A queixa dos europeus: queriam que Lula aliviasse para Berlusconi
"Eu assisti de camarote o teu fracasso, palhaço, palhaço" (B. Lacerda/H. Martins, "Fracasso")
Deu na Folha de S. Paulo que "países da União Européia articulam um ato de solidariedade à Itália", no bojo da decisão brasileira de negar a extradição do escritor Cesare Battisti por haver grande possibilidade de sofrer humilhações e maus tratos naquele país (além, acrescento eu, de correr risco de ser assassinado, já que um sindicato de carcereiros o jurou de morte).
Por Celso Lungaretti*
Publicado 03/01/2011 15:43
O mais interessante na notícia da Folha é este trecho:
"O que mobiliza a Europa não é a decisão em si, mas o descumprimento de um acordo prévio entre os governos italiano e brasileiro para que a decisão do ex-presidente Lula não questionasse o Estado de Direito e as instituições da Itália. O acordo foi intermediado por [José] Viegas [embaixador brasileiro na Itália] diretamente com o próprio Lula. Apesar disso, o então presidente na última hora se baseou num parecer da AGU (Advocacia-Geral da União) dizendo que Battisti poderia ser 'submetido a agravamento de sua situação' em seu país".
A autora é a colunista Eliane Cantanhêde que, há quase um ano (16/01/2010), Já revelara a existência desse acerto entre os dois países:
"O governo italiano mandou um recado para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva: seria 'agressivo e deselegante' se ele acatasse a sugestão do Ministério da Justiça de fundamentar a não extradição (…) no temor de que ele ficaria sujeito a 'perseguição política' no seu país.
Na avaliação italiana, isso seria mal visto pelo governo, pela Justiça e pela opinião pública da Itália…
Sendo assim, a argumentação de Lula deverá evitar qualquer tipo de ataque ou suspeição sobre três aspectos: a lei, as instituições e o Estado Democrático italianos. Deve, portanto, se concentrar no interesse brasileiro e/ou em 'questões humanitárias'".
Um dos males desse tipo de jornalismo, lastreado unicamente naquilo que fontes dos altos escalões sopram no ouvido do(a) repórter, é que o leitor não tem como averiguar ele mesmo se a informação é verdadeira ou foi "plantada" para contemplar quaisquer interesses.
Um jornalista veterano (meu caso) baseia-se em indícios como o de que Eliane Cantanhêde, em várias outras situações, deixou perceber que tinha/tem um informante muito bem posicionado no Ministério da Defesa – talvez o próprio ministro Nelson Jobim, a quem ela sempre apóia nos momentos cruciais. Então, levando em conta que suas informações "de cocheira" costumavam ser confirmadas e a congruência entre o que ela relatava e o quadro que eu mesmo deduzia, apostei em que Eliane estivesse certa em janeiro/2010… e aposto que continua certa em janeiro/2011.
Os apoiadores de Cesare Battisti suamos sangue para que, na terceira votação do Supremo Tribunal Federal, a corte não "automatizasse" a extradição. Quando fracassou a tentativa dos ministros alinhados com a posição italiana, de usurparem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a prerrogativa de dar a última palavra (como sempre se fez no Brasil), nós concluímos que o desfecho justo passava a ser apenas questão de tempo.
Então, fazia todo sentido que os linchadores do Velho Mundo tivessem chegado à mesma conclusão, de que suas pressões descabidas e insultuosas de nada mais adiantariam.
Realmente, baixaram a bola entre janeiro e dezembro, só reincindindo às vésperas do anúncio da decisão de Lula, quando incorreram em mais uma grave heresia diplomática: a de se manifestarem sobre uma "presumida intenção" presidencial, baseados (segundo eles mesmos alegaram) no noticiário da imprensa.
Ora, isto foi altamente impróprio, tanto que lhes valeu um merecido puxão de orelhas do então chanceler Celso Amorim. No relacionamento com autoridades de outros países, governos se posicionam sobre fatos concretos, não sobre projeções midiáticas de medidas futuras.
Pior ainda é quando tentam ganhar no grito… de um presidente da República.
Mais uma gafe da horda berlusconiana, verdadeiros rinocerontes em loja de cristais, exibindo um primarismo político e falta de compostura chocantes para um país que, dois milênios atrás, difundia a civilização no resto do mundo.
