Os "direitos comunistas" na ONU
Os direitos à alimentação, ao trabalho, à habitação e a uma vida condigna são tão importantes como o direito à liberdade de expressão, de religião, de consciência e de voto. Na próxima quinta-feira, na Assembleia Geral da ONU, Portugal será um dos primeiros países a assinar o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O jornal Diário de Notícias entrevistou Catarina Albuquerque sobre o trabalho a favor da assinatura do pacto e seu significado.
Publicado 21/09/2009 16:21
A jurista portuguesa Catarina Albuquerque, de 39 anos e a atual perita da ONU para o direito à água, terá razões para sorrir no dia da assinatura do pacto, pois "obrigou" o mundo a confirmar que o acesso à alimentação, à água, à saúde, à educação e ao trabalho são direitos fundamentais. Ela negociou e redigiu o novo tratado de direitos humanos e, sobretudo, acredita que ele fará a diferença na vida das pessoas mais desfavorecidas.
Confira abaixo trechos selecionados pelo Vermelho da entrevista realizada pelo jornal português Diário de Notícias com Cristina Albuquerque:
A assinatura, na próxima semana, do Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais é o virar de uma página na história dos direitos humanos e da humanidade?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de Dezembro de 1948, consagra a igualdade entre os direitos civis e políticos (como o direito à liberdade de expressão, de religião e de consciência, o direito de acesso à justiça e ao voto) e os direitos econômicos, sociais e culturais (por exemplo o direito à educação, à segurança social, ou aos cuidados de saúde).
Na altura em que os países se preparavam para negociar uma convenção de direitos humanos que desenvolvesse as obrigações da Declaração estava a Guerra Fria e a oposição entre os blocos de leste e ocidental no seu auge. Consequentemente, foram adotados dois tratados – um sobre direitos civis e políticos, apoiado pelo Ocidente, e um sobre direitos econômicos, sociais e culturais, que eram vistos como "direitos comunistas", e que foi apoiado pelo bloco de Leste.
Os "direitos comunistas" são os chamados direitos básicos de subsistência?
Sim, é o direito à alimentação, ao trabalho, à habitação, à segurança social, à protecção da família, a uma vida condigna, entre outros. Durante a Guerra Fria estes direitos foram desvalorizados pelo Ocidente por comparação com os direitos civis e políticos, que eram os direitos do "mundo livre".
O bloco comunista defendeu aqueles direitos até à queda do muro de Berlim, até à Perestroika. O que aconteceu, foi que, de certa forma, após a derrocada do comunismo os direitos econômicos, sociais e culturais ficaram órfãos.
Como é que o protocolo vai tornar mais igual o que já nasceu igual?
Com o protocolo, vamos fechar um ciclo. Vai ficar claro que uma violação do direito à alimentação é tão grave como uma situação de tortura. Desde 1966 que é possível que os cidadãos vítimas de violação dos direitos civis e políticos apresentem queixas contra o seu Estado na ONU.
A partir de agora também poderão apresentar queixas por violação dos direitos econômicos, sociais e culturais. É um passo enorme, é um passo gigantesco que muitas pessoas que trabalham na área dos direitos humanos pensavam que nunca seria dado – tal é a oposição que existe por parte de alguns estados.
E agora qual é a natureza da resistência?
Sobretudo a ignorância. Diz-se que a realização dos direitos sociais, econômicos e culturais é muito cara, que obriga a um grande aumento da despesa pública. E faz-se a comparação com a garantia dos direitos civis e políticos, e diz-se que estes são baratinhos. Mas isto é mentira.
Para garantirmos a inexistência de tortura nas nossas prisões é preciso dar formação aos guardas prisionais e para isto é preciso investimento. E para garantirmos o direito à justiça e a um processo justo não se gasta dinheiro em tribunais, juízes e oficiais de justiça?
