Em defesa de uma política externa soberana
Neste artigo o editor do Vermelho defende a política externa do governo Lula e propõe que a do futuro governo democrático e popular acentue os seus melhores traços na luta por uma nova ordem mundial.
Por José Reinaldo Carvalho *
Publicado 04/03/2010 17:39
A julgar pelos intensos ataques da mídia conservadora e dos partidos das classes dominantes à política externa, é provável que esta vá ocupar lugar de destaque no debate eleitoral de 2010. Entre as forças de direita e algumas autoproclamadas como de ultra-esquerda são ruidosas as manifestações contrárias ao ativismo presidencial na frente externa e à orientação do Itamaraty. É compreensível. Estão sem bandeira, seus programas não são formados por ideias consistentes nem construtivas, mas constituem plataformas desconchavadas de luta política rasteira apontadas para a regressão das conquistas do povo.
A política externa do governo do presidente Lula é em geral bem avaliada entre as forças que o apoiam. Diferentemente da política financeira, ortodoxa e conservadora, que suscita oposição das forças de esquerda e do movimento sindical e popular, a política externa recolhe grande consenso. E, embora aparentemente distante do cotidiano das pessoas simples, vai tornando-se popular, porque a população percebe que está mudando a forma de o Brasil se inserir no mundo, que o país se torna mais respeitado no exterior e se credencia a desempenhar um papel mais ativo e de maior destaque na vida internacional. Assim, o debate de ideias programáticas neste âmbito poderá representar um avanço da consciência nacional e antiimperialista do povo brasileiro.
Visão oposta à dos conservadores e neoliberais
Generaliza-se a opinião de que a política externa é positiva, bem sucedida, está a serviço da luta pelo desenvolvimento nacional e da defesa de sua soberania, num mundo carregado de ameaças de espoliação econômica e imposições políticas pela globalização financeira e a política das grandes potências, principalmente do imperialismo norte-americano.
Nesta matéria, é nítido o antagonismo com as forças conservadoras, neoliberais e pró-imperialistas da sociedade brasileira, que não poupam críticas ao “anti-americanismo” da política externa de Lula, à sua aliança com os presidentes Chavez e Morales, à sua amizade com Fidel, ao “terceiro-mundismo” da ação internacional, supostamente presente no aprofundamento de contatos com a África e o Oriente Médio, à secundarização dos aliados tradicionais – Estados Unidos e países europeus – e à preferência pelas potências médias e emergentes. É também compreensível. Estavam habituados a uma tradição subserviente e entreguista.
Política autônoma, pacifista e democrática
O governo Lula consolidou e aprofundou os traços de uma política externa autônoma, pacifista e democrática, ideologicamente vinculada ao nacional-desenvolvimentismo, às melhores tradições da diplomacia brasileira, que incorporou há décadas os princípios da autodeterminação e da não intervenção, princípios aliás inscritos no artigo IV da Constituição da República, promulgada em 1988. Baseado na percepção do papel do Brasil no mundo não mais como país dependente e subordinado aos ditames dos Estados Unidos, mas como nação soberana, embora ainda vulnerável, com vontade e interesses próprios, em transição para o status de potência emergente, o Itamaraty no governo Lula formulou e põe em prática uma política exterior “ativa e altiva”, na expressão do seu condutor, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim.
O vetor principal da política externa é o projeto de desenvolvimento nacional, hoje concebido nos marcos de uma política de integração continental e de formação de bloco alternativo ao hegemonismo da grande potência. Nas condições do mundo contemporâneo, o Brasil fez a opção, simultaneamente ideológica e pragmática, pelo universalismo e o multilateralismo, rejeitando na prática uma espécie de “destino manifesto” de país eternamente amarrado pelo pan-americanismo imperialista. Em lugar da passividade e da expectativa das decisões das grandes potências, o Brasil de Lula encheu-se de iniciativa e optou pela assertividade, compreendendo como a ação internacional pode condicionar o êxito de um novo projeto nacional de desenvolvimento, ainda em gestação. É ocioso e vão negar os resultados positivos dessa assertividade em política externa, das novas parcerias estratégicas e das novas responsabilidades que o país vai assumindo internacionalmente.
