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Diálogo literário: Abelardo da Hora, Abelardo de toda a gente

A casa de Abelardo é uma galeria de arte. Ou um museu de arte. Ou uma permanente exposição. Ou um templo de convicções levantadas. Abelardo da Hora habita no mundo que ele criou. Nesse particular, é muito mais feliz que os colecionadores de livros, que os amantes de livros, que os escritores.

 
 Fotos: Luanda Calado  

Por Urariano Mota

Nem mesmo Balzac teve a grande ventura de caminhar entre seus personagens em bronze, em cimento. Abelardo da Hora tem, enquanto caminha entre seres que poderiam ser uma alegoria da fome, da negação de direitos, ou de eróticos delírios que seriam renascentistas, se os seres que saem da sua imaginação não se encontrassem ao abrir a porta e sair para a cidade do Recife.

Em números, esse homem possui 86 anos, 57 quilos, 1 metro e 65 centímetros mais que declarados. Se a presença física nos impressiona pela falta e resiste na retina, nem um só desses números lhe faz justiça. Ainda que pareça bem mais baixo, Abelardo da Hora cresce na lembrança em outras dimensões. Ele possui um senso de humor de criança. Uma alegria de criar que não o abandona. E, para nada dizer, esse homem baixinho, magro e frágil é nada mais, nada menos que o Adão da arte brasileira. Ele fez nascer o fogo em gerações de pintores que hoje estão no mundo: Brennand, Samico, Guita Charifker, Wellington Virgolino, Zé Cláudio, Corbiniano, e “uma porção de artistas”. Comunista do Comitê Estadual, está vivo sem ter saído de Pernambuco. Todo o Comitê Estadual do Partido Comunista foi assassinado, todo. E por que foram tão civilizados com Abelardo? – Por motivo e acaso que somente as relações locais explicam, ele é casado com a irmã de Augusto Lucena, um político de confiança dos militares golpistas no Recife. Dona Margarida, sua esposa, até hoje confessa ao ver Abelardo desvelar uma estátua contra o imperialismo americano: “Eu tenho muito medo”.

 
   

Nesta entrevista, vocês vão ver, existe um ensinamento de história, de memória viva. Conferi depois o que Abelardo declarou, tamanho era o meu desconhecimento: todas as suas citações, lembranças, são fiéis e verdadeiras. Isto me deixou ao fim menos ignorante. Pois o que é a ignorância senão a falta de memória histórica? Agora percebo melhor a dimensão de Abelardo da Hora, depois de não haver compreendido o que me respondeu sobre suas influências artísticas. Ele é um homem que respira, inspira, expira e transpira a gente do Brasil do Recife. Eu não sabia, isto é uma profunda influência: os rostos sem nome de que todos somos feitos.

– Abelardo, a gente estava falando do seu começo, quando despertou para a Arte, quando foi para a Escola Técnica da Encruzilhada, e lá entrou por acaso no curso de Artes Decorativas, para fazer companhia a seu irmão.

– Veja bem. O meu irmão é quem queria ser escultor. (Pigarro.) Eu queria ser Engenheiro Mecânico, então fui me inscrever para sair de lá como Técnico Mecânico, para depois fazer o meu curso superior de engenharia. Como o que eu desejava não possuía mais vagas, decidi fazer companhia a meu irmão. Eu entrei na Escola Técnica Profissional Masculina, na Encruzilhada, aos 12 anos. Em Belas Artes eu entrei, mais ou menos, com 16. Pelas mãos do Professor Álvaro Amorim, que me deu a bolsa de estudos quando ele me viu logo no começo do meu curso da escola técnica profissional. Tinha sempre um dia na semana em que o professor deixava o aluno fazer qualquer coisa da sua imaginação. Então eu estava fazendo dois violeiros, que lá em minha casa sempre iam violeiros, que meu pai gostava muito de repentistas, sempre iam. Foi quando veio entrando o meu professor de pintura, viu, parou e perguntou se meu professor de escultura já tinha pegado em meu trabalho. Ele pensava que o mestre já tinha mexido no meu trabalho. Eu disse, “não, ele não viu ainda”. Então ele disse, “você acabou de ganhar uma bolsa de estudo para a Escola de Belas Artes. Quando você terminar o curso aqui, eu vou com você e levo você, pego na sua mão, a gente entra de braços dados na Escola de Belas Artes”. Foi o professor Álvaro Amorim, que era meu professor de pintura.

