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"EUA impuseram terremoto político e econômico ao Haiti"

Em entrevista a Amy Goodman, do Democracy Now!, o jornalista do Haiti Liberte, Kim Ives, critica a presença de soldados norte-americanos no país devastado pelo terremoto. Ele lembra que, antes mesmo da tragédia do último dia 12, o Haiti já havia sido vítima de outro sismo, mas político e econômico, provocado pelos EUA há 24 anos. Para ele, melhor que enviar tropas, seria buscar o presidente exilado Jean Bertrand Aristide. "Criaria um contra-terremoto de esperança e orgulho popular".

Leia abaixo a entrevista:

Democracy Now!: Esta catástrofe é um acidente natural? 

Kim Ives: Não, de imediato. De fato, este terremoto foi antecipado por um terremoto político e econômico cujo epicentro está a 2000 milhas ao norte, em Washington (EUA), há pelo menos 24 anos. Podemos falar, em primeiro lugar, dos dois golpes de Estado perpetrados num período de 13 anos, com apoio dos EUA, que impôs regimes títeres que os haitianos expulsaram do poder.

Mas estes golpes de Estado e as ocupações militares posteriores por forças estrangeiras (o que é proibido pela Constituição haitiana) foram destrutivas não só para o governo e a soberania nacional, mas também para os governos e assembleias legislativas locais, as prefeituras e as assembleias eleitorais locais encarregadas de eleger um conselho eleitoral permanente.

Nunca se constituiu este conselho eleitoral permanente, que só existe de forma provisória e por isso (o presidente René) Préval, logo antes do terremoto, havia feito caso omisso da democracia popular, impondo seu próprio conselho eleitoral, o qual assegurava o domínio de seu partido.

Democracy Now!:  Para deixar claro, quando você fala dos golpes de 1991 e 2004, é preciso dizer que ambos levaram à derrubada e ao exílio do presidente Jean-Bertrand Aristide.

Kim Ives: É correto.

Democracy Now!: E você fala da participação dos EUA nesses golpes.

Kim Ives: Assim é. Em ambos os casos as forças armadas dos EUA tiraram Aristide do Haiti. A primeira vez foi desterrado em Washington, e na segunda terminou na África do Sul, onde passou os últimos seis anos

Estes terremotos políticos impostos por Washington vieram acompanhados de terremotos econômicos – as políticas econômicas que impuseram depois de expulsar a Aristide, que havia manifestado uma orientação nacionalista para construir a auto-suficiência nacional do Haiti. Os EUA não aceitavam, queriam que se privatizassem as nove indústrias estatais, que seriam vendidas a investidores norte-americanos e estrangeiros.

Há uns doze anos, sob a primeira administração de René Préval, foram privatizadas a Minoterie d’Haiti e a Ciment d’Haiti, as empresas estatais produtoras de farinha de trigo e cimento. A respeito do trigo, agora temos uma população faminta. Pode-se imaginar as possibilidades se o Estado tivesse um moinho robusto, capaz de produzir farinha.

O povo teria pão para comer. A empresa foi vendida para uma multinacional da qual Henry Kissinger faz parte do conselho diretor. E ponto, a empresa foi fechada. E agora o Haiti não tem um moinho de trigo, nem estatal nem privado.

Democracy Now!:  Onde o Haiti consegue seu trigo? É o país mais pobre do hemisfério.

Kim Ives:  Precisa importá-lo; uma boa parte bem dos EUA. O outro caso, mais irônico, é a fábrica de cimento. Trata-se de um país cujos fundamentos geológicos consistem, sobretudo, no calcáreo, que é o insumo básico do cimento. É um país que deveria e poderia ter uma empresa produtora de cimento, e a teve, mas foi privatizada e também fechada.

Começaram aproveitando as bases daquela que foi a empresa do cimento para importar cimento. Assim, quando se viaja pelo país e se vê milhares de edifícios de cimento destruídos, pode-se lembrar que serão necessárias milhões de toneladas de cimento, e agora será necessário importar todo esse cimento em vez de produzi-lo. O Haiti bem poderia e deveria exportar cimento e não importá-lo.

Democracy Now!: Um dos problemas mais dolorosos, para os haitianos no exterior é que não têm como saber sobre seus familiares no Haiti. Não podem se comunicar com eles.

Kim Ives:  Assim é.

Democracy Now!: E isso nos leva ao tema da empresa telefônica. 