Uma política externa acanhada, protocolar, centrada na prioridade ao bilateralismo com os Estados Unidos e subordinada aos interesses dessa potência poria em risco a própria independência nacional. Essa percepção levou a diplomacia brasileira ao universalismo e ao multilateralismo que se traduziram, no âmbito do arcabouço institucional, na luta pela reforma das Nações Unidas, a democratização e reestruturação das suas instâncias e a alteração da composição do Conselho de Segurança, buscando conquistar aí seu espaço com direito a veto.
Onde mais se observou o universalismo e o multilateralismo do governo do presidente Lula foi na postura política geral, no que se refere ao discurso e à agenda adotada, na eleição de novas parcerias estratégicas, na prioridade à integração continental e nos novos enfoques para o comércio internacional, na defesa da paz e do direito internacional. Nesses pontos concentra-se o feixe de contradições com a política dos EUA e demais potências imperialistas.
Novas e diversificadas relações
O universalismo e o multilateralismo da política externa brasileira ganharam fôlego com o estabelecimento de parcerias estratégicas com a China, a Rússia, a Índia e a África do Sul e a atenção dedicada ao Oriente Médio. É forte a percepção de que a hegemonia estadunidense está em crise e de que é inexorável a tendência a mudanças na correlação de forças no mundo. Nesse quadro, novas parcerias e alianças são indispensáveis como novo âmbito de coordenação política. Abrem-se com isso novas oportunidades para as relações do Brasil com outros povos e nações. A África, em particular os países lusófonos, mas não só, constituiu um novo foco da presença internacional do Brasil. Aqui entrecruzam-se importantes aspectos sócio-culturais e históricos. Trata-se de um âmbito para o exercício da solidariedade internacional que não deve ser subestimado, sem descurar os aspectos estratégicos envolvidos nessa relação, haja vista que o Brasil e todo o ocidente africano, estendendo-se até a área austral, são banhados pelo Oceano Atlântico.
Prioridade para a América Latina
A opção estratégica mais importante e eficaz do governo Lula em política externa dirigiu-se para a América Latina e especialmente para o sul do continente. Foram inúmeras as iniciativas do Brasil para fortalecer as relações com os países do entorno, como para levar adiante e consolidar o processo de integração em curso, especialmente o Mercosul. Já no início do primeiro mandato, o Brasil desempenhou papel importante para inviabilizar o projeto neocolonialista da ALCA. Lula incrementou as relações bilaterais com os países da região, visitando ou recebendo todos os chefes de Estado sul-americanos, sendo inúmeras as iniciativas postas em prática nesse sentido – Mercosul fortalecido e ampliado, Unasul, Conselho de Defesa, Banco do Sul, Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, entre outras. Nesse marco cresceu o protagonismo brasileiro na luta contra as ingerências externas, a instalação de bases militares estadunidenses, os golpes, assim como estreitaram-se os laços com países revolucionários e antiimperialistas, nomeadamente Cuba, Venezuela e Bolívia.
A luta contra o protecionismo na OMC
Outro âmbito em que foi intensa a atuação da diplomacia brasileira foi o comércio internacional, frente de atuação marcada por conflitos com forças externas e disputas internas, visto que ao ser uma vertente da atuação diplomática ligada aos interesses da burguesia monopolista e do latifúndio capitalista da área de exportação, é marcada também por ambigüidades no que se refere aos genuinos interesses nacionais e populares.
É justa a luta contra o protecionismo no âmbito da OMC. Mas é preciso não nutrir falsas ilusões para não cair em armadilhas. A OMC não foi criada para permitir o acesso dos países em desenvolvimento aos mercados dos países ricos, mas exatamente para o contrário. No comércio internacional, monopolizado pelas transnacionais sediadas nos países imperialistas, funciona a lei da selva do protecionismo dos países ricos, das assimetrias, da guerra sem quartel pela conquista de mercados.