 
   

– Você tem uma iniciação artística na Escola Técnica Profissional da Encruzilhada, depois continua…

– Foi uma coisa, como eu disse a você, foi uma coisa acidental.

– Feliz acidente.

– Quando eu estava no terceiro ano da Escola, eu me tornei também o aluno mais querido e mais apreciado da Escola…

– Em que ano foi isso?

– Isso… espera aí… 39, 40 e 41. 1939, 1940 e 1941. Em 41, entendeu?, eu me tornei, eu era muito querido, principalmente pelas moças da escola … certo? Eu não tinha idade, porque quando eu entrei logo na escola, a minha professora de desenho figurado (todo o mundo que fazia Belas Artes tinha que fazer desenho figurado) era esposa do diretor do Diário de Pernambuco, dona Fédora Monteiro, irmã de Vicente do Rego Monteiro, era minha professora de Desenho Figurado. Ela disse, “meu filho, você vai ter que copiar esse modelo aqui”. Um ornato de gesso, entendeu?, e depois foi-se embora. A sala era cheia de ornatos, cheia de coisas. Então eu desenhei tudo que tinha na sala. Quando foi na outra semana, quando ela chegou… “Quem fez isso?”, porque encontrou uma verdadeira exposição. Eu disse, “Fui eu”. E ela, “Ah, meu filho, o que era para fazer em um ano, você fez em uma semana. Você não pode ficar aqui não. Você tem que ir pra Desenho de Modelo Vivo”. Mas eu não tinha idade, eu era menor, porque o modelo vivo era a mulher que posava nua… “Eu vou levar você agora mesmo para o professor Murilo Lagreca, que é o professor de modelo vivo”. Então pegou na minha mão, e lá vem chegando, Murilo Lagreca ia entrando na escola. (Pigarreia.) Quando ela vai chegando junto comigo, vai entrando o modelo. Então quando o modelo chegou, disse, “Olá, Bebé”, comigo. A modelo era filha da lavadeira da minha casa, que a gente tomava banho no rio, eu já tinha visto ela nua 500 vezes. (Risos.) Então ela disse para o professor, “Ele já me conhece de todo jeito… nua, vestida, entendeu?, de calcinha, de todo o jeito. E ele é safado demais”, disse mesmo assim. Foi uma risadagem geral. E o professor disse, ‘Então pronto, você pode assistir às aulas. Já está liberado”. Eu fiquei fazendo modelo vivo. Em vez de fazer o desenho figurado, eu passei logo para fazer o modelo vivo, que só ia ser do outro ano.

 
   

Bom. Quando eu estava no terceiro ano, as moças da Escola, que gostavam muito de mim… eu fui visitado por um companheiro, que fazia o curso de Arquitetura, porque lá se ensinava Arquitetura, Pintura, Escultura. Foi Augusto Reinaldo, ele me procurou e disse, “Abelardo, eu vim lhe procurar, porque você é muito querido aqui na Escola, pra você me ajudar, que eu sou candidato a presidente do Diretório”. A família dele todinha era de políticos. Eu disse, “Pode contar comigo”. Mas as moças souberam, porque Ana estava posando pra mim, Ana Paes, e ouviu a conversa e espalhou para as outras. Então elas fizeram o seguinte: me inscreveram sem eu saber como candidato a presidente do Diretório. Então quando foi no dia da eleição, o Diretor me chamou para compor a mesa diretora dos trabalhos, foi até Dr. João Alfredo, que era nosso professor de anatomia, que estava no lugar do diretor José Maria Cavalcante. (Pigarro.) Então quando começou a eleição, que eu estava na mesa, e começou a apuração dos votos, Augusto Reinaldo estava bem na porta assim, bem perto de mim, de pé, para escutar, não é? Daqui a pouco começou, o camarada que estava lendo: “Abelardo da Hora… Abelardo da Hora … Abelardo da Hora….”. Então o Augusto Reinaldo começou a fechar a cara pra mim. “Abelardo da Hora … Abelardo da Hora …”. Resultado, ele passou um mês sem falar comigo, porque eu fui eleito. Depois ele soube da safadeza, que não tinha sido minha. Tinha sido das moças. As moças fizeram uma festa, fizeram uma algazarra na Escola danada.

