Correia da Fonseca: a globalização da mentira no noticiário
Sai um sujeito de sua casa logo pela manhã. Em Lisboa ou em Chicago, em Munique ou em Tóquio, em Paris ou em Melbourne. E sai com um mundo na cabeça, isto é, com um entendimento sumário, ainda que não obrigatoriamente coerente entre todos os elementos que o integrem, do planeta em que vive e do que nele vem ocorrendo, das gentes que o habitam, das sociedades atuais e, ainda que talvez em traços imprecisos, das sociedades pretéritas.
Por Correia da Fonseca, no ODiario.info
Publicado 16/11/2010 13:45
Sai de casa, como obviamente sairia de qualquer outro lado, com tudo isso na cabeça porque não pode deixar de ser assim: pelo menos no que diz respeito à compreensão das realidades em que se sente envolvido, e não só as materiais mas também as de uma outra ordem, o homem, o ser humano, tem como que horror ao vazio. E, por isso, quando não sabe, investiga, ainda que porventura de um modo rudimentar. Ou inventa, e às vezes a invenção justifica a designação de sonho ainda que na maior parte dos casos não mereça mais que a qualificação de engano.
Porém, se falarmos do homem não numa acepção generalizante, isto é, usando a palavra como se disséssemos “espécie humana”, mas sim num sentido mais concreto, individualizado, depararemos com uma alternativa menos nobre e menos simpática que se substitui ao sonho com a conotação poética que a palavra arrasta e à invenção, termo que aponta para um pendor científico de grau variado que aliás pode descer às vizinhanças do indesejável grau zero: é o que acontece quando a ignorância inicial é substituída por uma aprendizagem, ou aparência dela, decorrente do contacto direto ou não com outros homens.
E porque o mundo atual não é lugar com Robinsons e ilhas desertas, se é que alguma vez o foi fora das páginas que Defoe escreveu, resulta que a aprendizagem por contaminação ou contágio, digamos assim, sublinhando que a utilização destas duas palavras não envolve necessariamente nenhuma sugestão negativa, constitui hoje a regra, porventura sem exceções, da formação dos mundos que existem nas cabecinhas de cada qual quando se sai à rua como em todos os outros momentos do quotidiano.
E bem se poderá acrescentar que é assim até quando o estado de vigília é substituído por sonos mais ou menos reparadores e sonhos ainda que aparentemente desvairados, pois também a matéria-prima de que estes são feitos é condicionada pelo que os olhos viram e os ouvidos ouviram nas horas em que o sonhador estava desperto.
2. Como será, pois, o mundo que o tal sujeito transporta dentro da sua cabeça, isto é, que ideia faz ele do tempo em que vive e das gentes que o habitam, dos acontecimentos anteriores que o configuraram, das tensões contraditórias longínquas ou próximas de que dia após dia vai tendo notícia por conhecimento direto ou mais provavelmente graças aos bons ofícios da chamada Comunicação Social? Não o saberemos ao nível de pormenor, decerto, porque a essa escala as coisas diferem de indivíduo para indivíduo, mas quanto aos traços amplos do cenário social em que ele existe e se movimenta, quer dizer, quanto a aspectos e dados que lhe formatam convicções e pensamentos, talvez não haja excessivo risco em tentarmos adivinhar alguns deles.
O nosso imaginário homem (ou mulher, como convém acrescentar para que fiquemos a coberto de uma eventual suspeita de machismo) achará que a vida está difícil mas que não há nada a fazer porque o funcionamento da sociedade obedece a leis e forças contra as quais é impotente, É claro que se se tratar de alguém cujo nome conste da lista das grandes fortunas do mundo ou apenas do seu país, ou mesmo só de um convicto candidato a fazer parte delas num dia mais ou menos distante, achará que tudo está muito bem e assim deve continuar, mas não é de algum elemento dessa minguada minoria que estamos a falar.
Depois, pensará que as dificuldades que enfrenta, mais as de que apenas ouve falar, podem ser agravadas pelos que um pouco por todo o lado desencadeiam protestos, reivindicações que considera condenadas ao insucesso, perturbações de vária ordem, pelo que as reprova ainda que por vezes as compreenda porque mesmo um sujeito conformado não é obrigatoriamente um sujeito estúpido. No que a este aspecto diz respeito, rejeita com especial energia, quando não com uma mistura de ódio e pavor, o chamado terrorismo de que todos os dias ouve falar na televisão, na rádio, nos títulos dos jornais se porventura se conta entre os que ainda lêem jornais. Acha que o tal terrorismo é o responsável pelas guerras que em certos lugares do mundo matam gente, que os Estados Unidos são por ele obrigados a ações militares aqui e além, e deseja naturalmente a sua vitória nos diferentes teatros de conflito.
