Fortaleza: Dona Zena, feijão e tradição
Há 40 anos, Zenilda Bezerra, a Zena, comanda seu restaurante no Centro e prepara uma das mais disputadas feijoadas da Cidade. Uma das personagens mais características de Fortaleza, a entrevista com Zena foi publicada no jornal O Povo desta segunda-feira (20/12). Leia a seguir na íntegra:
Publicado 20/12/2010 10:43 | Editado 04/03/2020 16:32
“Ó, tu vai cortando aí, viu? Essas besteiras, tu tira tudim”. A ordem vem em tom de graça de Zenilda Lopes Bezerra, mais conhecida como Zena. Dona do Restaurante da Zena, localizado na rua Meton de Alencar, 549, ela recebe de segunda a sábado uma boa quantidade de fregueses em busca de provar ou repetir sua disputada feijoada. Muitos deles são famosos, como Renato e seus Blue Caps e Reginaldo Rossi. Outros, anônimos, não passam despercebidos e acabam se tornando amigos da casa.
Apesar da baixa estatura, o jeito engraçado e despachado faz dela uma gigante dentro do seu espaço. Quem chega ali puxa a “Zeninha” para um papo ou uma brincadeira. Mas, tudo bem rápido porque ela não pode perder tempo. “Aqui cresceu foi no boca a boca mesmo”, explica ela sobre o sucesso do seu cardápio. E, com este sucesso, ela procurou ajudar amigos e parentes. Em primeiro lugar, Paula Neves, 29 anos, filha única do casamento de mais de 30 anos com Luiz. “Eu vivo a Paula dentro de mim. Tudo que eu tenho é dela”, diz.
Aliás, Zena não minimiza ao falar da família. Mãe, avó, sobrinho, a filha, cada personagem vai e volta ao longo da nossa conversa. Entre risos e lágrimas, ela foi passeando pela sua história, desde a saída de Quixadá, ainda pequena, na companhia da avó, até os dias de hoje. As lembranças vêm sem muita preocupação com a cronologia. Extrovertida, elétrica e gesticulando bastante, ela também deixou suas impressões sobre o Centro da Cidade, espaço que ela conhece já há mais de 40 anos. “Quantas vezes não vim da Beira Mar a pé? Nunca ninguém disse nada”. Acompanhe.
É a senhora quem começa contando sua história. Onde nasceu, sua família…
Eu nasci em Quixadá, em 1947. Minha história é sofrida. Minha família era humilde. Fui arrimo de família. Sou filha de pais separados e, como a mais velha, fui cuidar dos irmãos.
Como era vida em Quixadá?
Lá não tem muito o que contar porque eu vim muito nova pra cá com a minha avó. Depois fui trazendo os outros, fui trazendo meus irmãos. Eu comecei trabalhando, eu era de menor, numa lojinha de miudezas em geral, no Centro. Depois minha mãe veio, era ali na (rua) 24 de maio (que eles moravam) e a gente começou a fazer comida, vizinho à empresa (de ônibus) Redenção.
Aí que tudo começou?
Não. Em Quixadá a mamãe já era (já vendia comida) dentro do mercado. A mamãe já tinha a experiência.
Quantos anos você tinha aí?
Não tinha 20 anos. Devia ser uns 19 pra 20 anos. Eu fiquei cuidando deles. Já tava, nessas alturas, todo mundo aqui.
Todo mundo é quem?
Meus irmãos.
São quantos?
São oito, comigo. Dois já morreram. (Pausa) Aí minha mãe alugou um pontinho, aqui na Meton de Alencar, 538, bem aqui em frente. Os donos eram maravilhosos. Eu morava aí. E a minha história foi com essa menina que foi meu Deus (que mandou), essa criatura que mora comigo até hoje, a Chica. É ela que faz a feijoada, faz as coisas. Ela foi tudo que eu não tive na minha vida de família pra me ajudar, foi ela. Sabe assim como um anjo que vem?
E como você a conheceu?
Meu irmão trabalhava de trocador, o Josiel. Aí minha mãe falou, “menino, tu arranja uma pessoa (pra ajudar) porque ninguém tá aguentando”. Isso, o movimento já maior. Foi quando ele chegou com essa pessoa. Ela chegou grávida, mas não queria dizer que chegou grávida. Ela teve o menino, eu fui buscá-la na maternidade e criei.
E isso tem quanto tempo?
O Jean acho que vai fazer 42 anos. Ele mora aqui pertinho, trabalha no (restaurante) Geppo’s e dia de sábado me ajuda aqui. Naquele tempo eu não podia registrar, mas minha mãe começou a querer bem e o registrou como um filho. Então, ele é meu irmão.
Você falou muito em sua mãe e ainda não falou do pai.
É, pai separado… Ele ficou no Interior, não cuidou muito da gente. Ele arranjou outra, como a mamãe também teve outro marido. Hoje, todos dois (os pais) estão falecidos. Mas o meu pai… Só ficou o nome de pai.
