Lungarzo: Sobre a soltura de Cesare Battisti
Quatro dias depois que o ex-chefe do estado brasileiro, Lula da Silva, decretasse extinta a extradição do escritor italiano Cesare Battisti, ele ainda continua preso.
Por Carlos Alberto Lungarzo*
Publicado 04/01/2011 09:48
É oportuno lembrar que, durante a terceira oitiva do julgamento da extradição 1085, quando, como parte final da sessão, foi reconhecido (por 5 votos contra 4) o direito do presidente a decidir sobre a aplicação ou rejeição da extradição, o então relator e atual presidente do STF disse, em tom de desafio, que se o governo se empenhava em não extraditar Battisti, ele seria submetido à “crueldade” de continuar na prisão, uma frase paradoxal, dita como se Cesare fosse esperado na Itália para ser alojado num hotel de 6 estrelas.
Mas, o principal desta afirmação não foi o caráter contraditório, mas a promessa que envolvia: se Battisti fosse livrado da extradição ficaria como refém dos inquisidores.
Esquema do processo
O processo de extradição 1085 é, apesar de sua tortuosidade moral, muito simples do ponto de vista lógico. Itália pediu, em condição de parte suplicante, a extradição de Battisti, com base em supostos crimes cometidos na Itália, e com apóio legal no Tratado de Extradição Brasil-Itália.
O STF aceitou julgar o pedido, cometendo duas ilegalidades: continuou um processo que devia ter sido arquivado quando o requerido ganhou a condição de refugiado (janeiro de 2009), e manteve o requerido em prisão, um ato totalmente oposto e até claramente contraditório com a idéia de refúgio. (Refugia-se alguém para protegê-lo, mas, então, é a prisão um lugar de proteção?)
Estas arbitrariedades ficaram ofuscadas por um ato que, até o dia de hoje, não reconhece precedente em nenhum dos países ocidentais, tanto os que seguem o Common Law, como os que usam um direito similar ao nosso: o STF anulou a validade do refúgio, um ato executivo por excelência. Nem a própria Itália cometeu uma anomalia similar: o caso do líder turco Öcalan, apesar de ser igualmente grave, não violou nenhuma lei. Com efeito, quando o ministro Massimo d’Alema tendeu uma cilada a Öcalan, para que fosse capturado pela CIA e a Mossad e entregue aos turcos, com uma falsa promessa de refúgio, ele realmente não estava refugiado no sentido jurídico do termo.
É verdade que a partir da anulação do refúgio de Battisti tudo se torna ilegal e sem sentido, como fizeram notar os 4 juízes que votaram contra. Entretanto, sendo que o processo continuou e que não há nenhuma autoridade que possa questionar o despotismo (nada ilustrado) da corte, porque, afinal, “supremo” é o que está no topo, uma forma de coerência era reconhecer como válidas todas as moções aprovadas nesse julgamento.
Na terceira sessão, o STF aprovou o “direito” (ou seja, criou um direito que já existia) do chefe de estado de decidir sobre a extradição. Numa sessão adicional, gerada por uma manobra obscura entre a defesa da Itália e a cúpula do Excelso Pretório, aprovou-se uma moção de ordem que, como disse Marco Aurélio de Mello, foi uma virada de mesa, na qual foi arrancada ao bondoso e paternal ministro Eros Grau, a exigência de que o chefe do estado, ao decidir sobre o caso, devesse ater-se ao Tratado Brasil-Itália. Isto era uma obviedade absoluta, inventada porém como pretexto para futuras manobras.
Aqui acaba a história jurídica, que ficou registrada no acórdão de abril de 2010.