Por falar ou apenas pensar em terrorismos, guerras e perturbações de vária ordem, ocorrem-lhe alguns nomes. O de Bin Laden, é claro, embora talvez tenha a esperança de que o homem já tenha sido liquidado por algum dos raids da aviação norte-americana sobre o Afeganistão. Mas também o de Hugo Chávez, que considera um louco enfatuado, ditador demagogo, mais o do iraniano Ahmadinejad (nome difícil que só recorda aproximadamente), aquele que anda a fabricar uma bomba atômica para lançar sobre os Estados Unidos. E, é claro, Fidel Castro, que parece ter sete fôlegos e não há meio de morrer, o último comunista no mundo a chefiar um estado que também nunca mais regressa à desejável e saudável condição de democracia.
3. Do chamado passado histórico não sabe a cabecinha do nosso homem muita coisa, mas saberá o que ele considera que é bastante e lhe chega perfeitamente. Sabe que durante uma porção de anos a Rússia foi comunista e constituiu um grande perigo para o mundo, que se chamava então União Soviética e acabou por desabar roìdinha por dentro, pelas brutalidades do Stálin que mandou matar muitos milhões e sobretudo porque um sistema econômico que não assente na livre iniciativa privada e na total liberdade de negócio é um sistema condenado à derrota.
Sabe que também houve o Hitler, um bruto que tinha a mania das guerras e por ordem de quem foram assassinados seis milhões de judeus. Sabe, é claro, da guerra que Portugal sustentou em África, no nosso Ultramar, e sabe lindamente que a descolonização foi muito mal feita porque não garantiu a permanência dos portugueses e dos interesses nacionais nesses territórios que eram muito ricos. Quando se lembra disto, ainda hoje tem pena dos muitos portugueses que depois de 74 tiveram de voltar só com a roupinha no corpo.
Ainda há poucos dias viu no televisor, num programa da TVI, uma senhora dessas que tiveram de voltar. Lembrou ela, compreensivelmente triste, os dias em que era servida por criados pretos todos impecavelmente vestidos de branco; bons e felizes tempos, perdidos por culpa de uns tantos traidores talvez ao serviço da Rússia desses anos. Para além disto não sabe muito mais, mas não acha que lhe façam falta mais sabedorias destas até porque “não é político”, quer dizer, não gosta “da política” nem dos políticos.
Acha mesmo que as dificuldades financeiras em que o País está são devidas sobretudo aos ordenados ganhos pelos deputados, que são muitos mais do que era preciso. Tem mesmo a ideia de que antes do 25 de Abril não havia deputados, sendo certo pelo menos que nunca ouviu falar deles, e parece-lhe que por estas e por outras é que tantas vezes ouve dizer que “do que isto precisa é de outro Salazar”. É certo que também sabe que o Salazar mandou prender muita gente, mas também sabe que os que presos eram quase todos comunistas e, por isso, embora sem que o confidencie a ninguém, acha que o Salazar tinha desculpa. Até porque só era comunista quem queria, mesmo sabendo que era proibido; ninguém era obrigado a ser comunista.
4. Admito naturalmente que esta espécie de perfil-robot de um sujeito que pela manhãzinha sai de sua casa com o seu mundo dentro da cabeça, isto é, com a sua mundividência, pareça uma caricatura. E de fato é-o, pelo menos na medida em que a estratégia fundamental da caricatura assenta na acentuação pelo exagero dos traços fundamentais do caricaturado. Neste caso e para os objetivos deste texto, o fundamental é a convergência de um certo número de inverdades ou de puras falsificações que resultam numa visão radicalmente viciada do mundo e da vida. Resta saber como acontece na cabeça de cada qual a penetração desse conjunto de distorções e a relevância que esse fenômeno assume.