 
   

Viu? Todo o canto em que eu chegava, desde menino que eu era assim, eu quero mudar as coisas. Eu quero fazer novidade. Então eu disse, vamos acabar com esse negócio de ficar somente desenhando e pintando dentro da Escola. Vamos fazer excursão, para a gente desenhar e pintar a vida, lá fora. Então criei excursões. Em uma dessas excursões, já no fim do meu curso, entendeu?, mais ou menos de novembro para dezembro de 1941, já no fim do meu curso de escultura, a gente foi pra São João da Várzea. Quando estava na beira do açude, na Usina São João da Várzea, perto da casa do industrial Ricardo Brennand, que era dono da Usina e da Cerâmica e daqueles engenhos da redondeza, lá vem ele naquele Buick importado, e viu aquele monte de moças e rapazes tudo desenhando e pintando, ele parou o Buick, saltou, e lá vem se dirigindo na minha direção. Eu estava terminando de desenhar o perfil de Cremilda, que era uma colega muito bonita e eu me enxeria com ela, viu?, então ele me perguntou se o desenho estava à venda. Eu cheguei, assinei e dei de presente a ele. Então ele botou o braço por mim, e convidou para gente ver os trabalhos que ele havia comprado da viúva Peretti, que estavam pertinho da casa dele. Nós fomos. Então, da apreciação que eu fiz a respeito do que ele havia comprado, e dizendo a ele que naquele ano eu terminava o meu curso de Escultura, informei a ele que meu pai havia trabalhado com ele. “Quem é o seu pai?”, ele me perguntou. “Meu pai é Zé, José Germano da Hora, que o pessoal chamava Cazuza”. Ele disse, “Você é a cara do seu pai. Eu estava notando que você parecia com uma pessoa, eu não estava me lembrando. Você é daqui, você é mesmo que ser um filho daqui, entendeu?, que seu pai foi um grande amigo, ele saiu pra ser gerente da Companhia Agrícola e Pastoril do São Francisco, entendeu?, e você diga a Cazuza que eu quero que você venha pra cá, pra fazer cerâmica artística pra mim”. Quando foi em janeiro de 42, ele já tinha pegado um local, de um galpão da cerâmica, tinha botado um torno de pedal e um oleiro à minha disposição, “sua oficina é aqui”…. Passei a morar com eles, naquele palacete de ferro e pedra, entendeu?, que ele comprou feito já na Europa e montaram aqui…

Eu fiquei no último quarto da direita, juntamente com Francisco Brennand, com Cornélio, e com Jorge, a gente dormia os quatro juntos. E na ala esquerda ficavam as duas irmãs dele, ficava a mãe dele, porque o quarto da mãe dele era separado do pai. O pai dele tinha um quarto diferente. (Pigarro.) Então, toda manhã, quando eu me acordava, acordavam também aquelas filhas dele, do velho Ricardo, irmãs de Francisco, viu?, e quando elas saíam para a escola, eu via aquela carinha de anjo… veja bem, isso todo dia, na cara do rapaz, de um adolescente, não tem quem agüente, não é? Veja bem. Então eu fiz uma escultura – a torre dos meus sonhos – veja bem, fiz uma escultura com uma mulher, em pé, entendeu?, dois cupidos brincando com a cabeleira dela, com uma placa que vinha atrás das costas dela, brincando com a cabeleira e um freguês abraçado com as pernas dela com a minha cara! (Risos) Então veja bem. Todo o mundo notou isso…. Quando eu levei a estátua pra lá, ficou aquele silêncio, um clima meio esquisito. Pesado. Meio diferente…. E ele era um grande amigo. Seu Ricardo Brennand era um grande amigo. Muitas e muitas vezes eu estava trabalhando, ele mandava o camareiro me buscar. “Diga a Abelardo que suspenda o trabalho e venha pra sala de música”, que eu gostava muito de música, só vivia solfejando Jesus Alegria dos Homens, de Bach, entendeu?, ele mandava me buscar para eu ficar na sala de música, esperando por ele, que ele vinha tocar pra mim. E ele tocava até os meninos chegarem da escola, do Colégio Osvaldo Cruz, onde os filhos dele estudavam…. Era um grande amigo.