Em 31 de dezembro de 2010, o então presidente Lula rejeitou a extradição com base no parecer da AGU (sobre o qual escreverei mais na frente, porque isso não é urgente agora). Lula se baseou em especial no artigo 3º, inciso (f), onde se obsta a extradição para quem possa ver sua situação agravada se fosse devolvido ao país suplicante. Observe-se que os argumentos do assessor que municiaram o advogado geral substituto, indicam um aspecto absolutamente objetivo, indubitável e fundado na situação notória da Itália e nas próprias declarações de ministros e corporações: Battisti estava sendo exposto como alvo de animosidade geral. Isto é tão trivial, que foi repetido muitas vezes até por pessoas inimigas do extraditando: se a sociedade italiana produziu um escândalo tão desaforado, que não apresenta paralelo nem com as próprias “epidemias” de vendetta da época do fascismo original, é óbvio que o extraditando corre risco. Alguém que é ameaçado por seus inimigos a 10.000 Km de distância, estaria salvo se entrasse no lar desses próprios inimigos?. Hipótese ridícula, que seus próprios formuladores não acreditam, mas pretendem vender a um público desinformado ávido de emoções fortes. O mesmo La Russa disse há dois dias, que nos últimos meses a Itália teve o cuidado de não usar expressões de tom forte para não criar a suspeita de ameaças! Mais claro, impossível. A notícia está nos principais jornais italianos, especialmente, Stampa, Tempo e Repubblica.
O seja, está sendo criada uma caricatura decadente e ultrapassada de um circo romano, onde até o sangue é falso.
Os mistérios dos inquisidores
Foi conjecturado por alguns que o atual chefe do Supremo Tribunal, estaria adiando a soltura de Cesare para fevereiro, porque se sente inseguro sobre a legalidade da decisão, e prefere consultar com o plenário. Outros acham, acredito que com maior justeza, que se trata de uma nova rodada no processo de tortura jurídica e psicológica já aplicada sobre o escritor, alargando o mais possível sua agonia.
Mas, a verdade pode ser uma combinação de várias alternativas. O sofrimento (dos outros) sempre foi um papel importante na Inquisição, porque ele purifica e aproxima o homem de Deus. O próprio atual chefe do Excelso disse a um jornalista de um periódico jurídico, que o sofrimento não devia ser visto como uma desgraça, mas como algo inerente à vida. Aliás, é algo perfeitamente compatível com a mentalidade de alguém que concedeu HC aos genocidas de Carajás, um episódio ao qual se referiu a presidente Dilma, quando ainda era presidente eleita, prometendo que não haveria uma repetição do fato em sua gestão.
Eu não duvido que mentes místicas, arcaicas e tacanhas encontrem no ódio e no sofrimento alheio um grande prazer: essa é a mentalidade do torturador, como foi descrito ad nauseam por milhares de sociólogos e escritores. Mas, não penso que isso seja incompatível com algum intuito prático. É a famosa história de unir o útil ao agradável (o útil é o efeito prático e o agradável o prazer da tortura).
Portanto, embora nada possa ser demonstrado, não deve descartar-se a priori também uma jogada mais extrema, como a repetição do golpe branco da anulação do refúgio de Battisti. Isto teria vantagens para os inquisidores brasileiros e italianos, que não precisamos mencionar. Todos sabem quais são!
O impasse
Os militantes de DH acreditamos que devem ser sempre esgotadas as soluções legais. Num certo momento, quando a impaciência dominou todos nós, alguns pensamos que devia dar-se ao presidente Lula a tranqüilidade que precisava para encontrar o momento oportuno, que foi o dia 31 de dezembro. Naqueles momentos, dissemos que isso não significava esperar cegamente por uma justiça impessoal e infalível, mas apenas facilitar a decisão do chefe de estado, que tinha disposição positiva para resolver o problema.
Da mesma maneira, neste momento acreditamos que não há motivo para aguardar uma mensagem celestial, porque o único que se precisa para culminar o processo é abrir a porta da prisão, e não há nenhum obstáculo, salvo o profundo desejo de produzir angústia e caos, para que a chave esteja oculta no bolso de algum novo frei Torquemada.
Esta afirmação está longe de ser apressada ou irreflexiva. O Ministro Marco Aurélio de Mello fez uma observação muito clara: o extraditando está preso enquanto se decide sobre sua extradição. Uma vez decidida a não extradição, o motivo de sua prisão desaparece. Essa verdade é reconhecida pelo advogado Luís Barroso, mas, com certeza, ela seria reafirmada, se fosse feita uma consulta, pela dúzia de juristas brasileiros mais famosos e respeitados, que se manifestaram várias vezes durante o processo de Cesare.
