Publicado 07/01/2011 11:22 | Editado 04/03/2020 16:32
Não, não fui um dos convidados para prestigiar os eventos privados da posse. Nem vou mentir quanto ao fato de que não me desagradaria estar entre esses bem-aventurados. Fui por minha conta e risco, movida pela nostalgia da comoção que me assaltou no já longínquo 1º de janeiro de 2003. Naquela ocasião, no meio da multidão que lotou a Esplanada, refletia sobre quantos ali se manteriam nas fileiras e quantos desertariam quando o governo começasse pra valer. Bom, o tempo deu as respostas e ali estava eu outra vez.
No dia 31 vasculhei Brasília à procura de souvenirs da posse. Nada. O clima nas ruas não antecipava a festa. Assuntando com as pessoas, sobretudo trabalhadores, senti uma disposição alegre mas não efusiva para a proximidade da transmissão do poder. O estilo mais contido da presidente já parecia se impor. A noite que naquela época foi vivida na fria Esplanada entre jovens da América Latina inteira, sob batuques diversos, tornando-se uma das mais célebres de minha vida, agora foi uma noite de Réveillon comum, entre amigos.
A expectativa na manhã fria e nublada do dia 1º se tornou ansiedade infantil ao chegar na Esplanada repleta de grandes painéis homenageando as mulheres mais distintas da história brasileira. Meu tímido coração de mulher se agita. O público em número infinitamente menor mas, não menos entusiasmado, aguardava a passagem triunfal de Dilma, que veio em carro coberto, ladeada por seguranças femininas e seguida pelos dragões, debaixo de uma chuva torrencial que me molhou até os ossos. Ninguém arredou pé.
A ex-guerrrilheira agora Chefe de Estado. Cena pra ficar arquivada na retina e que foto nenhuma é capaz de substituir. Os amplos espaços da Esplanada exigem uma movimentação intensa para acompanhar tudo. Ao lado do Palácio do Planalto reverbera o contundente discurso de posse e mais uma vez Dilma nos autoriza: a erradicação da miséria é o critério nuclear para julgá-la. A nota tocante: a referência elegante e afirmativa ao passado de combatente da ditadura e aos companheiros que tombaram. Isso seguido da altiva revista de tropas me esclarece porque estou aqui de volta depois de oito anos. História em carne viva. Valeu, Lula, valeu mesmo.
A caminho do Palácio, Dilma passa a poucos metros, em carro aberto, e posso jurar que o beijo em minha direção se deve ao histórico colete brizolista de 89. Como se diz, não tem preço. Estou me especializando em emoções de primeira ordem, strictu sensu, quando todos vão a lágrimas: a transmissão da faixa e a despedida emocionada de Lula. Dilma também não controla a emoção no parlatório, mas não há dúvidas de que aquele público civilizado e espremido pelas grades, vigiado por um aparato de segurança impressionante, está com o coração pulsando por Lula, sobretudo. É gente de toda qualidade e de todo lugar, misturado, como se diz por aqui, que quando ouve seu nome, vibra como diante de um rei, mas sobretudo como diante de um igual. Eis o mistério dessa fé.
Poderia ter sido só. Mas aí o show das “mulheres da Dilma” na praça, que termina numa espécie de sarau, torna esse o melhor primeiro dia do ano do resto de minha vida. Blusa de Guevara, colete de Brizola, bandana de Lula, écharpe de Dilma, molhada, enlameada, abraçada a amigas recentes, exausta e com o otimismo prático recarregado. Não vai ser fácil esse governo, mas espero estar aqui, emocionada e segura, em outras posses. Não importa se nos salões ou no gramado. Importa estar à altura, do tempo.
Sandra Helena de Souza é Professora de Filosofia e Ética da Unifor
Fonte: O Povo
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