– E ficou aquele silêncio.

– Veja bem. Mas nesse dia –e outra coisa: ele era tão amigo meu que eu consegui arrastá-lo pra um comício, uma passeata e um comício, que teve aqui, quando mataram Demócrito de Souza no Diário de Pernambuco, na praça do Diário… Ele era tão meu amigo, que eu consegui conquistá-lo pra isso. Pois bem. Quando foi na hora de dormir, ele viu a figura que eu fiz, a estátua da filha dele comigo, abraçado nas pernas dela…

– Mas ela estava vestida, não é?

– Vestida, mas com aquelas formas perfeitas, com aqueles seios lindos, dois cupidos brincando com a cabeleira dela, e o freguês abraçado com a saia dela era eu, com a minha cara, todo o mundo reconheceu. Quando foi na hora de dormir, Francisco disse, “Da Hora, eu já vou subir”. Aí seu Ricardo tinha feito um gesto com a mão. Ele me disse: “Abelardo, como é que você faz uma coisa dessa? Eu tratando você aqui como um filho, você vê que eu sou seu amigo, muitas vezes eu chamo você pra ouvir música, eu toco pra você, entendeu?, e você fez um trabalho que é o mesmo que você estar querendo fazer amor com a sua irmã”. Eu respondi: “Seu Ricardo, não diga mais nada, que amanhã eu vou-me embora”. Meu pai já havia me avisado: “Cuidado, porque seu Ricardo Brennand é uma pessoa muito boa, muito generosa, mas ele não é de mandar fazer, ele é de fazer. Então você trate ele com respeito, e cuidado.”. Aí, resultado: “Então amanhã eu vou-me embora”. Ele disse: “Abelardo, você quer alguma ajuda minha?”, eu digo, “Não, eu quero simplesmente contar com a sua amizade, a amizade da sua família toda, mas eu vou-me embora”. Pronto, no outro dia de manhã eu fui-me embora…

– Quais influências maiores você teve em seu trabalho de artista? Tanto as locais como de outros países em sua formação.

– Hum… (Pigarro) Olhe, eu vi os trabalhos do Museu Nacional de Belas Artes e vi também livros. Um dos escultores que me impressionaram foi o alemão Barlach. Realmente, ele era um expressionista, e me impressionou. (Pigarro.) Eu estava fazendo em São João da Várzea aquelas coisas meio flor-de-laranja, fazendo cerâmica, não é?, que é quase um artesanato, aquela coisa decorativa, mas depois eu comecei a fazer escultura. Quando eu voltei do Rio de Janeiro, passei o ano de 47 todinho trabalhando, eu não tinha realmente ligação política com nada, mas nessa época da luta contra o cancelamento do Salão Nacional, do protesto que os jornalistas estavam comandando contra a não-realização do Salão, e que o Jornal do Brasil estampou a foto de minha escultura, e os críticos e os artistas iam lá pro Vermelhinho pra bater papo, pra conversar, isso tudo foi abrindo a minha cabeça e botando coisa. Eu vim com a intenção de fazer uma exposição aqui, e vim com a intenção de criar uma entidade, uma sociedade de artistas pra lutar pelos interesses do artista. De formar uma geração de artistas que lutasse pela defesa das artes do Brasil, entendeu? Então aquela coisa de querer lutar pela defesa da arte do Brasil, quando eu cheguei aqui, me lembrei também, vi o Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre. Que inclusive influenciou José Lins do Rego, Ascenso Ferreira, aquela turma todinha, inclusive os pintores, como Vicente do Rego Monteiro, como Cícero Dias, como Lula Cardoso Ayres, Nestor Silva, Hélio Feijó… eles até fizeram um Salão dos Independentes, diferente do pessoal que fazia a coisa acadêmica da Escola de Belas Artes. Fizeram o Primeiro Salão dos Independentes, o Segundo e o Terceiro. Quando eu fundei, no recinto da minha primeira exposição, a Sociedade de Arte Moderna do Recife, eu criei o Quarto Salão, para dar continuidade àquele movimento. Eu dizia a Hélio Feijó, “o interessante é a gente começar a formar na mentalidade dos artistas esse amor pela tradição e pelas coisas do Brasil”. E então comecei também a me impressionar com as coisas da Cultura Popular. As pinturas de igreja, trabalhei inclusive para o Patrimônio Histórico fazendo talha para as igrejas, e comecei a me impressionar também por essas coisas. Mas como a luta contra a desigualdade, contra a miséria, na minha cabeça estava muito cheia, eu comecei a fazer uma série de esculturas expressionistas, como a “Fome e o Brado”, que está aqui no meu corredor, e que foi praticamente a bandeira da minha primeira exposição, em 1948. A bandeira de Lula, hoje, era a minha bandeira desde 47. “A Fome e o Brado”, o brado contra a fome e contra a miséria. Veja bem. Depois eu fiz uma outra série: eu tenho “Água para o morro”, a mulher com a lata d’água na cabeça, buchuda, e segurando um menino, com a mãozinha, essa escultura está no Euro Museu. Depois eu recebi 5 números de uma revista do Seminário Metodista em Tennessee, nos Estados Unidos. Publicaram lá toda a minha coleção de desenhos “Meninos do Recife”, que está aí na minha parede. Sendo que em dois números da revista tem Meninos na capa e no conteúdo. Nos outros três números, só tem o conteúdo.