Ficou mágoa?
Muita gente ficou (magoada). Eu não. Se eu fosse viver do passado, eu não viveria, porque é muita coisa. (Zena faz uma pausa emocionada e continua) Em 1999, minha mãe morreu e eu fiquei dando as coisas ao meu pai. Nunca perdi o contato com ele. Eu ia fazer visita a ele em Cipó dos Anjos, (distante) sete léguas de Quixadá. Eu não sei ter só meu.
Você tem muita história. Também fez muitos amigos?
Foi só trabalho. Não dá (pra ter amigos). Você tem freguês, mas eu queria uma pessoa pra viajar. Eu queria viajar. Nunca tirei férias. Se uma pessoa me chamar pra ir para um barzinho, não dá. Primeiro que eu não sou de beber. Eu gosto é de viajar porque assim você conhece a comida, as pessoas. Eu não sou de dormir. Eu gosto é de passear.
Já passeou por onde?
Fui pra Jeri, que eu não conhecia, adorei. Fiquei dia e noite lá feito uma barata doida. O pessoal dormia e eu saía sozinha. Pra mim, dormir é morte.
Aproveitando que você falou nisso, como é a sua rotina?
Eu acordo às 5 horas e, ou vou pro mercado ou eu vou caminhar. Vou de carro ou pra Beira-Mar ou pro Colégio Militar. Até dia de domingo eu caminho. Tem uma pessoa que vai pro mercado pra mim. Quando ele não pode ir, eu vou. Mas, quando eu tenho muita encomenda de festa, eu chego aqui 4 horas. Eu caminho uma hora e volto pra cá (pro restaurante). Seis horas eu já estou aqui e já vou começar a trabalhar.
Toma café no restaurante…
Tenho frescura, não.
Frescura de tomar café?
De mesinha pronta? Eu vou e pego qualquer coisa, sabe, assim? (risos) Não dá!
E depois?
Eu fico aqui até 14 horas e depois vou pra casa. Aí eu gosto de ficar em casa. Adoro a minha casa. Adoro assistir televisão.
Mas aí vai dormir cedo porque tem que acordar cedo no outro dia?
Eu não posso dormir cedo porque se não eu acordo cedo. Eu sou meio ruim pra dormir. Mas não tomo remédio.
Voltando à história do seu restaurante, você contou que quem começou foi sua mãe e você deu continuidade. Mas o nome não era Restaurante da Zena, quando era da sua mãe?
Não, tinha nome, não. Era só um botequim, sabe? A gente comprava um quilo de carne e fazia um bifezinho. A bolinha de carne veio depois da minha mãe, que uma freguesa sonhou não sei como.
Como é a história da bolinha?
É coisa de Deus, mesmo. Uma freguesa minha, grávida trabalhava na Teleceará. A Teleceará era bem aqui, na Duque de Caxias. Aí ela disse: “Zenilda, eu sonhei que tu fazia uma bolinha assim…”. (Zena responde) “Mulher, eu nunca na minha vida fiz isso. Tu é louca? Eu só sei fazer bife. Num me bota outra coisa, não”. Mas, aí, a Chica é muito inteligente, pegou carne, cortou umas verdurinha miudinhas. Rapaz, tudo com amor dá certo. Se segurar na mão de Deus dá certo. Fazer essa bola sem ovo e sem massa, não tem no mundo quem faça. Só aqui em casa.
E a bolinha virou um dos seus sucessos…
É tanto que a Ana Maria Braga veio aqui e queria a receita. Mas aquilo não dá pra fazer numa receita bonita e mandar.
Foi a produção da Ana Maria que veio, não é isso?
É, a produção. Aí eles levaram as bolinhas e ela adorou. Achavam que ela ia me chamar, mas graças a Deus, não chamaram, porque eu tinha o maior medo. Mas ela mandou e-mail pra mim, foi muito simpática.
Mas como o restaurante ganhou o seu nome?
O nome antes era Zen. Mas, um dia, chegou um cara tão brabo e disse: “Olha, você sabe que tem um Zen na Barão de Studart?”. Eu era mais antiga do que ele, só que lá era registrado e o meu não era. Daí eu fiquei triste e um cliente meu, “Zeninha, tu bota ‘a’ no final”. Pronto. Isso já tem uns 20 anos.
Aí você registrou?
Também não. Tu acredita?! Mas, eu acho que não vou ficar muito mais tempo, não. Dá dinheiro, mas dá trabalho.
Mas, se você fechar, pretende fazer o que depois?
Sei lá. Não queria ficar totalmente sem fazer nada. É coisa pra eu pensar legal. A mão de obra está sendo a pior história. Se ela (a filha Paula Neves, jornalista) não for tomar conta, aí eu tenho que estudar (o que fazer). Eu tenho um sobrinho maravilhoso, não é a área dele, mas acho que, se eu chutar pra ele, ele pega.
E você acha que, sem sua presença, vai ser possível manter o padrão que tem hoje?
