"A 'segurança' que os EUA levam ao Haiti é para quem?"
Em entrevista ao Vermelho, concedida por e-mail, a professora de geografia política na Universidade de Milão, na Itália, Teresa Isenburg, critica a ocupação do Haiti pelas tropas norte-americanas e sugere a razão de tantos soldados: “Essa segurança é para quem? Creio que seja para evitar convulsões sociais que atrapalhem os lucros da reconstrução”.
Publicado 21/01/2010 13:31
Ela destaca que grandes grupos norte-americanos, que terminaram seus trabalhos no Iraque, buscam novos territórios para investirem de forma segura. Ao falar sobre os interesses estratégicos da Casa Branca no Haiti, Teresa afirma: "Certamente já estão buscando um Karzai haitiano".
E adverte que, se a ajuda humanitária e a reconstrução não forem conduzidas de maneira a viabilizar um desenvolvimento interno, podem trazer conseqüências desastrosas a uma economia fragilizada como a do Haiti.
“No sudoeste da Ásia, a agricultura familiar local foi arrasada por sacos e sacos de alimentos que chegavam de fora. O dinheiro criou corrupção e aumento dos preços”, lembra Teresa sobre a ajuda internacional pós-tsunami. Confira a abaixo a entrevista:
Vermelho: O que a senhora pensa sobre a tragédia do Haiti e a atitude da comunidade internacional diante dela? Quais as implicações geopolíticas por trás da ajuda humanitária?
Teresa Isenburg: Em Roma tem um provérbio que diz: “o pior nunca morre”. Esta parece ser a sina do infeliz Haiti. As imagens comoventes e dolorosas da destruição ainda enchiam os olhos de lágrimas, quando chegou a notícia da modalidade da intervenção do governo dos Estados Unidos. Controle do tráfego aéreo e o envio de uma tropa de 10.000 homens, o que significa uma ocupação militar unilateral. Talvez uma ocupação “humanitária” como no Kossovo ou no Iraque.
A chamada comunidade internacional – com poucas exceções como o Brasil, os paises de governos mais a esquerda na América Latina e parcialmente a França – está paralisada, principalmente pelo perfil demais prudente do atual secretário geral das Nações Unidas.
Olhando o mapa, o Haiti se apresenta como um porta-aviões que não pode ser afundado; Port-au-Prince encontra-se diante de Maracaibo, na Venezuela, exatamente como Larissa, em Chipre, está em frente a Alexandria, do Egito, que controla o canal de Suez.
Não foi por acaso que o imperialismo inglês ocupou a cidade chipriota em 1878. E não podemos esquecer que Cuba se localiza apenas a poucas braçadas de natação. Os Estados Unidos têm um interesse estratégico evidente ali.
Vermelho: A escritora Naomi Klein alerta para a existência de uma verdadeira industria que explora desastres para impulsionar políticas impopulares a favor das grandes empresas norte-americanas. Que conseqüências isso pode ter para um pais já devastado como o Haiti?
Teresa Isenburg: Naomi Klein possui um ótimo conhecimento sobre o assunto. Primeiro desejo recordar que existe uma correlação entre catástrofes ambientais e movimentos políticos e sociais. As grandes secas do último quarto do século XIX, na Índia, na China e no Brasil, alimentaram rebeliões messiânicas camponesas (como Canudos).
O terremoto na Nicarágua, em 1972, abriu caminho para a eliminação da dinastia Somoza em 1979. Na Itália, o terremoto da Hirpinia marcou o fim da política de alianças entre o centro e o centro-esquerda. Em geral, é a falta de socorro que desencadeia as revoltas sociais e modifica as relações políticas.
Recentemente algo tem se modificado. O Haiti me recorda o tsunami de 2004, no sudeste asiático. Também ali vimos uma suspeita e rápida “generosidade” na ajuda estadunidense e outros. Foram enviadas pessoas e montanhas de produtos e dinheiro. Porém, a China não deixou o campo livre aos Estados Unidos e limitou seu campo de ação.