Kim Ives: Exato. A Teleco foi a sepultura das empresas estatais no Haiti. Durante o primeiro golpe de Estado, de 1991-1994, as rendas da Teleco mantiveram o governo exilado do Presidente Aristide. E agora vemos que, uma semana antes do terremoto, esta companhia havia sido privatizada. Foi vendida a uma companhia vietnamita, a Viettel.

Se o Haiti tivesse uma empresa nacional de telefonia forte e dinâmica teria sido evitada uma grande parte dos problemas de comunicações que existem. Mas, ao contrário, todas as comunicações do país estão praticamente em mãos de três companhias privadas de celulares: Digicel, Voila y Haitel.

Democracy Now!:  Mas pode-se argumentar que a empresa foi privatizada no começo deste ano porque, por culpa dos seus donos anteriores, era ineficiente

Kim Ives: Foi precisamente o que ocorreu. O governo haitiano, sob a liderança de Préval e seus ministros, sabotou e sucateou a empresa. Falo sobre isso durante estes anos. Lembro-me que há 13 anos trouxe para cá uma delegação para falar com os sindicalistas. Faz muito tempo que luto contra a privatização.

Falei com um sindicalista da Teleco, Jean Mabou, um dirigente sindical. E ele me mostrou um quarto cheio de equipamentos de telecomunicações novos e modernos. E disse: “temos estes equipamentos, mas não permitem que sejam instalados. Estão sucateando a companhia estatal para privatizá-la". A ironia é que temos o lobo tomando conta do rebanho. Dessa maneira se mina a propriedade do povo em suas próprias empresas estatais.

Democracy Now!: Por desgraça, o mundo só presta atenção quando ocorrem catástrofes, e agora a atenção do mundo esta focada no Haiti. Você pode fazer um resumo da história haitiana desde 1804?

Kim Ives: Sim, breve. Em 1804, houve a  primeira e última revolução escrava vitoriosa da história, a primeira república negra do mundo, a primeira nação independente da América Latina, que se converteu em pedra angular de todas as outras revoluções. Mas precisou esperar 60 anos até que o governo de Abraham Lincoln a reconhecesse, depois da Guerra Civil nos EUA.

Depois, em 1915, os marines norte-americanos invadiram o país e se apoderaram do banco central e do governo. Passaram-se 19 anos até 1934; depois instalaram a Garde d'Haiti, a Guarda do Haiti, que funcionou como um braço dos marines para proteger os interesses dos EUA no país. A ocupação levou, em 1957, à ditadura de François "Papa Doc" Duvalier que, quando morreu (em 1971), delegou seu título de presidente vitalício a seu filho, Jean-Claude Duvalier.

Democracy Now!: Qual é o papel dos EUA nessa história?

Kim Ives: Os EUA sempre apoiaram a todos estes governos por razões geopolíticas. O Haiti se constituiu no principal baluarte contra o "expansionismo comunista" procedente da vizinha Cuba. Por isso os EUA sustentaram e apoiaram militar e economicamente aos regimes Duvalier, apesar da oposição do povo haitiano.

Democracy Now!: Uma cleptocracia? Os ditadores se enriqueceram à custa do empobrecimento do povo?

Kim Ives: Exato. E, depois de 1986 [quando o regime dos Duvalier foi deposto por uma insurreição popular], os EUA se deram conta de que esse modelo estava criando demasiados "Che Guevaras", demasiadas revoluções, na América Latina, e optaram por estas eleições de fachada para instalar dirigentes presumidamente mais democráticos, mas eram eleições compradas.

O Haiti foi o primeiro país da América Latina que derrotou o esquema eleitoral promovido pelos EUA, ao eleger para a presidência um padre pobre, Jean Bertrand Aristide. Quando tomou posse, em 7 de fevereiro de 1991, Aristide declarou a segunda independência do Haiti, porque o país queria tornar-se independente do domínio dos EUA e da França.
 
Estes responderam oito meses depois com um golpe de Estado, e o mandaram para o exílio. E assim começou o terremoto político e econômico com epicentro em Washington e Paris, há 24 anos. Assim foi dado o primeiro golpe contra Aristide. Ele foi mantido no exílio por três anos. Foi durante a administração de George H.W. Bush, mas continuou na administração de Bill Clinton.

A propósito, um dos compromissos principais de Aristide ao chegar à presidência foi aumentar o salário mínimo. Na segunda vez em que Aristide foi eleito, em 2004, foi seqüestrado quase de imediato pelas Forças Armadas e de espionagem dos EUA, enviado a uma república centro-africana, onde ficou praticamente preso.