Este último ponto é de fácil averiguação: é sabido que cada homem (ou mulher) é um cidadão (ou cidadã), mesmo quando não saiba que o é porque essa sua condição nunca lhe é lembrada. Como cidadão trabalha, convive, vota ou opta por essa forma específica da renúncia à cidadania que é a abstenção. E faz tudo isso, e de resto muito mais, sempre em harmonia com as ideias que transporta na cabeça ainda que muitas vezes nem sequer dê por elas ao ponto de identificá-las.
Para a generalidade das gentes, as suas convicções decorrem de supostas evidências, mesmo que se trate de convencimentos esdrúxulos e tendencialmente aberrantes. E a construção desse edifício interior a que chamei mundo é em larguíssima parte feita com materiais que ao longo do tempo vão sendo fornecidos pelas diversas formas de comunicação social, dos chamados media. De tudo quanto sabemos ou julgamos saber, a parte que descobrimos por nós próprios, isolados, é muito menor do que a que aprendemos pelo que nos contam, pelo que bem ou mal nos explicam.
E é desta maior parte que os media obsequiosamente se encarregam. Porém, não apenas mediante a transmissão de informações: também pelo impedimento de que algumas outras cheguem até nós. Esta outra forma de actuação é aquilo que designamos por censura, por censuras, e decerto todos nós sabemos muito bem o que é, tenhamos ou não consciência do efeito devastador que a prática tem sobre a formação de opiniões e convicções conformes à realidade.
5. Em dada altura das nossas vidas, todos lemos estórias de aventuras e combates, se é que não as vivemos pessoalmente. Todos sabemos, pois, que um dos fundamentais cuidados a ter quando se entra em combate é o de cuidar de cortar ao inimigo as comunicações, as notícias, monopolizando-as para o nosso lado. É por isso que, como é bem sabido, um dos objetivos iniciais de um golpe de estado ou de uma revolução é o controlo da televisão, da rádio e dos jornais. Se recuarmos um pouco mais no tempo e nos exemplos, recordaremos que o cerco é uma estratégia fundamental nas operações militares. O cerco, isto é, ainda o corte de todas as comunicações.
Ora, o que é verdade para um exército em campanha é-o também para uma fração social em luta. De onde o exercício das censuras, isto é, o corte de todas as informações que contribuam para o esclarecimento e consequente reforço da fração social adversária, e quem diz “fração social” pode muito bem dizer, na maioria dos casos, “classe”. Acontece, porém, que a clássica censura “pura e dura” se revela por vezes incômoda para quem a usa: dá muito nas vistas, gera vazios notórios, convoca involuntariamente a sua ruptura e a transgressão.
Pelo que o bom processo censório não se limita ao mero corte: complementa-o com a distorção das notícias, com a invenção de notícias falsas e com a substituição da informação importante por irrelevâncias e futilidades tanto quanto possível atrativas que preencham os vazios provocados pelos cortes e possam suscitar um efeito analgésico se não nos adversários diretos, pelo menos nas massas que muito convém manter em inacção e adormecimento.
Conhecemos tão bem estes métodos que quase me envergonho da elementaridade de os recordar aqui. Mas para a sua boa eficácia num planeta onde a tecnologia das comunicações adquiriu aspectos estonteantes é preciso que a sua aplicação não se limite a esta ou aquela região; é necessário que tanto quanto possível seja totalizante. Ou, dizendo-o de outro modo, global.
6. O desencadeamento deste processo de falsificação global com vista ao condicionamento e manipulação dos tais mundos contidos nas cabeças dos homens e mulheres dos quatro cantos do mundo coube naturalmente aos Estados Unidos, país onde o sistema econômico-financeiro atualmente dominante instalou o seu quartel-general (situado na Grã-Bretanha até ao final da Primeira Guerra Mundial) e que detém também a hegemonia tecnológica que lhe garante eficácia instrumental.
De fato, uma enorme e grave impostura avançada no quadro de uma batalha ideológica de dimensões planetárias será tanto mais eficaz quanto mais amplamente estenda a sua ação, apetece dizer que os seus tentáculos, e quanto mais raras e mais débeis sejam as vozes divergentes. Dominando econômica e militarmente o chamado Ocidente que aliás parece agora estender-se do Alasca até ao Japão com escala por Israel e pela Turquia, os Estados Unidos dispõem das condições necessárias para a satelização política de um vastíssimo espaço geográfico e, consequentemente, de relevantes órgãos de informação semeados ao longo dele.
