Osvaldo Bertolino: Politicagem da mídia resgata sandices de FHC
O argumento da direita na Comissão de Relações Exteriores do Senado, de que a proposta do governo de que a Venezuela seja membro permanente do Mercosul precisa ser discutida com mais profundidade antes de ir ao plenário da Casa, é uma boa oportunidade para examinarmos a questão com lupa de precisão.
por Osvaldo Bertolino,
no blog O Outro Lado da Notícia
Publicado 04/11/2009 20:48
Em editorial na edição desta quarta-feira (4), o jornal O Globo diz que estava correta a linha adotada pelo relator do assunto na comissão, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).
O argumento da direita na Comissão de Relações Exteriores do Senado, de que a proposta do governo de que a Venezuela seja membro permanente do Mercosul precisa ser discutida com mais profundidade antes de ir ao plenário da Casa, é uma boa oportunidade para examinarmos a questão com lupa de precisão. Em editorial na edição desta quarta-feira (4), o jornal O Globo diz que estava correta a linha adotada pelo relator do assunto na comissão, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).
Diz o jornal que já foi criticado pelo presidente venezuelano Hugo Chávez por seu ranço contra o país, a “sensata recomendação para que os senadores rejeitassem a proposta, por causa do real teor antidemocrático do regime bolivariano chavista, foi, entretanto, rechaçada por 12 votos a cinco, pelo rolo compressor do Planalto movido a alguns argumentos enganosos”.
Vejamos quais são os argumentos “sensatos” de O Globo. “No aspecto político, foi construída a risível interpretação de que é possível separar Estado de governo. Poderia em algum outro lugar do mundo, menos na Venezuela, onde Chávez executa com método um projeto autoritário, vertical, com ele no vértice mais alto.” O enganoso argumento da publicação direitista ignora o Estado de Direitos e os canais legais para a tomada de decisões naquele país.
Abusando da retórica invertida, O Globo diz ainda que “não faltam tinturas fascistas na criação de milícias armadas subordinadas ao caudilho.” Para a direita, qualquer iniciativa de participação popular nos destinos de um país recebe a pecha de “antidemocrática”. É como se a democracia fosse uma propriedade exclusiva da elite de cada país. A tentativa do povo de participar da vida política, para a direita, é “antidemocrática”, ou, pelas lentas reacionárias de O Globo, “fascismo”.
Editorial rasteiro do Estadão
Também o jornal O Estado de S. Paulo, em sua edição desta quarta-feira (4) dedica um editorial à questão. “O venezuelano Hugo Chávez é um tipo rudimentar. O brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva não é. Chávez, que impôs ao seu país a reeleição ilimitada, diz não entender por que um presidente ‘que governa bem e tem 80% de aprovação’ não pode disputar um terceiro mandato consecutivo, como se as regras da ordem democrática devessem variar conforme o desempenho dos governantes e os seus índices de popularidade”, agride o editorial, já em seu início.
Sem educação, como de hábito, o editorial apela para o jogo rasteiro. “Lula, que, em parte por convicção, em parte por um cálculo do custo-benefício da aventura reeleitoral, recusou a possibilidade, acredita que pode chegar aonde quer por outros meios, mais sofisticados do que é capaz de conceber a mentalidade tosca do coronel de Caracas”, diz. Segundo o latifúndio midiático da família Mesquita, Lula está criando um “bloco de controle da máquina estatal, da manipulação desabrida” do sistema político.
O editorial se apóia na definição ignóbil do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), que recentemente denominou o governo Lula de “autoritarismo popular” — segundo o torpe editorial de O Estado de S. Paulo “um acúmulo de transgressões e desvios que ‘vai minando o espírito da democracia constitucional’”. “Esse processo de erosão das instituições e procedimentos é tão mais temível quanto menos ostensivo e menos expresso em atos de violência política crassa, à maneira do que Chávez faz na Venezuela para quebrar a espinha da democracia no seu país”, diz o texto.
Idéias artificiais de FHC
Estes dois editoriais torpes amplificam uma ladainha da direita que nos últimos tempos andou afônica. Reduziram-se as bravatas, o discurso fácil do oportunismo político, o denuncismo estéril. Até parece que todo mundo ficou mais responsável, mais conseqüente. E absurdos deixaram de ser levados a sério. Invenções estapafúrdias, como esse tese esquizofrênica de FHC, deixaram de ser testadas.
