos ao mesmo tempo em que ações não planejadas podem abrir espaço para novas estratégias. Não se trata de uma dicotomia. Espontaneidade e estratégia caminham lado a lado
Mas a internet mudou os movimentos populares? Ela criou novas formas de participação?
Outra questão que não tem uma resposta simples. Há quem defenda que a internet simplesmente criou novas formas de participação para aqueles que já participavam. Para outros, ela fomentou o engajamento de cidadãos que antes não se interessavam pela política. O que é certo é que algum tipo de alteração ocorreu, ainda que não possamos falar de uma prática política inteiramente nova. A visibilidade sempre foi importante. A comunicação sempre foi importante. Outra coisa que precisa ser enfatizada é que não se pode atribuir à Internet ou a qualquer outra tecnologia, exclusivamente, o sucesso de uma estratégia política. Mesmo que a internet tenha alterado o quadro da eleição de Obama, não há como dizer que ele não seria eleito sem a campanha digital. As tecnologias não determinam, nem são reles instrumentos. De algum modo, elas alteram as engrenagens de um determinado contexto ao mesmo tempo em que fazem parte dele. Dessa maneira, criam novas janelas de oportunidades e novos desafios. Mas há uma série de variáveis sociopolíticas e culturais que devem ser consideradas.
É possível dizer que as redes sociais têm efeitos positivos para a democracia?
É preciso atentar para o fato de que essas redes também podem ter efeitos antidemocráticos. Através delas podem ser divulgadas agressões diversas, discursos de ódio, racismo e exclusão. A internet e as redes sociais não devem ser idealizadas como a salvação da democracia, embora possam contribuir para aumentar a densidade do engajamento civil e para aproximar a esfera política dos cidadãos. A internet coloca novas questões éticas, como deixam claros os processos eleitorais em que ela se fez presente. Se a internet pode estabelecer formas mais diretas de interlocução entre candidatos e eleitores, também pode ser usada para a disseminação de mensagens difamatórias anônimas e calúnias.
A população do Egito é muito jovem. Como esse fator influi sobre a mobilização por meio das mídias digitais?
Algumas pesquisas recentes indicam que as pessoas tendem a discutir assuntos políticos em fóruns não políticos. E os jovens são os grandes usuários de redes sociais. Eles podem, sim, incrementar discursos de protesto no contato em redes que não têm finalidade primeira de discutir política. Essas redes precedem e potencializam a mobilização. E isso contradiz o senso comum que afirma a apatia da juventude. O mais provável é que alguns jovens estivessem desinteressados em função de certos modos de fazer política e de promover mobilização.
Fonte : www.ufmg.br