– Há pouco eu falei de influências, que você conscientemente tem, porque há influências inconscientes de que a gente nem se dá conta.

– Eu já falei isso.

– Você falou no expressionista alemão.

– Sim, e falei também o seguinte: no conteúdo fundamental do meu trabalho, que é exatamente a gente brasileira. Entendeu? A cultura popular, a criatividade do povo é uma coisa fabulosa, sempre foi, que Gilberto Freyre foi quem enxergou isso, viu?, de uma maneira até mais bonita do que Ariano, que Ariano fez o Movimento Armorial querendo ser o tutor de todo o mundo que faz isso, não pode ser, viu?, e a posição de Gilberto Freyre foi muito mais bonita. Ele fez um Manifesto Regionalista, pra mostrar as coisas belas que realmente podiam servir de base para a criatividade da intelectualidade, dos escritores, e dos artistas. E realmente, entrou nesse negócio José Lins do Rego, entrou José Américo, e uma porção de outros. E na pintura entrou Nestor Silva, entrou Lula Cardoso Ayres, entrou Cícero Dias, entrou Vicente do Rego Monteiro, e uma porção de outros.

– E o seu papel de mestre, de formador de pintores?

– Quando eu fundei a Sociedade de Arte Moderna do Recife, botamos Hélio Feijó na presidência, porque Hélio Feijó era da Prefeitura, ia facilitar uma porção de coisas pra gente, eu fiquei na diretoria como diretor artístico. Depois fizemos o Quarto Salão, e depois então eu assumi a presidência. Quando eu assumi a presidência, eu criei um curso de arte. Eu resolvi fazer um curso para eu ensinar gratuitamente a uma porção de rapazes que quisessem estudar. Então abri um curso de artes plásticas no Liceu de Artes e Ofícios, que eu consegui uma sala com o diretor do Liceu. Isso foi em 1950, pra cima, por aí. Lá pras tantas Agripino, o diretor do Liceu, precisou da sala. Disse:“Abelardo, eu vou precisar da sala, porque vou ter que estender os cursos, eu queria que você arranjasse outro lugar. Se precisar de alguma ajuda….”. Eu já estava com uma porção de alunos, eu já tinha uns 8 alunos, e chegando mais. Eram meus alunos nessa época: Gilvan Samico, Wellington Virgolino, Wilton de Souza, Teixeira, Campelo Neto, que depois foi ser cenógrafo da TV paulista… Genilson e Clemilson Soares….