A impressão que se tinha é a de que a eficiência do debate político teria aumentado. E uma energia preciosa deixou de ser gasta em bate-bocas, bobagens e longos passeios por becos sem saída para ser aplicada no que importa: desenvolver o país, sanar suas mazelas, gerar mais qualidade de vida para todos. Essa era a fotografia do debate político visto em sua superfície. Mas basta levantar um pouco o tapete para ver o que há em suas profundezas.
Só os ingênuos poderiam acreditar nesse amadurecimento do quadro político brasileiro. Estamos, na verdade, passando por uma fase de rearticulação de forças. A disparidade de propostas disputando a hegemonia do país é um indício seguro de mais embates de grandes proporções pela frente. Leques de opções com pólos antagônicos, que mal se falam e quando falam não se entendem, são coisas típicas de um país como o nosso.
Estamos longe ainda de inaugurar no país uma era de consensos mínimos. (Aliás, a capacidade da mídia de atrapalhar a vida e o desenvolvimento do país parece infinita.) O ponto central deste debate se resume a algumas questões. Qual é o tamanho ideal que o Estado brasileiro deve ter? Quantas pessoas devem trabalhar para o setor público? Quanto o Estado deve arrecadar de impostos?
Para os defensores da “democracia” é como que se o mundo estivesse caminhando inexoravelmente para uma época em que os Estados são cada vez menores, centrados na administração da ciranda financeira. Até inventaram um nome para o novo paradigma: “Estado mínimo”. O papel e o microfone aceitam qualquer bobagem. A realidade, como sempre, é muito mais complexa do que idéias artificiais como essa de FHC e seus blue caps.
Maiores pensadores dos séculos XIX e XX
Uma das maneiras de medir a eficiência do Estado é olhar a sua capacidade de transferir renda. Mas, para os liberais de hoje em dia — os neoliberais, um grupo meio esquizofrênico, para o qual o Diabo sempre aparece na forma de Estado —, isso não passa de “populismo” ou “populismo autoritária”, na definição do trêfego FHC. Afinal, o que quer dizer essa palavra tão falada e nunca explicada? Simpatia pelo povo, explica o dicionário Houaiss.
Pode ser também doutrina e prática políticas que pregam a defesa dos interesses das camadas não privilegiadas da população, mas que se limitam a ações de cunho paternalista. Obviamente, essa segunda definição é a preferida dos neoliberais. Para eles, é isso que está ocorrendo na América Latina, inclusive no Brasil.
É preciso esclarecer algumas coisas. No mundo das coisas reais, as políticas populares adotadas pelos governos progressistas da América Latina — sobretudo o de Hugo Chávez, na Venezuela — solapam os “fundamentos” da democracia liberal. E aprofundam os da democracia popular. Quais são as idéias de uns e de outros?
Vejamos: quem, por exemplo, são os maiores pensadores dos séculos XIX e XX, ou quem foram os maiores do milênio? Quem moldou o mundo — ou, melhor dizendo, o moldou para melhor? A maioria das listas desse tipo apresenta filósofos, economistas e líderes políticos progressistas. Se a nossa preocupação é apresentar idéias que sobreviveram e prosperaram, pode-se descartar a democracia liberal e sua descendência.
Maldade insana do liberalismo
O neoliberalismo, que freqüentemente dá um ar de modernidade à maldade insana de regimes políticos direitistas, vai conquistando seu lugar nos livros de história com a corrupção, as mortes, o sofrimento e a pobreza que provoca. Os estudos de acadêmicos modernos estão jogando por terra aquilo que, no passado recente, se argumentou serem as vitórias do liberalismo renovado. Sendo assim, que idéia da direita merece ser lembrada como relevância histórica?
Mas os conservadores se propõem a impedir a continuidade da tendência progressista latino-americana por meio da pregação fundamentalista neoliberal contra o “populismo”. Bater eternamente na mesma tecla, utilizando para isso a monopolização dos meios de comunicação, é uma doença política que, em última análise, alimenta o cinismo neoliberal.