Sobre economias frágeis, ajudas enormes em produtos e dinheiro produzem conseqüências destruidoras. No sudoeste da Ásia, a agricultura familiar local foi arrasada por sacos e sacos de alimentos que chegavam de fora. O dinheiro criou corrupção e aumento dos preços.
Com o Haiti, poderá suceder a mesma coisa, com a agravante de que, para a reconstrução, entrarão grupos estadunidenses (como a Halliburton), que terminaram seus trabalhos no Iraque e buscam novos territórios onde investir de forma segura (quer dizer, garantidos pelo governo dos EUA). E serão privilegiados os sujeitos econômicos caribenhos de Miami, ligados à ilegalidade e à criminalidade. Certamente, nos EUA, já estão buscando um Karzai haitiano.
Vermelho: O que significa aos EUA estarem priorizando a “segurança” no Haiti, com o envio de tantos soldados?
Teresa Isenburg: Como já disse, 10.000 soldados significa uma invasão. As forças armadas dos Estados Unidos se abastecem somente do que chega das empresas norte-americanas, o que quer dizer que a economia local não tem nenhuma vantagem, e são criados engarrafamentos permanentes, limitando o afluxo de auxilio à população. A “segurança” é para quem? Creio que seja para evitar convulsões sociais que atrapalhem os lucros da reconstrução.
Pergunto-me como fica a situação do ponto de vista do direito internacional. No Haiti existe um contingente autorizado pela ONU, com comando brasileiro. Será que o acordo bilateral USA/Haiti não criará tensões entre o Brasil e os Estados Unidos?
O governo brasileiro tem sido muito ativo no plano internacional, como ficou evidente em Kopenhagen, na conferência sobre mudanças climáticas. Não acredito que o Brasil aceitará facilmente as manobras do Departamento de Estado. Preciso sublinhar, mais uma vez, que a União Européia deixa o campo livre aos EUA e deixa sozinho o Brasil.
Vermelho: Uma catástrofe natural pode ter seus efeitos diminuídos. Por que o Haiti não estava preparado e se mostra tão desarticulado no combate aos danos? Herança de sua historia?
Teresa Isenburg: Uma catástrofe ambiental, principalmente um terremoto, dificilmente pode ser evitada. Mas pode ser anunciada. Neste caso, como para o tsunami, me deixa surpreendida que nenhum aviso tenha sido dado, já que existe um vasto sistema de controle sobre os movimentos geológicos e climáticos.
Quanto mais a população é pobre tanto mais as redes de infra-estruturas e de serviços são débeis e as conseqüências mais perversas. Como é evidente, os acontecimentos dos últimos 20 anos no Haiti não criaram as condições para que existisse uma administração capaz de garantir o mínimo para a população local. Mas uma invasão não resolve os problemas, os complica ainda mais.
Vermelho: Qual deve ser o caminho para a reconstrução do Haiti e como deve ser a ajuda internacional, de maneira que não se caracterize nem omissão, nem intervenção?
Teresa Isenburg: Claro que é preciso uma intervenção imediata de ajuda, tendas, água, alimentos, medicinas. Mas se pode pensar em uma reconstrução centralizada sobre o desenvolvimento interno: reerguer as habitações com mão de obra local e salários decentes, desenvolvimento da agricultura familiar para o mercado interno, rede capilar de escolas em tempo integral, com professores locais formados rapidamente, assistência médica, higiênica e sanitária com a colaboração da Cruz Vermelha, energia eólica…
Para realizar tudo isso é necessário relativamente poucos recursos financeiros, e, portanto, poucos negócios. Máquinas simples, em parte auto-produzidas, que ficariam sobre o controle dos haitianos e não alimentariam as dívidas internacionais. Seria um modelo diferente do neoliberismo, não permitiria que as grandes ONGs se intrometessem, substituindo a justiça pela caridade. Claro que este modelo é visto como algo muito perigoso para o grande capital.
Uma duvida dolorosa: diz-se que a crise ambiental poderá trazer grandes tragédias. Será esta a prova geral de como afrontá-las?
A tragédia do Haiti poderia fazer nascer uma flor, mas estão semeando espinhos.
Da Redação,
Por Joana Rozowykwiat