Bobbio: Itália adotava "leis de exceção"
Quanto ao descumprimento de parte do acordo com a Itália – outro pedido, o de não se criarem embaraços para o premiê Berlusconi quando de sua visita ao Brasil, foi rigorosamente atendido -, a que se deveria?
Ficando no terreno das hipóteses, eu diria que tantas os italianos fizeram, no curso de sua interferência despropositada e agressiva num julgamento brasileiro (servilmente consentida pela dupla direitista Gilmar Mendes/Cezar Peluso), que a Advocacia Geral da União deve ter aconselhado Lula a lastrear sua decisão num motivo incontestável à luz do tratado de extradição entre os dois países, de preferência a confiar na boa fé de quem vinha demonstrando não ter nenhuma.
"Interesse brasileiro" e/ou "razões humanitárias" seriam alegações mais frouxas e fáceis de derrubar, no caso de a Itália continuar tentando servir-se do STF como cabeça-de-ponte para impor sua vontade ao Brasil.
Já o motivo alegado está imune a qualquer contra-ataque jurídico. Um país cujas autoridades dão declarações tão histéricas e demagógicas quanto as italianas deram a respeito de Battisti, e cujo serviço secreto trama com mercenários o assassinato de um exilado no exterior, não oferece mesmo garantia nenhuma à vida e à integridade física e psicológica do extraditando.
Na verdade, o Brasil foi até generoso, pois certo mesmo estava o ex-ministro da Justiça Tarso Genro, ao conceder o refúgio humanitário a Battisti porque ele não foi sentenciado num verdadeiro julgamento, mas sim num linchamento togado.
Face ao desafio das organizações armadas de esquerda na década de 1970, o Estado italiano reagiu, segundo Genro, "não só aplicando normas jurídicas em vigor à época, mas também criando 'exceções' (…) que reduziram prerrogativas de defesa dos acusados de subversão e/ou ações violentas, inclusive com a instituição da "delação premiada", da qual se serviu o principal denunciante de Battisti.
O ministro brasileiro utilizou uma citação do maior jurista italiano do século passado, Norberto Bobbio, para caracterizar a cultura de abusos contra os direitos humanos que prevaleceu durante os "Anos de Chumbo":
“A magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia e de leis de exceção: a invenção de novos delitos como a ‘associação criminal terrorista e de subversão da ordem constitucional’ (…) veio se somar e redobrar as numerosas infrações já existentes – ‘associação subversiva’, ‘quadrilha armada’, ‘insurreição armada contra os poderes do Estado’ etc. Ora, esta dilatação da qualificação penal dos fatos garantia toda uma estratégia de ‘arrastão judiciário’ a permitir o encarceramento com base em simples hipóteses, e isto para detenções preventivas, permitidas (…) por uma duração máxima de dez anos e oito meses".
De um lado, os mais gritantes absurdos jurídicos – como essa hipótese kafkiana de se manter um suspeito preso, sem qualquer condenação, por mais de uma década; e a instituição de leis com efeito retroativo, a exemplo da que serviu para condenar Battisti.
Do outro, a tortura grassando solta, como também destacou Tarso Genro:
"Determinadas medidas de exceção adotadas pela Itália nos 'anos de chumbo' (…) ressoam ainda hoje nas organizações internacionais que lidam com direitos humanos. A condenação a determinados procedimentos e penas motivou, de um lado, relatórios da Anistia Internacional e do Comitê europeu para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes e, de outro, a concessão de asilo político a ativistas italianos em diversos países, inclusive não europeus".
O motivo maior da decisão soberana do Brasil, ao salvar Battisti da "vendetta" neofascista, foi o de a Itália estar querendo fazer cumprir uma sentença (já prescrita!) decorrente de uma farsa jurídica, montada a partir de leis de exceção, de "delatores premiados" atirando suas culpas nas costas dos companheiros e de magistrados que engoliam até procurações forjadas para darem aparência de legalidade à condenação de um réu ausente. E isto num clima de intimidação, coerção e maus tratos generalizados.
Berlusconi e sua troupe deveriam é ser-nos gratos por não termos jogado estas verdades nas suas caras de "buffones".
*Celso Lungaretti é jornalista,escritor e ex-preso político.
Fonte: blog Náufrago da Utopia