A luta contra o protecionismo deve ser vinculada à vigilância do movimento popular e democrático, para que o Brasil não sucumba às pressões nem faça concessões prejudiciais ao interesse nacional, em nome do acesso aos mercados dos EUA e da União Européia. O lobby interno das grandes corporações industriais e latifundiárias exportadoras é poderoso no sentido de que o Brasil ingresse em falsos atalhos para o incremento do seu comércio internacional. A este se opõe a justa e legítima pressão dos movimentos populares, cuja aposta é o desenvolvimento nacional com valorização da soberania do país e dos direitos dos trabalhadores.
Combater a estreiteza e mirar o futuro
Para a esquerda e o movimento popular que atuam na frente externa com uma perspectiva antiimperialista, continua sendo uma tarefa central apoiar e reforçar o caráter independente, assertivo, solidário e multilateralista da política externa brasileira, além da vigilância e da crítica quando se manifestarem ambigüidades e vacilações. O Brasil pode e deve ser um aliado das forças revolucionárias e antiimperialistas mundiais e dar uma rica contribuição para a mudança da correlação de forças no mundo e o combate por uma nova ordem política e econômica internacional, baseada na soberania dos povos e nações, na defesa da paz e na solidariedade internacionalista entre as forças progressistas.
A autoproclamada ultra-esquerda tem reagido de maneira nervosa, estridente e desequilibrada diante da constatação de que foram feitas importantes conquistas da política externa de Lula nesse terreno. Baseando-se em postulados irrealistas, subestima o papel dessas conquistas, considerando a política externa vigente como mera expressão dos interesses das classes dominantes e atribuindo-lhe caráter “sub-imperialista”. Os defensores de tão estapafúrdias ideias não querem enxergar quanto é importante para a luta antiimperialista no mundo atual, em que é brutal a ofensiva do imperialismo estadunidense para impor-se como polo único de dominação através de uma política agressiva e unilateral, que países com a força e a dimensão do Brasil apresentem-se na cena mundial com uma política externa autônoma, em defesa da paz, da cooperação e aliado na luta pelo desenvolvimento das nações que sempre foram vilipendiadas e exploradas pelas grandes potências.
Trata-se de uma visão que nega a política concreta, que abre mão dos procedimentos táticos, não leva em conta a correlação de forças, o caráter diferenciado dos atores políticos internacionais e na prática rejeita alianças pontuais com forças intermediárias. Neste caso, minimiza-se o papel dos governos democráticos, nega-se o valor dos esforços para formar coalizões e blocos alternativos aos propostos pelo imperialismo, eludem-se os antagonismos existentes entre as potências econômicas e financeiras e os países em desenvolvimento, desqualificando as justas reivindicações anti-protecionistas destes últimos e ignora-se a existência de intensas e profundas contradições interimperialistas.
Na prática, nega-se a luta pelas causas nacionais, adotando como programa máximo lutas “globais” e “desnacionalizadas”, desvinculadas das realidades concretas, o que as transforma em meras proclamações. É como se fosse possível desenvolver a luta anti-globalização sem qualquer relação com os embates que se travam no nível de cada país ou região, como se fosse possível substituir os diferentes sujeitos nacionais, que por suposto devem ser também internacionalistas, por um sujeito político global. No caso brasileiro, tal postura também é reflexo de uma falsa visão estratégica, na qual não há lugar para a luta democrática, a luta nacional e a luta social em todos os seus estágios, dos inferiores aos superiores. Uma estratégia sem tática, uma luta vaga pelo socialismo, em linha reta, sem matizações políticas nem etapas intermediárias.
A política externa de Lula e a que as forças progressistas desejam construir para o futuro governo é um degrau a mais no esforço para focar a ação internacional do país na luta pelo desenvolvimento nacional, com caráter democrático e popular, nas condições atuais do Brasil, da América Latina e do mundo. Trata-se de uma evolução e um aprofundamento de uma diplomacia patriótica, correspondente ao amadurecimento do Estado nacional brasileiro, que consolida a inserção do país no mundo com profissionalismo, realismo, boa dose de pragmatismo e autonomia, combinando a defesa dos interesses nacionais com as aspirações da humanidade por um mundo melhor, uma política externa que adicione elementos progressivos no processo de acumulação de forças da luta pela emancipação nacional e social do povo brasileiro.
* Editor do Vermelho