A Seleção Brasileira é uma tragédia
Por que um torcedor desejaria que toda a atual Seleção Brasileira de futebol afundasse no mar antes de chegar à África do Sul, enquanto outro deposita nela seus mais sinceros sentimentos patrióticos? Por que uns consideram a atual seleção um catado de pernas de pau, enquanto as demais seleções do torneio a consideram a mais simpática entre todas e a favorita a ser batida?
Por Jeosafá Fernandez Gonçalves
Publicado 24/05/2010 16:21
Se procurarmos nas quatro linhas do gramado as razões para esses e outros enigmas insondáveis, relacionados ao amor bandido que o brasileiro e a brasileira – cada vez mais – professam pelo futebol, acrescentaremos mais “por ques” aos já existentes, sem jamais nos aproximarmos de um único “porquê”, escrito junto, por mais mixuruca que ele se afigure.
Quando Fiori Gigliotti, o legendário locutor de rádio, gritava em tom dramático “Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo, torcida brasileira”, não estava empregando uma metáfora gratuita. Muito pelo contrário, punha em cada oscilação de suas cordas vocais – não por acaso acentuadamente roucas ao longo dos anos – a carga simbólica exata que pesa sobre a nossa mais característica tragédia popular: a partida de futebol.
O famoso radialista tinha a clara noção de que, para o torcedor, o seu time, a sua seleção, o jogo jogado com os pés, extrapolavam o simples, neutro, ascético juízo desapaixonado: encarnavam o drama em sua modalidade mais radical, a tragédia.
Já disseram que sem a tragédia, os gregos teriam ficado loucos, pois nas encenações trágicas, em estádios lotados, eles projetariam todas as suas desgraças que, purgadas pela descida ao pior dos mundos e pela ascensão graças à força de vontade individual e coletiva, representada no herói ou em um deus ex machina, que intervém miraculosamente, se converteriam – as desgraças – em energias portentosas de superação e de transformação da vida para além das paredes dos ginásios.
Fiori Gigliotti inteligentemente soube que o futebol é a tragédia brasileira, no sentido empregado pelos gregos. Por isso impregnava suas locuções de termos e expressões literárias e teatrais. Aqui, nem se pode chamar de empréstimo esse recurso de linguagem, uma vez que o locutor extremamente sagaz se esmerava em devolver ao povo aquilo que nossas elites cruéis lhe roubaram: o direito ao teatro.
Uma das funções da tragédia clássica, para muitos estudiosos na verdade a função principal, era a de restabelecer o equilíbrio das tensões sociais por meio da descarga delas nas encenações. Sob esse aspecto, era elemento de saúde emocional pública.
Os gregos, interessados em construir uma vida urbana minimamente equilibrada – em que pesem os muitos escravos e servos que mantinham – observaram que os agrupamentos sociais acumulam dissensões internas, mágoas individuais e coletivas e ressentimentos que, se não forem resolvidos no plano simbólico, o serão no plano prático das agressões físicas e, no limite, da guerra.
Ou seja, ou nos purgamos simbolicamente na tragédia, ou ficamos loucos e nos aniquilamos. Aliás, no caso da tragédia grega, quando o corpo teatral não correspondia às expectativas do público-torcedor da época, corria o risco de ser agredido, e são mesmo conhecidos casos de atores simplesmente mortos após um mal espetáculo.
Mirando-se e projetando suas dores e esperanças nos espetáculos trágicos, os gregos foram aperfeiçoando suas instituições, que constituíram a base da cultura ocidental.
O futebol é para nós, brasileiros, a nossa tragédia. A seleção, o corpo teatral magno dela.
Se não se chegou aqui aos extremos de se assassinar um jogador após um resultado aziago em Copa do Mundo, na Colômbia, sim. No que tange aos clubes, todos conhecem os riscos e na várzea é comum entreveros terminarem na delegacia, no hospital ou no necrotério. Aqui, me eximo de apresentar exemplos, pois a notoriedade da situação permite.
Se os gregos ficariam loucos caso não tivessem desenvolvido a tragédia como válvula de escape para tensões sociais – em uma sociedade infinitamente menos complexa, como a da época –, que dizer dos brasileiros e das brasileiras – cada vez mais –, que todo dia, quando viram a chave na fechadura de sua casa para ir ao trabalho não sabem se voltarão à noite ainda com o emprego que lhes garante a existência e a de sua família? Que tensão mais dramática do que essa?
Diante dos televisores, os brasileiros assistem ao STF: libertar corruptos para que fujam, como no caso de Salvatore Cacciola; soltar criminosos, como Daniel Dantas, e prender agentes da lei dignos, como o delegado Protógenes Queiroz; e inocentar torturadores, como no caso do lamentável voto de Eros Grau seguido por seus pares faltos de coragem. Não seria o caso de ficar louco?
Se não fosse o futebol e nosso corpo magno de atores, os convocados da Seleção Brasileira, com certeza, nossas frustrações iriam às vias de fato. Sem o nosso clube do coração, sem a nossa amada e odiada Seleção, com seus técnicos nunca aprovados 100%, o que só confere mais drama ao drama, só restaria aos brasileiros e às brasileira a saída proposta por Lampião e Maria Bonita: o cangaço.
Após uma partida dramática, como a que acaba de classificar o Internacional de Porto Alegre contra o Estudiantes, para a próxima fase da Libertadores da América, o torcedor que assistiu à bola colorada entrar no gol argentino – em meio à fumaça atirada pelos torcedores rivais para prejudicar o ataque o Inter – sente que a vida pode ser mudada, porque o drama em que ele se espelha pode se inverter de lado, de um momento para o outro.
O futebol e a nossa Seleção constituem, nesse sentido, a nossa tragédia: o Internacional estava no fundo do poço, porém um jogador, que na entrevista após o espetáculo disse sequer ter visto o goleiro adversário em meio à fumaça, apareceu dela e, como um deus ex machina, detonou a catarse gaúcha que, como todos assistiram, atravessou o tango argentino – outro tipo de drama não menos trágico, que não descarta a pancadaria.
O torcedor e a torcedora brasileira projetam no futebol e em nossa Seleção seus sonhos e suas frustrações, e esse espetáculo devolve a eles soluções inusitadas, que podem inspirar ações na vida real. O mesmo trabalhador que fecha a porta de sua casa para ir ao trabalho com a angústia de não saber se voltará à noite ainda empregado, intui que, como no jogo do Inter, a sorte pode mudar de lado, desde que haja luta, persistência, garra e vontade até o último minuto: um belo dia, a chave, ao ser virada, pode desempregar os patrões.
O futebol e a nossa seleção são a nossa tragédia. Mas isso é bom.