No Nordeste, cortador de cana vira soldador
Novos projetos industriais na região aumentam a demanda por trabalhadores qualificados. Ex-cortador de cana, acostumado a passar horas sob o escaldante sol que castiga os canaviais nordestinos, o pernambucano Josenildo Francisco da Silva, de 24 anos, deixou o campo e agora “sua a camisa” em um emprego urbano, atrás de uma solda no Estaleiro Atlântico Sul, instalado no Complexo Portuário de Suape, a 60 quilômetros de distância do Recife.
Por Murillo Camarotto do Recife, no jornal Valor Econômico
Publicado 22/02/2010 13:28
Em janeiro deste ano, Josenildo levou a medalha de bronze no primeiro campeonato de solda promovido pelo estaleiro – que corre contra o tempo para entregar a primeira de suas 22 encomendas: um petroleiro do tipo Suezmax que será operado pela Petrobras. Como prêmio pelos 58 rolos de arame transformados em solda nas imensas peças dos navios, Josenildo ganhou equipamentos de soldagem e um aumento de R$ 53 no salário, que passou a R$ 915 mensais.
O primeiro lugar no campeonato ficou com Clécio Robson de Santana, 32 anos, que, após muitas horas extras, derreteu 99 rolos de arame e foi premiado com equipamentos de solda, televisor com tela de LCD e um aumento de salário, hoje em R$ 1.055. Antes de ser campeão da solda, Clécio vendia biscoitos e farinha de trigo aos varejistas do litoral sul de Pernambuco.
Com a mudança em suas trajetórias, os dois trabalhadores são um reflexo de mudanças estruturais que estão em curso no Nordeste – em 2009, a região registrou , pelo segundo ano consecutivo, o maior crescimento do emprego industrial no país. Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), o emprego industrial na região Nordeste cresceu 3,96% em 2009, ante uma média nacional de 0,15%. O ano passado, é verdade, não foi muito favorável para a indústria, em razão da crise financeira internacional. Em 2008, entretanto, o Nordeste também ficou em primeiro, com alta de 3,15%, acima da média nacional de 2,55%.
Além de cortadores de cana e comerciários, o Atlântico Sul emprega hoje pescadores, manicures, agricultores e trabalhadores do setor hoteleiro da região, que fica próxima de destinos turísticos importantes, como a famosa praia de Porto de Galinhas.
A grandiosidade dos dois principais projetos em andamento em Suape (o estaleiro e a refinaria Abreu e Lima) vem gerando uma demanda significativa por mão de obra, especialmente nos níveis operacionais. A carência por soldadores, por exemplo, é uma das mais graves, e os profissionais mais especializados podem receber salários de até R$ 7 mil mensais, segundo informou o diretor regional do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) de Pernambuco, Antonio Carlos Maranhão Aguiar.
No caso do Atlântico Sul, a dificuldade em encontrar soldadores mais qualificados levou a empresa a contratar cerca de 200 dekasseguis brasileiros “com experiência comprovada” na indústria naval e de plataformas offshore. “A necessidade de contratar mão de obra experiente fora do Brasil se deve ao curto prazo para atender às encomendas de navios para a Transpetro e do casco da plataforma P-55, da Petrobras”, justifica o estaleiro.
Os benefícios e a possibilidade de ascensão em uma nova carreira, proporcionados pela crescente indústria local, justificam a troca de profissão. “Agora é muito melhor. Cortando cana, eu trabalhava mais e ganhava menos, uns R$ 250 por quinzena. E agora ainda tenho o plano de saúde, que é muito bom para a família”, conta Josenildo, que almeja os degraus mais altos da soldagem naval. “Quero ser líder de equipe e depois supervisor.”
A transformação no perfil do emprego na região de Suape passa por um intenso processo de capacitação profissional, que começou a ser pensado em 2005. Naquele ano, a decisão do governo em retomar a indústria naval brasileira, além do projeto de construção da refinaria Abreu e Lima, trouxe a necessidade de treinamento de um verdadeiro exército de profissionais, praticamente inexistentes nos arredores do porto.
Por meio de parcerias com o governo de Pernambuco e com as cinco prefeituras que integram a região de Suape, a escola do Senai instalada no município de Cabo de Santo Agostinho recebeu investimentos de R$ 26 milhões para se modernizar. Segundo Aguiar, entre 2007 e 2009 foram treinadas no local pouco mais de 20 mil pessoas em uma série de especialidades, com destaque para soldadores, montadores, encanadores industriais, caldeireiros e carpinteiros.
Somente no âmbito do Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (Prominp) foram treinadas cerca de 10 mil pessoas. Segundo o diretor do Senai, outros 7 mil profissionais devem ser capacitados em 2010 por meio do programa.
Antes de serem contratados pelo Atlântico Sul, tanto Josenildo quanto Clécio passaram por diversas fases de treinamento. Na primeira, que durou três meses, receberam reforço escolar nas disciplinas de língua portuguesa e matemática. Os alunos com melhor desempenho foram matriculados no Senai. Lá, os dois fizeram, por mais três meses, o curso de soldagem básica. Novamente, os aprendizes de maior destaque foram selecionados para um terceiro treinamento, dessa vez na escola do próprio estaleiro, onde já entraram empregados.
Apesar do treinamento, Clécio confessa que só aprendeu mesmo a arte da solda após alguns meses de trabalho. Segundo ele, o curso oferecido pelo Senai “é muito básico”.
A carreira na soldagem se mostra bastante promissora na região. Além das obras em Suape, que já resultaram na formação de 5 mil soldadores, projetos como a transposição do rio São Francisco, a ferrovia Transnordestina e a Copa do Mundo ainda devem demandar muitos profissionais. “Vejo que a necessidade de soldadores em Pernambuco ainda vai durar de seis a oito anos”, estima Aguiar, do Senai.
Ele acredita que, no médio prazo, o desenvolvimento dos projetos na região vai demandar um volume importante de profissionais de nível técnico e superior. Diante disso, o Senai já vem pesquisando o lançamento de mais cursos técnicos, além da ampliação dos existentes. “Estamos conversando com as empresas para adequação de conteúdo”, conta Aguiar. Entre os novos cursos, deve estar o de inspeção de equipamentos.
Patrão dos “campeões da solda”, o presidente do Atlântico Sul, Angelo Bellelis, já manifestou algumas vezes a preocupação em perder os profissionais após todos os meses de treinamento. A ameaça vem dos novos estaleiros que devem se instalar em Suape nos próximos anos, pelo menos três, que certamente flertarão com os trabalhadores já habilitados.
No que depender de Clécio, a preocupação do chefe faz sentido. “Se o salário for bom, não tem por que não ir”, afirmou. Em seguida, preferiu ponderar: “Mas é claro que o novo estaleiro terá que ter bastante encomenda, pra gente saber que terá trabalho por muito tempo”.