O direito ao voto, e vamos ter um ato eleitoral no próximo domingo (em Portugal) e outro daqui a duas semanas, também custa muito dinheiro ao erário público e é um investimento de que ninguém pode prescindir…
Precisamente. Não podemos consentir a propagação da ideia de que os direitos civis e políticos não têm custos econômicos. Têm-nos e o Estado assume-os e bem. Os direitos sociais, econômicos e culturais são igualmente direitos fundamentais e por isso exigem idênticas garantias.
Na maioria dos países do hemisfério norte os direitos à habitação, educação, saúde, alimentação, podem parecer tão básicos que até se estranha que tenham oponentes na ONU.
Há países que, grosso modo, até realizam esses direitos mas que persistem em chamar-lhes aspirações. Mas não, são direitos. E a diferença é que se forem direitos eu posso ir reclamá-los em tribunal, pois tenho o direito que o governo o realize e não estou à mercê da caridadezinha nem solidariedadezinha seja de quem for. E a existência do mecanismo de queixas a nível internacional vai impulsionar a apresentação de queixas de cidadãos a nível nacional por causa da violação dos seus direitos e, no caso de não obterem justiça, levarão os casos às Nações Unidas.
Na prática, o que é que vale uma queixa na ONU?
Se me pergunta se a decisão da ONU tem caráter vinculativo a resposta é não. Mas tem certamente um peso político enorme. E os Estados têm tendência – pelo menos aqueles com democracias mais bem estabelecidas e sociedades civis mais atentas – a dar seguimento às decisões e recomendações da ONU no âmbito de queixas.
O protocolo que vai ser assinado é o resultado de quanto tempo de trabalho?
A ideia do protocolo começou a ser avançada em 1991. Houve uma longa travessia do deserto. Eu fui eleita em 2004 para presidir às negociações e estas foram concluídas em 2008. Demorei nove meses a negociar o texto do protocolo.
Se fosse uma competição estava no primeiro lugar do pódio pois negociou e depois redigiu um tratado num tempo recorde, ao contrário do que é comum na ONU. Qual foi a sua fórmula?
A sério que não sei. [Risos]. Os egípcios, que presidiam ao grupo africano, diziam que o meu truque era fazer sorrisos e dizer que sim… E depois fazer o que queria! Acho que tive muita sorte e transformei as desvantagens iniciais a meu favor.
O fato de ser nova, mulher, branca e europeia eram desvantagens, mas houve uma série de circunstâncias que foram uma valia. O fato de ser portuguesa, de ter capacidade para fazer pontes, de me sentirem próxima de África e da América Latina, sendo europeia permitiu-me ganhar a confiança dos diplomatas na ONU.
Todos os países querem sentir que o seu pensamento está refletido no texto.
Nem mais, querem sentir que os seus pontos de vista e as suas preocupações estão refletidos no texto final. Cada país, cada governação quer sentir-se importante. É preciso muito tempo. E o que é que eu fazia? Entre as reuniões do grupo de trabalho ia para Genebra bater à porta dos vários embaixadores e falar com eles.
Ouvi-los individualmente fá-los sentirem-se importantes. Depois, também organizei reuniões regionais, para que cada região do globo se sentisse um bocadinho pai e mãe do processo e aqui as posições dos países mudaram bastante. Passaram a sentir-se co-responsáveis pelo tratado. E acabaram por estar empenhados em que a coisa resultasse. Na brincadeira eu dizia que os diplomatas também gostam de finais felizes!
Chegou a coordenar reuniões onde a maioria dos participantes eram homens oriundos de países que menosprezam os direitos das mulheres. Alguma vez se sentiu desconsiderada?
Com certeza! Disseram-me coisas que nunca me diriam se eu tivesse 60 anos, cabelo branco e fosse homem. [Risos].
E o que fazia?
Fazia-me de parva. No primeiro ano ouvi os maiores impropérios. Tinha 33 anos, estava rodeada de embaixadores de 60, 65 anos e vindos de países que não são respeitadores dos direitos das mulheres. Em salas com quinhentas pessoas sentadas, interrompiam a reunião, pediam pontos de ordem. No princípio até o fato de ser portuguesa foi complicado por causa de uma antiga colónia nossa que dizia que o seu estado de subdesenvolvimento se devia ao colonialismo.