– José Cláudio…

– Zé Cláudio foi depois. (Pigarro.) Finalmente, e mais outros de que não me lembro mais, viu?… Quando o diretor disse que precisava da sala, eu não precisei nem transmitir. (Eu disse aos alunos) “Só tem um caminho. Vamos nos cotizar, e alugar uma sala grande. Eu também participo da cota. Além de ensinar de graça a vocês, eu ainda entro também na cota, viu? Eu farei de lá o meu ateliê, e vai ser até bom, porque vocês vão ver uma aula prática, eu dando aula prática a vocês, porque eu vou fazer escultura pra vocês me verem trabalhando e desenhando também”. Aí ficou todo o mundo alegre. Encontramos uma casa na Rua da Soledade, 57, que hoje ela não existe mais, porque tem um edifício de apartamento. Veja bem. Passamos um ano lá, depois então saímos pra um lugar maior, aqui na Rua Velha, número duzentos e trinta… número trezentos e vinte e um. 321, na Rua Velha, que era do tio de Samico, a casa. Então, entrou Zé Cláudio, entrou Celina Lima Verde de Carvalho, entrou Guita Charifker, entrou Leonice, mulher de Zé Cláudio, que depois Zé Cláudio namorou com ela e casou-se com ela, entrou Corbiniano, entrou …

– Brennand?

– Não, Brennand foi meu aluno… é porque a gente pulou. É que quando eu estava fazendo cerâmica no São João da Várzea, nos primeiros quatro meses, Francisco Brennand se preparava para fazer o vestibular de Direito. Mas ele começou a ir para a oficina toda de manhã, ele estudava de tarde, mas de manhã ele ia pra oficina pra me ver trabalhar, e começou a se enfronhar na coisa, começou a fazer também comigo umas coisas e tal, e eu ensinando a ele, e ele apreciando e fazendo também, daqui a pouco ele começou a trabalhar. Aí ele disse ao pai dele. Seu Ricardo chegou de manhã, e me disse: “Abelardo (Francisco não tinha chegado ainda, ainda ia tomar café), Abelardo, você sabe o que foi que Francisco me disse ontem de noite, antes de ir dormir?
‘Papai, eu não quero mais saber de ser advogado, não. Eu quero ficar fazendo arte com Abelardo’. Você tirou o advogado da família.”. Então eu disse: “Mas em compensação, o senhor vai ganhar um artista, porque o cabra tem talento”. Aí ele deu uma risada e me deu um abraço. “Então tome conta dele”, mesmo assim. Aí se tornou depois um grande amigo, entendeu? O Ricardo mandava me chamar, me mandava suspender o trabalho pra ir pra sala de música, pra ouvir ele tocar. “Jesus, alegria dos homens”, de Bach….

– E você, em pagamento, se apaixonou pela filha dele…

– Foi, porque também não há coração que agüente, viu? Uma carinha de anjo toda de manhã cedo, você se acorda, é de lascar! Eu, adolescente, não tem, não é, rapaz?

– Era uma perseguição…

– Era demais, é. Foi feito de propósito. Foi o meu destino. O destino foi de lascar comigo…. Agora, aqui pra nós, sem gravar. Sem gravar.(E segue uma história em off, sussurrada, uma história romântica, lírica, que não pode ser publicada em nome da boa política matrimonial.)

– Você foi preso muitas vezes.

– Eu fui preso mais de 70 vezes. Inclusive fui preso no golpe militar, que eu fui Secretário de Educação de 5 prefeitos do Recife… Eu era da direção do Partido Comunista, quando lançamos a candidatura de Arraes a prefeito do Recife.

– Você entrou no Partido Comunista em que ano?

– Eu entrei depois que eu voltei do Rio, depois da minha exposição. Isso foi em 48. Foi quando eu conheci a minha esposa. Foi quando eu estava com a minha exposição, eu recebia a Faculdade de Direito, aí no meio dela eu vi aquela moça. Depois eu disse a ela, “venha aqui de novo”, que ela veio me perguntar umas coisas, “venha aqui de novo, que eu lhe explico melhor”. Ela veio, e eu disse: “olhe, vamos lá em casa que eu quero lhe mostrar umas coisas que estou fazendo lá em casa”, aí quando eu cheguei com ela na minha casa, aí minha mãe disse: “Meu filho, esta, sim, é que é a moça que você devia namorar e casar”, porque eu namorava com uma morena parruda, bonita, alta, forte, e eu só vivia brigando com ela, porque, viu?, dizia minha mãe, “você casando com uma mulher dessas, você vai preso logo, porque vai ser uma briga em cada esquina”, porque realmente eu só vivia arengando com ela por isso, porque a mulher chamava a atenção demais, aí o cara ficava olhando demais, eu queria dar um murro no queixo do camarada., viu? Aí eu perguntei a ela, a esta aqui, Margarida, “o que é que você está achando?”, e ela começou a rir, ficou com aquela cara acanhada, e ficou impressionada com tudo que eu estava fazendo. Aí eu comecei a tocar no piano o adágio da Sonata ao luar de Beethoven. Aí ela me disse, “Depois que você começou a tocar a Sonata, é esse mesmo que eu quero”.