O populismo, segundo Norberto Bobbio, é uma manifestação política que tem o povo como inspiração, sem obedecer a uma ”elaboração teórica e orgânica sistemática”. FHC, que gosta de ser bajulado como intelectual, deveria levar essa formulação em consideração. Uma das bobagens que o ex-presidente gosta de divulgar é a de que Lula tende a seguir a linha “populista” de Getúlio Vargas.
A presença do varguismo
Qual é o problema, no fundo? Vargas é o presidente mais lembrado do país. Perto dele, todos os outros parecem figuras pálidas. A principal razão é a fantástica transformação que liderou em pouco mais de duas décadas. O Brasil de 1954 era bem diferente da república bronca de 1930. Era o mais promissor centro de produção industrial da América Latina.
Sob o comando de uma inspetoria federal, o atual Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), estradas começavam a chegar a regiões remotas. Linhas aéreas passaram a conectar o Brasil aos Estados Unidos e às capitais européias. Uma massa de habitantes do campo mudara-se para as cidades, envergando o macacão de operário e organizando-se em sindicatos criados por Getúlio Vargas.
A federação frouxa existente até 1930, em que o chefe regional muitas vezes desafiava impunemente o presidente da República, deu lugar a uma em que o poder da Capital Federal passou a ser incontestável. Aconteceu também uma mudança no eixo e na qualidade da política.
Antes feita por oligarcas rurais, com base na manipulação dos votos, ela tornou-se crescentemente complexa após a incorporação de forças novas, como sindicatos de trabalhadores. O serviço público, irrelevante antes de Getúlio Vargas, se tornou relativamente bem organizado. O varguismo é uma presença até hoje, como atesta o exemplo do presidente Lula.
Estridência da direita
A estridência da direita não consegue ocultar um fato: o Brasil está diante de nova possibilidade de retomar um grande projeto de nação. Eis o centro da questão. FHC é um ícone da manipulação ideológica que intenta manter a administração macroeconômica imune à manifestação da vontade popular. É o sonho dos liberais de fazer das eleições brasileiras algo sem poder de interferência na economia.
Esse é o sentido do axioma, repetido à exaustão, de que a economia brasileira precisa estar assentada em “instituições sólidas”. Recentemente o ex-presidente neoliberal disse que os “mercados” precisam ser alertados para os riscos do “populismo”. “Eles vêem uma nuvem lá longe sem se dar conta de que ela vem na direção deles”, disse ele. “O mercado não é um instrumento muito rápido na inteligência dos acontecimentos”, afirmou.
(É preciso esclarecer uma coisa: o “mercado” ao qual se refere FHC não é o representado pela célebre mão invisível de Adam Smith. É aquele grupo de gente que compra e vende, todas as horas, todos os tipos de papel financeiro.)
Moralidade dos povos
Em seu artigo, FHC diz que o projeto de Lula “pode levar o país, devagarzinho, quase sem que se perceba, a moldar-se a um estilo de política e a uma forma de relacionamento entre Estado, economia e sociedade que pouco têm que ver com nossos ideais democráticos”. Até os empresários que apóiam o governo foram atacados, definidos como “ingênuos capitalistas”.
FHC, como não poderia deixar de ser, retoma a velha e esfarrapada bandeira udenista da “moralidade” “Parece mais confortável fazer de conta que tudo vai bem e esquecer as transgressões cotidianas, o discricionarismo das decisões, o atropelo, se não da lei, dos bons costumes”, diz o udenista redivivo.
Seria apaixonante enveredar aqui por uma discussão sobre a moralidade dos povos. Mas os tempos e os espaços são curtos. A moralidade se submete aos processos seletivos de variação, adaptação e competição em busca da sobrevivência dos grupos sociais. Daí a contramarcha histórica da direita, que existe unicamente para preservar seus privilégios, por meio de conchavos entre os agentes que sustentam osatus quo.
Se não basta a violência como elemento político, modalidade em que a direita brasileira se destaca historicamente — é só observar a lista de golpes e tentativas de golpes de Estado —, há a constatação ao alcance de todos de que, em matéria de corrupção, os udenistas/demo-tucanos têm muito conhecimento de causa.
