Tá na hora da janta e a mesa é nossa
Certos segmentos da elite e da grande imprensa, que tentam desqualificar Lula e o seu eleitorado, agem como as madames quatrocentonas paulistas que oferecem banquetes para duzentos talheres em suas mansões. Cheias de si, conhecedoras das regras de etiqueta dos grandes ágapes, as madames se horrorizam quando alguém esculhamba o ritual, inverte pratos e facas, altera a ordem dos copos e desarticula as pompas e circunstâncias da festa.
Publicado 08/11/2010 09:08
Toda liturgia pressupõe um jogo de poder. A imposição de regras de etiqueta serviu, ao longo da história, para delimitar terrenos, marcar territórios e colocar cada qual em seu devido lugar. Quem não respeita a liturgia, a regra, os chamados bons modos, não merece frequentar o clube dos bem nascidos e a mesa dos poderosos.
Desta forma o discurso da etiqueta serve, não raro, para segregar, erguer paredões, consolidar posições e inibir mudanças. Assim acontece – e de forma exacerbada – na esfera da política, reino repleto de todos os salamaleques cerimoniais que caracterizam as sociedades hierarquizadas.
O recado da liturgia é claro: os que não conhecem o cerimonial e não sabem se comportar não merecem frequentar a fidalguia dos salões. Somos, afinal de contas, o país que reproduziu trezentos anos de casa grande e senzala na arquitetura dos apartamentos com dependências de empregadas, os chamados quartinhos de fundos.
O que certa elite não perdoa em Lula é exatamente a dimensão simbólica de sua presidência – aquela que subverte a liturgia e, desta maneira, quebra a lógica de segregação que o exercício do cargo de mando geralmente impõe.
Lula é o batuque da senzala que abafa o bafafá da casa grande; é canto de torcida que invade os nobres balcões dos teatros de ópera; é a empregada doméstica que rasga o uniforme branco – em alvo contraste com o corpo preto – que escancara visualmente sua função de mucama da sinhá. Lula é, enfim, o homem comum que botou a faixa e subiu a rampa – território outrora destinado aos generais com seus galardões e aos bem nascidos principes das sociologias.
A imagem mais emblematica desse simbolismo foi a de Lula carregando um isopor cheio de cervejas em um dia de praia. Os jornalões estamparam nas primeiras páginas, com manchetes e charges que travestiam em humor o preconceito e o espanto, a figura do presidente da República agindo como homem comum. Não se espantariam, todavia, se um empregado carregasse a bebida do presidente, feito o negro de ganho que em antanhos carregava os pesos e pertences do senhor.
Os homens miúdos são necessários para preparar o jantar, arrumar talheres, manobrar os carros, limpar os banheiros, tirar a poeira e varrer os comodos das mansões. Chegam até mesmo a receber algumas gentilezas que mascaram a indiferença cordial dos poderosos. Que os miúdos fiquem longe, porém, do banquete de não sei quantos copos, garfos e facas de prata.
Os doutos poderosos não entendem Lula simplesmente porque nunca carregaram o isopor e ainda se esqueceram, trancafiados em decadentes palacetes, de olhar o céu e constatar que anoiteceu no Brasil (e como está bonita essa noite clara, de lua cheia e gente na rua).
Tá na hora da janta, a fome é tanta e a mesa é nossa.
Fonte: Luiz Antônio Simas, no blog Histórias Brasileiras