Paul Krugman: Mitos da austeridade
Quando era jovem e ingênuo, eu acreditava que pessoas importantes assumiam posições com base numa análise cuidadosa das opções disponíveis. Hoje, sei que as coisas não são assim. Boa parte daquilo em que as Pessoas Sérias acreditam repousa em preconceitos, e não na análise. Tais preconceitos estão sujeitos a excentricidades e modismos.
Por Paul Kugman*
Publicado 04/07/2010 12:19
O que nos traz ao tema da presente coluna. Nos últimos meses, assistimos impressionados e horrorizados à emergência, entre os círculos responsáveis, de um consenso em favor de uma austeridade fiscal imediata. Ou seja, de alguma maneira tornou-se sabedoria convencional a ideia de que agora é a hora de cortar os gastos, apesar do fato de as maiores economias do mundo permanecerem num estado de profunda depressão.
Esta sabedoria convencional não tem como base provas e nem uma análise cuidadosa. Em vez disso, ela repousa sobre o que poderíamos chamar piedosamente de especulação e, menos educadamente, de fantasias da imaginação da elite governamental – especificamente, sobre a crença no que me parecem ser entidades mágicas chamadas justiceiros invisíveis do mercado de obrigações e a fadinha da confiança.
Os justiceiros do mercado de obrigações são investidores que desistem de governos que, na percepção deles, seriam incapazes de pagar suas dívidas ou não estariam dispostos a fazê-lo. Não resta dúvida de que os países podem sofrer crises de confiança (basta ver a crise grega). Mas o que os defensores da austeridade afirmam é que (a) os justiceiros do mercado de obrigações estão prestes a atacar os Estados Unidos, e (b) qualquer gasto adicional com medidas de estímulo vai atiçá-los ainda mais.
Que motivo temos para acreditar nisso? É verdade que os EUA apresentam problemas orçamentários no longo prazo, mas as medidas de estímulo que implementarmos nos próximos anos terão um efeito praticamente nulo sobre nossa capacidade de lidar com tais problemas de endividamento no longo prazo. Como disse recentemente Douglas Elmendorf, diretor do Gabinete Orçamentário do Congresso, “não existe contradição intrínseca em promover um maior estímulo fiscal agora, quando o desemprego é alto e muitas fábricas e empresas operam abaixo da capacidade, e impor a contenção fiscal daqui a muitos anos, quando produção e emprego estarão provavelmente próximos do seu verdadeiro potencial”.
Ainda assim, de tempos em tempos, dizem-nos que os justiceiros do mercado de obrigações chegaram e que, para aplacá-los, temos de impor a austeridade agora, já, imediatamente. Três meses atrás, uma discreta alta nos juros de longo prazo foi recebida com verdadeira histeria: “Temores em relação ao endividamento elevam juros”, foi a manchete do Wall Street Journal, apesar de não haver nada que indicasse tal temor, e Alan Greenspan declarou que a crise era um “canário na mina”.
Desde então, os juros de longo prazo caíram novamente. Longe de fugir dos títulos da dívida americana, os investidores evidentemente os enxergam como a aposta mais garantida numa economia vacilante. Mesmo assim, os defensores da austeridade ainda nos garantem que os justiceiros pretendem nos atacar a qualquer momento se não cortamos os gastos imediatamente.
Mas não se preocupe: cortes nos gastos podem ser dolorosos, mas a fadinha da confiança vai aliviar a dor. “A ideia de que medidas de austeridade possam levar a uma estagnação é incorreta”, declarou Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu em entrevista concedida recentemente. Por quê? A resposta: “Medidas que inspiram confiança vão impulsionar a recuperação econômica, e não retardá-la.”
Onde está a prova de que a contração fiscal seja uma medida expansionista por inspirar mais confiança? (Por sinal, foi esta a doutrina exposta por Herbert Hoover em 1932.) Bem, houve casos históricos de cortes nos gastos e aumentos nos impostos seguidos de crescimento econômico. Mas, ao que me parece, cada um destes exemplos se revela, num exame mais cuidadoso, uma situação na qual os efeitos negativos da austeridade foram compensados por outros fatores, elementos que dificilmente serão considerados relevantes hoje. A era da austeridade-com-crescimento vivida pela Irlanda na década de 1980, por exemplo, dependeu de uma drástica transformação do déficit comercial em superávit comercial, o que não é uma estratégia que pode ser seguida por todos ao mesmo tempo.
E os exemplos contemporâneos de austeridade são pouquíssimo encorajadores. A Irlanda agiu com rigor e disciplina nesta crise, implementando melancolicamente selvagens cortes nos gastos. Como recompensa, o país vivenciou um declínio proporcional ao da Depressão – e os mercados financeiros continuam a tratar o país como um sério candidato à inadimplência. Outros atingidos disciplinados, como Letônia e Estônia, sofreram destino ainda pior – acredite se puder, os três países apresentaram declínios na produção e no índice de emprego piores do que os vividos na Islândia, que foi obrigada, pela própria dimensão de sua crise financeira, a adotar medidas menos ortodoxas.
Assim, da próxima vez que você ouvir pessoas de aparência séria explicando a necessidade da austeridade fiscal, tente analisar seus argumentos. Quase certamente, você descobrirá que aquilo que soa como realismo teimoso repousa na verdade sobre um alicerce de fantasia, na crença de que justiceiros invisíveis vão nos recompensar se formos bonzinhos. E medidas econômicas do mundo real – medidas que prejudicarão as vidas de milhões de famílias de trabalhadores – estão sendo elaboradas a partir deste alicerce.
*Paul Krugman é economista e norte-americano. Autor de diversos livros, também é desde 2000 colunista do The New York Times.
Fonte: Estadão