Exemplo tragicômico
Está dito por onde a direita pretende caminhar. E quem disser que não consegue enxergar o que seria o Brasil com ela no governo está mentindo. Por isso, FHC e seus lacaios atacam com um discurso cheio de moralismos fáceis que desafiam a lógica e deixam antever, se ganharem as eleições, uma gestão pintada com as cores do absurdo liberal.
O ponto aqui também é claro: a direita quer se apresentar como o gerente mais capacitado do projeto que deixou o Brasil na mão de banqueiros de todo tipo e de toda laia. “Partidos fracos, sindicatos fortes, fundos de pensão convergindo com os interesses de um partido no governo e para eles atraindo sócios privados privilegiados”, diz FHC. “Eis o bloco sobre o qual o subperonismo lulista se sustentará no futuro, se ganhar as eleições”, ataca.
A repercussão do artigo de FHC no jornal O Estado de S. Paulo é mais um exemplo tragicômico do panorama político brasileiro. Possivelmente porque ela conseguiu sintetizar o pensamento daquilo que o jornalista Sebastião Nery chama de UDNs civil, militar e gráfica.
FHC, com seu tradicional nhen-nhen-nhen, falou de tudo um pouco. Só faltou — por modéstia, talvez — repetir Ruy Barbosa: “Eu não sou uma pessoa, mas um programa”. Um programa que, resumidamente, associa o enfraquecimento do Estado ao fortalecimento da “democracia”.
A cantilena surgida no Império
É a velha cantilena dos partidos conservadores, que surgiram no Império, mandaram na República Velha, atentaram contra os presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e João Goulart, e, mais recentemente, sustentaram a “era” neoliberal. Lula é de outra espécie de governantes.
Em 1989, ele não desceu aos subníveis do discurso político de Collor. Collor recusou-se a debater com os adversários, pautou suas intervenções pela frase de efeito e pelo que seu público-alvo queria ouvir, não por seu projeto para o país, e lançou mão de expedientes sórdidos de campanha sempre que os julgou necessários. Ganhou.
Lula norteou sua campanha, de modo geral, pela ética de não atacar os adversários pessoalmente e pela transparência de dizer francamente o que iria fazer na Presidência. Foi taxado de ingênuo por tender à verdade e de despreparado por não contra-atacar Collor em seu terreno marrom. Perdeu.
Se em 1989, a derrota potencializara o candidato da Frente Brasil Popular — especialmente pelo destino que teria Collor — a derrota, em 1994, estigmatizou Lula como um candidato que pregava contra a “modernidade”. Os adversários eram FHC e suas circunstâncias — oponentes duros.
Lula liderou as pesquisas com boa margem por muito tempo. E fez a uma campanha acertada, plural: cortava o Brasil vicinal com a Caravana da Cidadania e discutia o futuro econômico do país com o empresariado nacional. Não ganhou, simplesmente, porque o momento era o de consolidar as linhas mestras do conservadorismo.
Politicagenzinha sem ética
O ataque ao vice de Lula, José Paulo Bisol, serviu de estopim para a derrocada da campanha. (Bisol foi acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras. A “denúncia” do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, não foi provada e o jornal teve de pagar indenização de R$ 1,191 milhão ao ex-candidato a vice.)
Mas o tropeço de Rubens Ricupero, sucessor de FHC no Ministério da Fazenda do governo Itamar, não representou qualquer arranhão à campanha tucana. (Antenas parabólicas captaram uma conversa informal entre Ricupero e o repórter da Rede Globo Carlos Monforte. “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura, o que é ruim, esconde”, disse ele.) A mídia viu enorme gravidade no primeiro caso e quase nenhuma no segundo. O país acabou embarcado no bonde de FHC, mas à primeira chance fez a baldeação.
Existem, a rigor, dois tipos de política. Um é a política de persuasão, feito à base de idéias. O outro é a política de insultos, feito à base de gritaria e denúncias vazias. É o confronto entre o raciocínio e o berro. O mérito maior do primeiro tipo é o de levar as pessoas a refletir. Reexaminar certas questões. Já o segundo tipo é uma contribuição vital para fixar nos corações e mentes tolices e malignidades — de tanto ser repetidas elas acabam ganhando ares de fato estabelecido. FHC, com sua falta de grandeza, segue o segundo e faz a sua politicagenzinha sem ética bem ao gosto da mídia.
Fonte: Blog O Outro Lado da Notícia