Mais ainda: sendo que a decisão de extinguir a extradição foi do executivo, em função da “permissão” concedida pelo próprio STF, o ato de soltura deve ser também executivo e ele poderia ser realizado pelo ministro da justiça.
Será que isso produz uma crise institucional? Pode ser. Mas eu pergunto, com sincera curiosidade: qual é o risco de uma crise institucional para um governo que continua uma tradição começada há 8 anos, e que foi apoiado pela maioria do povo em três eleições consecutivas? Aliás, não deve esquecer-se que uma candidata de oposição, Marina Silva, disse sem a menor hesitação que apoiava o refúgio de Battisti. São quase 20% de votos a mais.
Um governo com tamanha legitimidade, tanto popular quanto jurídica, não pode hesitar por causa das provocações de quaisquer grupos que fingem representar uma Têmis, cujos olhos, porém, não estão tarjados, mas apenas dissimulados pela máscara preta, e cuja mão não segura uma balança, mas uma corda.
Aliás, indo além dos direitos humanos (que para nós representam o valor supremo, mas para outros podem estar subordinados ao político), se pensarmos o conflito em termos políticos, devemos respeitar a coerência entre as declarações e os fatos. Um país que aspira ao reconhecimento mundial, a uma vaga permanente na ONU, a disputar influência com a Europa, não pode ceder a nenhuma provocação de um governo corrupto, misturado com a máfia, com quase um 80% de dignitários que esteve perto ou dentro do neofascismo ou do neostalinismo. Pensemos que a Itália não é apenas a terra da Inquisição, da Máfia e do fascismo, mas também o berço de Galileu, Leonardo e Beccaria, e que talvez algum dia esta noite que assombra a península deixe passo a uma nova luminosidade. Colocando limites a empáfia do atual sistema contribuiremos a evitar que algum dia o país erradique a xenofobia e o racismo que, por sinal, hoje afeta os cidadãos brasileiros que procuraram emprego na Itália. Lembremos apenas uma senhora que foi condenada a 3 anos de cadeia por um suposto delito de lenocínio quando a juíza soube que apoiava o refúgio de Battisti
Pense-se também que, após de seis semanas de 2009, em que o Quirinal assediou o Parlamento Europeu para conseguir cumplicidade contra o Brasil, o máximo que obteve foi uma morna declaração sem qualquer valor oficial, emitida por um quorum de 7,6% do plenário. E, para os que não lembram, enfatizemos que a comunicação P6_TA(2009)0056 do Parlamento Europeu foi aprovada após 6 rejeições de outras propostas e, ainda, que dentro desse quórum microscópio também houve 8 MEPs que se manifestaram decididamente contra. A notícia de que a União Européia apóia Itália é uma mentira da grande mídia, que toma como definição de “Europa” um conjunto de legisladores fascistas da Espanha e Portugal e alguns conservadores do Reino Unido, para que as pessoas ingênuas mordam a isca, ou para municiar os que não são tão ingênuos. Recentemente, um jornalista brasileiro disse que o conflito entre a Itália e o Brasil parecia um “jogo de cena” entre ambas as nações. Seria pouco elogioso que isso fosse verdade.
Acreditamos, então, que todas as organizações de direitos humanos, os movimentos e os juristas que emitiram numerosos manifestos em apóio ao refúgio, mostrem a apóio ao Ministro da Justiça, para que solte uma pessoa que já há sofrido de maneira excessiva o rancor de uma matilha sanguinária que não se resigna a pensar que já se passaram 63 anos desde Nuremberg.
Deve ter-se em conta também que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA aprovaria mais uma condena das muitas que têm formulado contra o arbítrio judicial
* Carlos Alberto Lungarzo é escritor, professor aposentado da Unicamp e membro da Anistia Internacional.