Vicenç Navarro: Polarização de rendimentos causa crise
A raiz da crise atual situa-se na enorme polarização dos rendimentos que ocorreu na maioria dos países da OCDE. Uma das consequências de tal polarização, das mais importantes, é a diminuição da procura por parte das classes populares devido à queda da sua capacidade aquisitiva, juntamente com um comportamento especulativo dos rendimentos superiores, sobretudo dos rendimentos procedentes da propriedade, que criaram a crise financeira.
Por Vicenç Navarro, no Informação Alternativa
Publicado 17/11/2010 21:28
Muito se escreveu sobre os fatores que nos levaram à crise económica mais importante que sofremos desde a Grande Depressão de inícios do século 20. Mas pouco se disse sobre a raiz de tal crise, que é a enorme polarização dos rendimentos em ambos os lados do Atlântico, consequência, em grande parte, da aplicação das políticas neoliberais desenvolvidas pela maioria dos governos da OCDE (o clube de países mais ricos do mundo) desde os anos oitenta.
A revolução neoliberal iniciada pelo presidente Reagan nos EUA e por Thatcher no Reino Unido criou, ao serem aplicadas as suas políticas (diminuição dos impostos dos rendimentos superiores, aumento da regressividade fiscal, desregulação dos mercados laborais com o fim de debilitar os sindicatos e a força laboral, diminuição do gasto público, diluição dos direitos laborais e sociais, entre outras medidas), um enorme crescimento dos rendimentos superiores à custa dos rendimentos médios e inferiores.
Por outras palavras, os rendimentos do capital dispararam à custa dos rendimentos do trabalho, que diminuíram. Isto é, em linguagem clara, os ricos converteram-se em super-ricos à custa de todos os demais (classe trabalhadora e classes médias). E aí está a raiz do problema, a realidade mais oculta e silenciada nos nossos meios de comunicação.
Olhemos os dados e analisemos os do país onde se iniciou a crise: EUA. Segundo afirma quem foi ministro do Trabalho sob a Administração Clinton, Robert B. Reich, no artigo “How to end the Great Recession” (The New York Times, 03/09/2010), o salário médio do homem trabalhador (ajustado à inflação) naquele país é mais baixo hoje que há 30 anos. Esta descida forçou a que nas famílias estadunidenses – para manterem o seu nível de vida – mais membros da família trabalhassem, sendo essa uma das causas mais importantes da integração da mulher no mercado de trabalho.
Enquanto apenas 32% das mulheres com filhos trabalhava em 1970, hoje fazem-no 60%. Outra forma de compensar a descida de salários foi aumentar as horas de trabalho. O trabalhador nesta década está a trabalhar mais 100 horas por ano (e a trabalhadora mais 200) que há tão só 20 anos.
Mas, mesmo com estas mudanças, a capacidade aquisitiva das famílias foi baixando, o que as forçou a endividar-se. As famílias estadunidenses endividara-se até à medula, o que puderam fazer porque o aval das suas dívidas, a casa, ia subindo de preço. Até que a bolha rebentou. E agora as famílias têm uma enorme dívida. Nada menos que 2,3 biliões de dólares.
Até aqui, a descrição do que se passou com a maioria da população. Vejamos agora o que se passou com os ricos. O fato de a massa salarial (a soma dos salários) ter ido descendo como percentagem do rendimento nacional (e isso apesar do aumento do número de trabalhadores) quer dizer que os rendimentos do capital iam subindo.
O que isto significa é que o crescimento da riqueza do país (o que se chama o crescimento do PIB) beneficiava muito mais os rendimentos superiores (que derivam o seu rendimento, em geral, da propriedade) do que o resto da população (que deriva o seu rendimento do trabalho).
Como consequência, os ricos converteram-se em super-ricos. O 1% da população que possuía 9% do rendimento nacional nos anos setenta do século 20, passou a gozar agora de 23,5% do rendimento total, a mesma percentagem, na verdade, que quando se iniciou a Grande Depressão no princípio do século 20. E aí está o problema.
Como diz Robert B. Reich, os super-ricos têm tanto dinheiro que consomem uma percentagem menor do seu rendimento que o cidadão normal e corrente. Ou seja, 23,5% do rendimento nacional que controlam utiliza-se menos em consumo e procura do que se fosse possuído por pessoas normais e correntes. A procura total, que é a que move a economia (pois é a que estimula o crescimento económico e a criação de emprego) desceu dramaticamente, em parte porque a maioria das famílias perdeu grande capacidade de consumo e os super-ricos tiraram do consumo 23,5% do rendimento total do país, consumindo muito menos que o cidadão médio.
E, como se isto fosse pouco, a situação agrava-se inclusive mais como consequência de os super-ricos depositarem o seu dinheiro em paraísos fiscais e/ou investirem em atividades especulativas que têm elevada rentabilidade, como os famosos hedge funds, o que é facilitado pela desregulação dos mercados financeiros. E aí está a raiz da crise financeira e do colapso do sistema bancário, que foi salvo com fundos públicos – quer dizer, impostos – procedentes das famílias profundamente endividadas.
A solução é fácil de descortinar. É necessária uma redistribuição dos rendimentos de forma que o 1% da população volte a ter 9% do rendimento nacional (na realidade, 3% bastaria). Com isso, aumentar-se-ia o consumo, e desse modo o estímulo económico e a criação de emprego. Mais, as intervenções redistributivas do Estado gerariam mais recursos públicos, com os quais se poderia, inclusive, criar mais emprego, resolvendo o maior problema que hoje existe, que é o elevado desemprego.
Mas os super-ricos, juntamente com os ricos e as classes médias de rendimentos altos (20% da população) opõem-se por todos os meios a estas políticas redistributivas. Isto ocorre nos EUA (como o testemunham os enormes problemas com os quais se enfrenta a Administração Obama, na sua tentativa de agravar os rendimentos superiores e criar emprego público) e também nos países do sul da UE, incluindo Espanha.
Estes países têm as maiores desigualdades de rendimento da UE-15, o que explica que sejam também os mais afetados pela crise. E, em Espanha, o Governo socialista nem se atreve a subir os impostos dos super-ricos. Isso mostra que a causa da crise é política: a excessiva concentração de poder do poder económico e político nas nossas democracias.