América Latina: A retirada imperial se acelera
Em poucos dias, sucederam-se dois fatos que revelam, em pequenos países latino-americanos antes subordinados a Washington, que a ex-superpotência já não controla sequer aqueles que foram seus firmes aliados durante décadas. Os recentes acontecimentos no Paraguai e em Honduras revelam que a retirada imperial de seu quintal se acelera durante a atual crise sistêmica.
Por Raúl Zibechi*, no Opera Mundi
Publicado 13/10/2009 11:33
O governo de Fernando Lugo decidiu suspender o programa Novos Horizontes do Comando Sul, que previa a utilização de 400 soldados norte-americanos em ações "humanitárias"; A presença militar estrangeira no Paraguai sempre foi rechaçada pelos movimentos camponeses e sociais, mas também pela diplomacia brasileira, que nunca viu com bons olhos a realização de manobras em zonas sensíveis como a represa fronteiriça de Itaipu, responsável por 20% da energia consumida pela oitava potência industrial do planeta.
A decisão de Lugo foi baseada no "novo cenário internacional em termos de defesa, segurança e soberania". E o próprio presidente confirmou o impacto que os debates no seio da Unasul tiveram sobre sua decisão, afirmando que na ocasião "foi muito questionada a presença de soldados norte-americanos na região".
A resposta da embaixadora de Washington em Assunção, Liliana Ayalde, qualificando a decisão de "lamentável", reflete a impotência imperial naquele que foi um de seus mais servis aliados durante oito décadas. Ela se limitou a desmentir que a presença de tropas norte-americanas no Paraguai tenha relação com atividades de inteligência vinculadas ao Aqüífero Guarani, uma das maiores reservas de água doce do mundo. Tampouco tiveram repercussão suas menções às obras sociais construídas pelos soldados do Comando Sul e a suas operações sanitárias.
A Campanha pela Desmilitarização das Américas (CADA) e o Serpaj- Paraguai denunciaram as operações do Medrete (Exercício de Treinamento de Aptidão Médica, pela sigla em inglês) como uma forma de ingerência no país. Grupos de meia centena de soldados do Comando Sul entravam até aldeias remotas, especialmente nas zonas de conflito por terras, onde, além de distribuir medicamentos e óculos, interrogavam a população e treinavam as guardas rurais ligadas aos proprietários de terras.
A presença militar norte-americana no Paraguai foi interpretada como um vasto plano de controle de uma zona estratégica que levou Washington, na década de 1980, a construir, a apenas 200 quilômetros da Bolívia, a base de Mariscal Estigarribia, onde é possível operar aviões B-52, C-130 Hércules e C-5 Galaxy. Com a decisão de Lugo, as manobras com soldados que gozavam de imunidade diplomática terminaram e o acesso de Washington à região deu um passo para trás.
O inesperado retorno de Manuel Zelaya a Tegucigalpa e sua entrada na Embaixada do Brasil deixam o país de Lula no lugar de maior destaque na crise provocada pelos golpistas. Trata-se de um êxito notável da diplomacia brasileira que deixa em maus lençóis o governo de Barack Obama, que naufraga entre a impotência e a tolerância aos golpistas.
Lula levou o tema à Assembleia das Nações Unidas e se permitiu convocar o Conselho de Segurança para que cuidasse do assunto. A ação conjunta Zelaya-Itamaraty (com apoio venezuelano) movimentou o cenário político regional e hondurenho, deixando pela primeira vez na defensiva os golpistas, que começaram a cometer erros graças ao despreparo, e forçou a comunidade internacional a agir depois de semanas de perigosa letargia.
No âmbito interno, o povo hondurenho, principal ator na resolução desta crise, parece ter notado as dificuldades enfrentadas pelos golpistas e incrementou suas mobilizações, forçando os usurpadores a mostrar sua faceta mais brutal e repressora. No âmbito internacional, o cerco passivo das semanas anteriores dá lugar a condenações e iniciativas mais contundentes.
O destacado papel do Brasil, posto agora no centro da arena internacional, contrasta com o pobre papel desempenhado pelo governo Obama, que se limitou a simples declarações e medidas simbólicas como a negação de vistos aos golpistas. Obama parece duplamente amarrado: pela situação interna de seu país, onde as direitas mais recalcitrantes obstruem seu governo e ameaçam bloquear reformas básicas como a de saúde, e por sua crescente deterioração como potência global. Os Estados Unidos não são reconhecidos nem pelas direitas golpistas, nem pelos governos democráticos, pois sua legitimidade para desenhar a ordem global está em questão.
A imagem de Zelaya saudando seu povo do balcão da embaixada do Brasil é tão inesquecível quanto os aplausos unânimes a Lula na Assembleia Geral da ONU. À exigência da restituição imediata do presidente hondurenho alinharam-se a União Europeia, os governos mais indiferentes da região e até a Casa Branca. Independentemente de como se resolver a crise hondurenha, Lula e o chanceler Celso Amorim sairão fortalecidos e, com eles, o papel de potência do Brasil.
É evidente que os espaços deixados pelo papel decadente dos Estados Unidos na região começam a ser ocupados pela estrela ascendente do Brasil. Os acordos políticos e militares selados com a França lhe permitem agora contar com um firme aliado para alcançar o desejado assento no Conselho de Segurança da ONU. Este novo papel tem também seus custos.
O Brasil continuará sendo um aliado de Washington, com quem não tem a menor intenção de romper, a fim de consolidar sua autonomia e ter as mãos mais livres na região sul-americana sem sofrer a obstrução frontal dos Estados Unidos. Para muitos de seus vizinhos, a mudança será apenas perceptível, uma vez que a potência ascendente se comporta como um "subimperialismo", como observou Rui Mauro Marini há três décadas.
*Analista uruguaio de assuntos internacionais