Em maior ou menor grau, os métodos de distorção, ocultação e desinformação usados em todo esse imaginável percurso reproduzem métodos e modelos norte-americanos ou, simplesmente, divulgam os produtos made in USA que lhes são fornecidos a preços compreensivelmente convidativos que se acrescentam às pressões políticas. Como também se entende facilmente, os quadros profissionais admitidos para funcionarem no âmbito da chamada indústria da informação têm de ser compatíveis com os conteúdos a divulgar e, portanto, com os objetivos visados, o que pode suscitar o problema difícil de algumas inocências.
Pisando um pouco e de novo os terrenos da caricatura, talvez se possa dizer que em certos órgãos de informação a censura começa na portaria do edifício, pois o acesso ao interior é expressamente proibido a quem não dê garantias de incondicional acatamento à “escolha” de notícias e informações feitas por quem nas redações pode decidir. Se, como comumente se diz, governar é escolher, não é menos certo que censurar também o é.
7. Porém, não basta escolher: há outras técnicas menos óbvias que são quotidianamente praticadas sem que nós, consumidores talvez sempre um pouco distraídos, demos por elas. A mera supressão de fragmentos inconvenientes no meio de reportagens realizadas nas ruas ou em interiores, mas mais frequentemente nas primeiras porque garantem uma maior irresponsabilidade, incluem-se ainda no clássico método do corte. Ainda no seu âmbito e, como agora se diz, a seu montante, há a própria elaboração das agendas que serão o guia da ação noticiosa.
Mas há maneiras mais sutis ou que pelo menos tendem a sê-lo. Há a escolha dos entrevistadores e dos repórteres para esta ou aquela tarefa jornalística, escolha que será sempre a mais adequada ao fim em vista que pode não ser a informação mais isenta e honesta a fornecer ao consumidor final. Há a formulação das perguntas de modo a que a resposta possa ser pelo menos parcialmente induzida ou, em eventual alternativa, a condução da entrevista em tom de tal modo agressivo, podendo mesmo abeirar-se do insultuoso, que o entrevistado possa ser tentado a responder no mesmo tom, o que lhe prejudicará a imagem pública, ou a descurar a sua defesa.
Há o método de tentar descredibilizar o entrevistado mediante insinuações de fatores que lhe sejam desfavoráveis. Há o uso repetido, martelado ao longo de dias e semanas, de palavras conotáveis com específicas mensagens propagandísticas: “terrorismo”, “violência”, “corrupção”, podem ser algumas delas em certas circunstâncias.
Há, como todos sabemos por dolorosa experiência própria, designadamente na televisão, que é sem dúvida o meio de comunicação mais poderoso e mais adequado à manipulação das sociedades, a injeção maciça de produtos medíocres ou, em alternativa menos escandalosa mas não menos criminosa, apenas desviantes do essencial, assim se injetando nos cidadãos o hábito do desinteresse pelo que é importante e do consumo de anestésicos. E há uma permanente, sistemática rejeição de quanto possa resultar em valorização da cultura e estímulo de eventuais apetências culturais, o que facilmente se entende porque bem sabemos que a cultura como instrumento de compreensão do mundo e da vida, como arma contra as ignorâncias e as várias formas de opressão que as ignorâncias permitem, sempre foi ao longo dos tempos alvo do ódio dos opressores.
A frase bem ou mal atribuída ao nazi Goebbels em que estão relacionadas cultura e pistolas é um ainda relativamente recente testemunho desse velho ódio. Mas mesmo Goebbels sabia mais sobre censuras, repressão e batalha ideológica, por isso utilizou largamente a rádio e mesmo o cinema, nisso até merecendo talvez a qualificação de pioneiro. Morreu em 45. Hoje, com a televisão, teria mais amplas oportunidades de exercer os seus talentos.
Na sua ausência, estão aí os Estados Unidos a dominarem o mundo com a sua indústria da mentira dir-se-ia que em cada dia mais atrevida e com mais servidores. A dominarem milhões de mundos individuais alojados nas cabecinhas dos sujeitos comuns que pela manhã saem das suas casas provavelmente sem terem consciência de que pensam o que os induziram a pensar.
8. Como acaba de se verificar, esta comunicação foi feita a recapitular evidências, dados conhecidos, experiências que cada um de nós terá tido, sendo duvidoso que se justifique a sua inclusão neste notável Encontro. Assim, não será excessivo dizer que ouvi-la foi tempo desperdiçado. A todos, como me cumpre, peço que me desculpem.