Luiz Carlos Antero – O linchamento da “diva” loira
São antológicas as cenas de explícita histeria contra a moça-loira-de-minissaia, verificadas naquela escola privada chamada UNIBAN, culminando com seu linchamento moral. Trata-se de material de primeira qualidade para o exame da imbecilização coletiva de certos estratos sociais no atual estágio do capitalismo.
Publicado 04/11/2009 09:58 | Editado 04/03/2020 16:34
A moça, ao “protagonizar” tamanha convulsão (não vem ao caso se teve a intenção de excitar centenas de antropóides), terá contribuído para um determinado avanço científico de diversas especialidades num largo espectro das ciências humanas — da sociologia à antropologia, da psicologia social à psicanálise contemporânea.
Pois, pouco do que se viu seria tão evidente.
Da nudez ao excesso de panos
Ao longo do processo do desenvolvimento social, as pessoas, originalmente despidas, foram se recobrindo de acordo com o clima, as conveniências sociais, as modas, verificando-se que condições de liberdade determinam a possibilidade de se vestir sem censura — mas tocadas sempre pelo pudor mais ou menos vitoriano de cada época.
Hoje, é verdade que, mesmo que isso não agrade ao império global, os limites para essa possibilidade já passam ao largo da próspera indústria da moda, que se sustenta fundamentalmente nas classes abastadas, legando uma razoável margem de livre escolha na ampla e diversificada produção do vestuário para o baixo e médio consumo de massas.
Entretanto, a fetichização do corpo feminino — tratado como compulsivo objeto do desejo — sempre permeou todas as épocas, e seu balizamento foi crescentemente determinado pela moral vigente nas diversas vertentes religiosas, com respaldo nas variadas formas de apropriação e espoliação na esfera produtiva.
César pareceria sério
E, bem além das grifes, nem a progressiva presença da mulher no mercado de trabalho atenuou sua “obrigação” de vestir-se com discrição para ser moralmente “aprovada”. Qualquer roupa mais ousada poderia criminalizá-la pelo (in)explicável descontrole do sexo oposto, justificando toda ordem de aberrações, inclusive as curras coletivas, morbidamente exibidas nas telas de cinema.
A ocultação pudenda converteu-se assim em determinação, como se a noção do “pecado” se associasse a uma maior ou menor exposição das formas e determinasse uma maior ou menor degradação da sociedade (quando, ao contrário, indício significativo dessa degradação constaria da dissimulação que deforma as relações humanas, nas quais o corpo é recriado na forma da mercadoria).
Assim, a uma mulher, “parecer séria” passou a pressupor o retrato da sua intimidade por mais indevassável que fosse. Que o diga o próprio imperador César, de quem nunca se exigiu tal prova comprobatória.
Mas com que roupa?
Das pesadas vestimentas medievais à burka, as mulheres sempre pertenceram ao contingente social mais penalizado pela hipocrisia reinante em todas as épocas históricas, numa relação direta com o domínio dos meios de produção e seu equivalente na inferiorização social e de gênero.
A necessidade de reduzir o peso da opressão se manifestou assim, em determinados momentos, também na redução do vestuário e na contestação dos padrões morais que tradicionalmente lhes determinaram uma posição inferiorizada numa sociedade machista e de exploração do trabalho feminino.
Na Sapucaí
Tal fenômeno poderia atingir exemplarmente seu paroxismo no carnaval do Rio de Janeiro, onde a nudez se estabeleceu de longa data, sem que, nem por isso, sejam comuns, no âmbito de uma festa popular, as cenas nas quais turbas de 700 machos ensandecidos partem para as sevícias das formosas moçoilas que, rebolativas, saracoteiam fartamente na Sapucaí.
Modernamente, esse furor coletivo que se verificou na UNIBAN reúne outras explicações: o moralismo, inclusive estético, apresenta uma prevalência de classe (média) muito definida, fundamentado inclusive pelas escassas possibilidades de realização dos seus anseios de ascensão social — que, pelo contrário, tendem ao achatamento e proletarização — rumo aos padrões superiores de renda e consumo.
Notável patologia
Além disso, a influência obscurantista da mídia e das religiões conservadoras acompanha, ao tempo que reproduz, esse histrionismo repressivo. Não foi, assim, o excesso de liberdade e ausência de limites que ocasionou o barbarismo, mas a mesma velha filosofia repressiva que prega “o amor pelo buraco do lençol”.
No fundo, a choldra delirante gostaria de ver a moça ao natural em ambiente privativo até para estuprá-la — como se verbalizou, inclusive ao qualificá-la como “puta” e “vagabunda” —, mas as aparências determinam, na exteriorização, demonstrações públicas de reprovação de conteúdo absolutamente hipócrita e preconceituoso. E esse arcabouço de sandices apresentaria um perigoso tônus fascistóide.
Esta é uma notável patologia em sociedades nas quais as transformações estruturais ainda se encontram travadas por uma forte hegemonia e espoliação de classe, sob a prevalência da ditadura do capital financeiro — perfeitamente perceptível no nível de superestrutura, onde a moral é, a um só tempo e contraditoriamente, mercantilizada e devassa, entretanto hipócrita, caolha e reprimida.
Nas coxas, o bizarro limite
Nessas circunstâncias, a canalização das energias se dá de modo confuso e anárquico, em especial quanto às frações de classe que se localizam num processo mais acentuado da crise de realização — e de suas ilusórias expectativas.
Desse modo, no ambiente, as coxas da moça (e suas formas generosamente voluptuosas) simbolizam na essência a incapacidade e a impotência de seus agressores no bizarro limite da incerteza de suas ambições.
E foi assim que, nesse quadro conceitual, a mídia global não passou em branco. Com sua consultora de modas, no “Fantástico”, atribuiu solene importância à escolha da roupa, que seria o elemento determinante da histérica comoção. Então tá! Agora está fantasticamente explicado o sumiço da moça de suas aulas na UNIBAN desde o dia 22 de outubro passado.
Luiz Carlos Antero é Mestre em Sociologia, escritor e jornalista