Mas eu não iria rebolar assim de uma vez. Porque eu não queria que isso acabasse.
Como foi tomar conta de uma criança e do restaurante ao mesmo tempo?
Ah, eu sofri demais. Só faltava era enlouquecer. Terminei fazendo (um quarto) aqui em cima (do restaurante) e trouxe ela.
O restaurante lhe deu muito dinheiro?
Acho até que deu, pra ser uma coisinha pequenininha, popular. Também eu não estourava com luxo, carrão de ano. Também tem isso. Eu procurei mais ajudar a família.
Você antes estava me contando sobre suas viagens. Pra onde você já foi?
Já fui pros Estados Unidos, passei uns 13 dias ou 14, mas não voltaria lá, não. Quero mesmo é aqui. Detestei a comida de lá. Também fui pra Lençóis (Maranhenses). Iche! Lá eu deixei estresse gritando em cima daquelas dunas. A putaria foi grande, viu? O Rio eu já fui três vezes Uma coisa. Não tem nada no mundo igual ao Rio. Amanhecia 5 horas da manhã e eu já estava em Copacabana.
Você é vaidosa?
Não, porque, até agora, eu não fiz nem isso (fala apontando pro rosto). Gosto de ir para um bom restaurante. Mas, gastar mesmo dinheiro com luxo, comigo, roupa, não.
Pela nossa conversa, você já tem 40 anos de Centro da Cidade. Como é tua relação com o Centro?
Frequento pouco, mais no fim de ano. Mas eu gosto de fazer compras no Centro e não venha me dizer que não tem diferença (de preço) não, que tem. E muito. A maioria das lojas tem aqui e tem em shopping e tem diferencial.
Tem saudades do Centro de antigamente?
Tenho saudades de tudo. Da segurança, da liberdade que tu tinha. Isso minha filha não teve, você não tá tendo. É uma perda grande. Eu vinha da festa do (clube) Maguary a pé e ninguém dizia nada. Não tinha problema. Quantas vezes não vim da Beira Mar a pé? Nunca ninguém disse nada. Hoje em dia tá vendo, né?
Mesmo com tanta insegurança na Cidade, seu restaurante é sempre cheio. Olhando as fotos (nas paredes do restaurante), dá pra ver que é um público bem variado. Por que você acha que é assim?
Tem tudo. Eu acho assim… sei não. É uma benção. Às vezes, até o atendimento não é legal. É uma coisa que eu tenho é que tudo que eu faço dá certo. Eu levanto com um negócio positivo, segurando na mão de Deus e tudo dá certo. Já veio muita gente importante aqui. O Ciro (Gomes, deputado federal) prometeu de vir e nunca veio. Renato e Seus Blue Caps, Reginaldo Rossi, Falcão, Rossicléa, Moacir Maia, Heraldo Pereira (jornalista), Cláudio Pereira, todos já vieram. O Cláudio Pereira foi uma perda irreparável. Não vai ter nunca ninguém nem parecido. Ele valorizava o Centro. Esse quarteirão com ele (onde fica o restaurante), nós trabalhamos tanto. Quando ele ficou doente, quase todos os dias eu tinha que ir lá deixar a comida dele.
Qual é o teu restaurante preferido aqui em Fortaleza?
Eu gostava muito do Gergelim, mas fechou. Não vou nem citar não porque, ultimamente, não estou gostando de nenhum. Mas, vamos supor, eu fui pro (hotel em Guaramiranga) Remanso e adorei. O Primeiro Mundo chama-se Remanso.
Hoje qual é teu sonho, Zena?
Paz, né? Pra ela (Paula) ser feliz. Eu não peço nada pra mim, não. Eu vivo a Paula dentro de mim. Tudo que eu tenho é dela. Dinheiro é bom, mas ele não é tudo. Eu sei ganhar ele. Minha preocupação é dar certo no que eu faço.
Você se acha uma pessoa famosa em Fortaleza?
(rapidamente) Não! Pelo amor de Deus, não! Mesmo saindo em revista, jornal, eu digo que não é comigo, é a feijoada. Famosos são vocês, eu não.
Saiba mais
Zenilda Lopes Bezerra, a Zena, já conhece a rotina de um restaurante desde muito pequena. Sua mãe começou com uma banquinha no mercado de Quixadá, cidade onde nasceu. Após a mudança para Fortaleza, um novo estabelecimento foi aberto e Zena começou a ajudar a mãe por volta dos 20 anos. Hoje, ela é dona do Restaurante da Zena, localizado na Rua Meton de Alencar, 549, importante reduto boêmio no Centro da Cidade, famoso, principalmente pela feijoada servida às sextas e sábados. Aos 63 anos, Zena é casada e mãe de uma única filha, a jornalista Paula Neves.
100 kg FEIJÃO são usados por semana para preparar a feijoada, servida a partir das sextas
40 kg CARNE são utilizados na preparação das almôndegas
Fonte: O Povo