Alerta ao Haiti: 'Ajuda humanitária converteu-se em projeto de poder'
Por trás do sincero discurso de ajuda às vítimas da tragédia haitiana, há um jogo de interesses nacionais cada vez mais explícito, afirma o professor de relações internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser. Foi assim na ajuda aos países afetados pelo tsunami de 2004 ou pelo furacão Mitch, de 1998. "Com a ajuda humanitária, vem o direcionamento político", argumenta. Leia abaixo a entrevista concedida a O Estado de S.Paulo.
Publicado 18/01/2010 11:25
O Estado de S.Paulo: A tragédia no Haiti desencadeou uma avalanche de ajuda humanitária de vários países. Certamente há uma preocupação real com o povo haitiano. Mas quais são suas implicações geopolíticas?
Reginaldo Nasser: Tem crescido muito o número de estudos sobre a relação entre ajuda humanitária e interesse nacional. Em casos como o Haiti existe um sentimento solidário, do qual as pessoas são tomadas – e Estados dão vazão a ele. Trata-se de um fenômeno antigo.
A novidade é que, com o fim da Guerra Fria, o volume de ajuda cresceu exponencialmente. O Banco Mundial, por exemplo, aumentou em 800% o envio de recursos sob a rubrica "ajuda humanitária" desde o início dos anos 90. Hoje, o mesmo tema é responsável por 30% do orçamento do Pentágono. A ajuda humanitária transformou-se em um projeto político.
O Esatdo de S.Paulo: Há exemplos concretos sobre essa projeção de poder?
Reginaldo Nasser: Um exemplo é o tsunami de 2004. Logo depois da tragédia, os EUA enviaram tropas de ajuda ao leste da Ásia, sabendo que o Congresso americano vetava a cooperação militar com a Indonésia por causa da herança da ditadura de Suharto.
Sob o argumento da ação humanitária, houve uma reaproximação militar e, ao final, a Casa Branca reverteu o bloqueio do Legislativo. Também com esse tsunami, houve uma aproximação de Washington com o Sri Lanka, que tentava exterminar a guerrilha tâmil. Enfim, por causa do tsunami, os EUA fizeram um grande investimento militar na região.
O Esatdo de S.Paulo: Imagino que essa reaproximação não se limite à dimensão militar.
Reginaldo Nasser: Há um aspecto econômico fundamental. Quando houve o furacão Mitch na América Central, em 1998, o Banco Mundial e o FMI ofereceram uma ajuda significativa, mas condicionaram o envio a reformas econômicas. Honduras foi pressionada a privatizar seus portos, aeroportos e sistemas de comunicação. Na ajuda configurou-se um direcionamento do rumo de política econômica que o país devia tomar.
O Esatdo de S.Paulo: Os EUA parecem ter visto na tragédia do Haiti uma chance de reforçar uma imagem de "potência benevolente".
Reginaldo Nasser: Sem dúvida, mas isso sempre existiu. Os EUA têm um sentido missionário, o velho discurso de estender a mão aos povos independentemente de fronteiras. Mas isso ocorria também na Guerra Fria. Na tragédia, americanos são os primeiros a se manifestar.
O Esatdo de S.Paulo: Por quê?
Reginaldo Nasser: Por duas razões: além da ideológica, os EUA são a única potência com meios para agir de imediato. Washington tem bases, soldados, navios e aviões no mundo todo. É interessante também notar que a preparação para a guerra tornou-se a mesma que para a ajuda humanitária. Há uma militarização da ajuda humanitária.
Fonte: O Estado de S.Paulo
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