Maxine Waters, congressista de Los Angeles, e Randall Robinson, fundador da organização TransÁfrica, recolheram Aristide na República Centro; de lá foram para a Jamaica e, depois, para a África do Sul, onde ele reside atualmente. Não pode voltar ao Haiti devido à pressão dos EUA. Autoridades da época, como Colin Powell e Condoleezza Rice, afirmaram que Aristide não podia sequer voltar ao hemisfério norte.

No exílio, na África do Sul, o presidente Aristide declarou que quer voltar ao Haiti, e tenho manifestado essa inquietação a várias pessoas no Haiti. Em Washington, o presidente Obama designou imediatamente aos presidentes Clinton e Bush para dirigir o esforço humanitário, afirmando que suas medidas não são partidárias.

Democracy Now!:  Então já surge a inquietação a respeito do retorno de Aristide. Os EUA controlam o aeroporto. O presidente Préval cedeu o controle sobre o aeroporto aos EUA. Mas Aristide pediu para regressar. Qual sua opinião da imagem – para não falar dos recursos – dos dois presidentes afirmando que o desastre diminui a diferenças políticas e que é preciso reconstruir o país?

Kim Ives: Bem, é um ponto exato. Ontem estive em frente ao hospital geral, onde vi os horrores, falando com uma multidão na esquina, e surgiu esse mesmo ponto. Porque o presidente Aristide não pode voltar? Ele quer. Assim o disse. Mas o governo não renovou seu passaporte diplomático, que já venceu. Não foi dado a ele um salvo-conduto para voltar ao país.

Se o governo de Barack Obama ou qualquer outro realmente estiver disposto a tomar esta medida – talvez melhor do que todos os C-130 com seus carregamentos, não só de alimentos e ajuda médica, mas também de fuzis -, poderiam mandar um avião à África do Sul buscar Aristide. Seria um gesto que criaria uma onda expansiva, um contra-terremoto de esperança e orgulho popular, que poderia restituir a força moral que o povo precisa para superar esta crise.

Democracy Now!: Para terminar – quem tem o poder aqui? Como o povo está organizado? Nesse aspecto, se coloca constantemente o tema da segurança para justificar que a ajuda fique apenas na área do aeroporto.

Kim Ives:  Este é o centro da questão. A segurança é um pretexto. Vemos em todas as partes do Haiti que a população se organiza em comitês populares para limpar, tirar os cadáveres dos escombros, construir acampamentos de refugiados, estabelecer segurança para esse acampamentos. Esta é uma população que é auto-suficiente, e tem sido já faz muitos anos.

Mas não podem sê-lo quando chega um grupo de marines com suas M-16 e começam a gritar com eles. O cenário defronte ao hospitala geral ontem dizia tudo. As pessoas entravam e saiam do hospital para levar comida aos seus ou porque precisavam de assistência, e um grupo de soldados da brigada 82 aerotransportada, colocados em frente ao hospital, gritava em inglês para a multidão. Não sabiam o que faziam, e aumentavam o caos ao invés de diminuí-lo. Teria sido cômico se não fosse trágico.

Não tinham que estar ali. Claro, se houvesse um exército de bandoleiros atacando o povo – o que não é o caso aqui – talvez precisassem trazer esses soldados. Mas agora o povo não precisa de marines, precisa de medicamentos. Esta situação resume o essencial. É o mesmo que fizeram após o furacão Katrina. São as vítimas que dão medo a eles; são “outros”, são os negros que levaram a cabo a única revolução escrava vitoriosa na história. Quem pode inspirar mais pavor a eles?

Democracy Now!: E as organizações comunitárias que existem por aqui?

Kim Ives: Ah, sim, As organizações comunitárias. Eu as vi, numa outra noite, na comunidade de Mattheew 25, onde estava hospedado. Um carregamento de alimentos chegou durante a noite sem aviso prévio. Podia ter ocorrido uma batalha campal. Entretanto, comunicou-se com a organização popular local, Pity Drop, que imediatamente mobilizou seus militantes.

Eles organizaram o local e sua cordão de segurança. Formaram uma fila com as 600 pessoas acampadas no campo de futebol atrás da casa, que também é um hospital, e repartiram a comida de forma ordeira e eqüitativa. Foram completamente capazes. Não precisam dos marines. Não precisam da ONU. Não precisam de nenhuma dessas coisas que a mídia, Hillary Clinton e as autoridades estrangeiras nos asseguram que precisam. Essas são coisas que o povo haitiano pode fazer por si mesmo e esta fazendo para si mesmo.

Fonte: Democracy Now!
Tradução: José Carlos Ruy

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