– Quando eu lhe pedi influências, você citou principalmente as influências de ordem política, do seu amor pelas coisas do povo. Mas eu queria lembrar influências do ponto de vista estritamente artístico. Você só citou o expressionista alemão.

– Foi. Uma outra coisa que realmente me impressionou foi Albert Eckhout, que veio com Nassau, e fez aquelas coisas maravilhosas, entendeu?, e esse cara, esse alemão. Então minhas coisas ficaram, a minha cabeça se abriu com essa visão desse caminho, do expressionismo alemão…

– Rodin não é um nome….?

– Não, não, não. Rodin é um acadêmico! Ele tem é uma propaganda arretada em torno do nome dele, entendeu?, muito bem feita….

– E no desenho?, porque eu sei que você é um desenhista muito bom.

– Sim, uma das coisas que eu achava também muito bonitas eram os mexicanos. Os mexicanos todos. Os muralistas… Agora, principalmente aqui, a nossa cultura popular, as manifestações populares, entendeu? A música popular, o frevo, principalmente o frevo-de-bloco, que é uma coisa maravilhosa, do ponto de vista de música e de manifestação artística, não é?, com tudo, com tudo que eles têm, com a indumentária, com os adereços, com tudo, com tudo que eles fazem para o carnaval, uma coisa maravilhosa, entendeu?, que é difícil você se esquecer. Eu desde menino vivia dentro desses blocos. Desde menino, na época do carnaval, eu estava lá. Inclusive o seguinte, eu vou contar uma história… Eu morava na Iputinga, e minha mãe estava comprando verdura. Então houve uma briga, lá do outro lado, aí daqui a pouco, tinha lá um açougue, lá do outro lado havia dois bares… o dono deles dois brigando, discutindo, e depois esse camarada dessa… como era o nome daquilo? Esse açougueiro foi … veja bem…..

(Ocorre um lapso, longo, em que ele quer retomar um fato marcante na infância. Ele parece entrar em transe, porque começa a falar coisas sem nexo. E para fugir do incômodo, sugiro um rumo diferente)

– A gente vê na sua arte, na sua escultura, tanto o erótico quanto o social e o político. Como é que se dá essa passagem?, porque parece que existe uma divisão, o cara que é o artista erótico não é um artista político, é como se fosse um cara alienado, e o cara que é o artista político parece que está proibido de falar sobre assuntos eróticos, que seriam fora da linha do partido. Como é que se dá essa mistura do erótico e do político em você?

– Hum..

Abelardo da Hora não se dá conta da pergunta. Ele está à procura do que olvidou. E se põe a balbuciar frases, para si mesmo, parece. Finalmente, responde:

– A minha arte, desde o começo, é feita de amor e solidariedade. A solidariedade eu dedico inteiramente ao povo sofredor, e à sua capacidade criativa. A capacidade criativa do povo, não é? E o amor eu dedico às mulheres. Eu faço uma série de mulheres em várias posições, dedicando à mulher grande parte da minha obra, e o meu amor é todo dedicado à mulher, através das minhas esculturas. A solidariedade que eu faço em defesa do povo, influenciado pelo povo e pela criação popular, e pela vida popular. A minha série “Meninos do Recife”, a minha série “Danças brasileiras de carnaval” em desenho, e toda uma série de trabalhos contra o sofrimento e a miséria do povo através dessas esculturas expressionistas.

Abelardo da Hora poderia ter completado ao fim: “entendeu?”. Entendi: o mundo não se revela por evidências. Artista jamais perde o nexo.