Publicado 21/12/2010 11:14 | Editado 04/03/2020 16:32
Um canto, muitos encantos, vários bancos, um povo, tantas histórias, um palco: A Praça do Ferreira, maior ícone do Ceará, espaço democrático de todas as tribos dessa aldeia que não é só Aldeota. Vamos passear pela história da Praça do Ferreira e conhecer um pouco mais o coração da namorada Fortaleza.
Quem conhece um pouco da morada Fortaleza sabe que entre ruas Major Facundo, Floriano Peixoto, Dr. Pedro Borges e Travessa Pará, ocupando uma área de 7.603 m2 está localizada a Praça do Ferreira, o maior ícone da cidade forte de Nossa Senhora da Assunção.
O nome da praça é uma homenagem ao seu fundador, o Boticário Antônio Rodrigues Ferreira, nascido em 1801 em Niterói e que veio para Fortaleza em 1825 como caixeiro de Antônio Caetano de Gouveia, Cônsul de Portugal.
Reza a lenda que Antônio Ferreira criou uma receita que salvou a vida da esposa do português. Agradecido, o Cônsul o ajudou a obter da junta médica de Pernambuco licença para montar uma botica no areal da Feira Nova, localidade onde os retirantes das secas se abasteciam de água potável.
O areal possuía cacimbão, um chafariz, inúmeros pés de castanheiras, oitizeiras e nas noites de lua cheia era visitado por jovens que tomavam banhos coletivos, todos nus, chocando os moradores provincianos da cidade que se aformoseava e higienizava, seguindo padrões europeus.
O Boticário Ferreira aqui se estabeleceu e virou político. Como Intendente Municipal (cargo equivalente a prefeito) efetivou o planejamento urbano realizado pelo engenheiro Silva Paulet, com a construção de algumas praças, alargamento e alinhamento de outras, impulsionou a Santa Casa de Misericórdia e realizou tantas obras de importância para a cidade que é considerado o seu primeiro urbanista. Preocupado com seus negócios, nos arredores da sua botica demoliu o beco do cotovelo e no areal em frente construiu a Praça Pedro II, que mudou de nome em 1859, quando o Boticário morreu e foi homenageado pela Câmara Municipal. A praça então se chamaria Praça do Ferreira.
Na Praça do Ferreira havia uma árvore histórica, localizada atualmente na altura do número 591 da Rua Floriano Peixoto: Era o Cajueiro Botador, que levava esse nome porque dava frutos o ano inteiro. Os bonitos cajus avermelhados podiam ser colhidos com um simples esticar das mãos dos boêmios, que tomavam cachaça nos botecos do entorno.
Todas as tardes os contadores de causos e futricadores da vida alheia se reuniam à sombra do cajueiro. A mundiça dava o tom nas histórias do canelau. Eleições acirradas eram realizadas para saber quem era o maior mentiroso. O eleito, também chamado de potoqueiro-mor, recebia típicas vaias cearenses no palanque democrático do cajueiro da mentira, palco da República do Ceará Moleque. Enquanto isso, uma bandinha tocava maxixes, dobrados e polcas no coreto da praça.
A praça experimentou várias reformas ao longo do tempo. Marcou época a reforma de 1902, organizada pelo Intendente Guilherme Rocha. O local foi arborizado com a construção ao centro do jardim 7 de setembro, cercado por banco e arrodeado por quatro grandes cafés: Café do Comércio, Iracema, Elegante e Java. Este último pertencia ao folclórico Mané Côco que de fraque e sem gravata servia aluá aos seus freqüentadores, dentre os quais Antonio Sales, Antonio Bezerra, Rodolfo Teófilo,Adolfo Caminha, e tantos outros amassadores da Padaria Espiritual que prometiam "alimentar com pão o espírito dos sócios e da população em geral". O pão, na verdade, era um jornal que antecipou o movimento literário modernista no Brasil.
A praça também foi palco de revoluções. Em 1912 as barricadas dos padeiros espirituais junto do povo derrubaram Nogueira Accioly , oligarca chamado de “babaquara” que mandou e desmandou no Ceará durante 20 anos mas caiu pela força da sociedade civil fortalezense que nunca teve rédeas nem cabresto.
Em 1914 a praça foi reformada e iluminada com cabos subterrâneos. Em 1920 o prefeito Godofredo Maciel mandou demolir os quiosques dos cafés, abateu o cajueiro da mentira e construiu um novo coreto.
Em 1933 o prefeito Raimundo Girão mandou derrubar o coreto e construir no seu lugar a Coluna da Hora, com uma fonte dos desejos. Ao longo da praça foram colocados bancos de madeira sustentados por ferro fundido.
O tempo ainda se arrastava para um povo que vaiou o Sol que teimou em aparecer num dia que estava bonito pra chover. O astro-rei foi contemplado com uma grande vaia pelo povo que tomava banho de chuva na Praça do Ferreira. Este é um povo rebelde que não aceita oligarquias e costuma peitar os poderosos.
Novos tempos, novas reformas. Em 1946 o prefeito Acrísio Moreira da Rocha ordenou a derrubada do prédio da intendência e , em seu lugar, foi construído o abrigo central.
Situado ao norte da Praça do Ferreira, logo o abrigo se tornou o lugar mais movimentado de Fortaleza, com boxes de vendas de cafés, tabacaria, discos, selos, livrarias, bilhetes lotéricos, etc. No abrigo a cidade respirava política e falação da vida alheia. Um palco da molecagem que servia também de ponto inicial das linhas de ônibus da cidade. Tudo começava ou terminava na velha praça.
Em 1964 uma longa noite teve inicio no Brasil. A Democracia foi golpeada pelas trevas do autoritarismo militar fascista. A República Democrática da Praça do Ferreira também foi atingida. Em 1966 o prefeito biônico José Walter mandou demolir a Coluna da Hora e um feio concreto tomou conta do lugar em forma de vãos desnivelados e canteiros altos em forma de caixão de modo que quem estava em um lado da praça não avistava as pessoas do outro lado. Essa reforma horrorosa teve um objetivo maior : impedir manifestações do povo na praça, evitar aglomerações e protestos, golpear a liberdade, matar a democracia.
A ditadura terminou em 1985, mas a Praça só recuperou a sua feição mais democrática em 1991. Os arquitetos Fausto Nilo e Delberg Ponce de Leon tiveram a sensibilidade para resgatar a beleza histórica da Praça do Ferreira, canto preferido do nosso afeto que , entre outras importantes intervenções, recuperou a Coluna da Hora.
Quem é cidadão da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção tem clara identificação com a Praça do Ferreira. Parafraseando Milton Nascimento, “quero a nossa cidade sempre ensolarada, os meninos e o povo no poder, eu quero ver”. E o palco dessa festa de quem tem o coração civil só pode ser um : A Praça do Ferreira.
Fonte: Blog do Prof Evaldo e Amigos