Foi Angola?
Sim.
Fala com muita expressividade, entusiasmo e espontaneidade. Tinha o mesmo registro nas reuniões?
Sempre. Depois do protocolo ser adotado cada país tem de fazer um discurso e faz parte da etiqueta dirigir umas palavras ao presidente, neste caso à presidente. E aí os mais céticos disseram que no princípio desconfiavam, mas que me viam tão otimista, sempre com um sorriso estampado na cara, que se convenceram que tudo estava a funcionar e que o protocolo seria inevitável. A verdade é que eu punha sempre um ar muito seguro mas estava cheia de receio que as coisas não funcionassem.
Tinha pouca experiência mas acreditava no que estava a fazer…
Olhando para trás, penso que não tive muita consciência do que se passava e dos problemas com que iria deparar-me. Olhe esta: eu queria tirar conclusões e fazer recomendações do trabalho do primeiro ano e os estados-membros proibiram-me (os EUA e a Rússia bloqueram o consenso). Tive de ir sozinha à Comissão dos Direitos Humanos da ONU apresentar as minhas recomendações, o que me colocava numa posição muito mais fraca do que se as recomendações tivessem saído do grupo de trabalho.
Mas consegui que elas fossem aprovadas! Acho que simplesmente acreditava (e acredito) piamente que o protocolo pode ser uma ferramenta fantástica com o potencial de mudar as vidas das pessoas!!! De pessoas que talvez hoje nem sequer saibam o que é o protocolo!
Nunca pensou desistir?
Acreditei sempre que o resultado ia ser uma coisa boa, mas a dada altura defini o meu limite. Aconteceu quando os estados ocidentais quiseram salvaguardar o poder de decidir quais as queixas que viriam a aceitar.
Se se tivesse concretizado, uns aceitariam queixas sobre violação do direito aos cuidados de saúde, outros sobre violação do direito à alimentação, outros sobre água, outros sobre segurança social, etc. E eu, entre duas sessões do grupo de trabalho, pensei e perguntei a mim mesma se aquilo era uma solução. Concluí que não era. Se eu tivesse o azar de o meu problema ser o direito à educação e não o direito à saúde e vivesse num país que só aceitasse queixas sobre saúde não podia fazer nada.
Como é que resolveu esse impasse?
Trabalhei e investi tanto que comecei a ganhar credibilidade. Acreditar no que se está a fazer é meio caminho andado para convencer os duzentos estados membros das Nações Unidas.
O protocolo mereceu o consenso de todos os países?
Sim, nem os EUA quebraram o consenso, o que é quase um milagre. Aprovaram o protocolo e depois fizeram uma declaração a dizer que os direitos sociais, econômicos e culturais são aspirações.
O texto do protocolo permite diferentes interpretações?
O protocolo é muito bom, mas permite entendimentos um pouco diferentes. Prevê uma coisa que não existe para os direitos civis e políticos: em caso de violação grave e sistemática de um direito num determinado país, o Comitê tem poder para se deslocar ao país para investigar a situação. É o Comitê que toma a iniciativa com base no mecanismo do inquérito e para situações mais graves é fundamental.
A alimentação é um direito humano fundamental e a habitação igualmente. Significa que devem ser garantidos independentemente do esforço dos cidadãos?
Não. Ainda há pouco me fizeram essa pergunta a propósito do direito à água. Há quem diga que se é direito humano deve ser gratuita. Mas não. Ser direito humano obriga os estados a adotarem medidas com vista à realização progressiva do direito, dentro dos recursos financeiros disponíveis.
Também quer dizer que nenhum cidadão pode ser privado do exercício desse direito por falta de dinheiro. É por isso que pagamos os alimentos que compramos nos supermercados, a água que consumimos em casa, o apartamento em que habitamos, até os cuidados de saúde e as prestações sociais. No dia em que não conseguirmos pagar, o Estado tem de nos substituir e garantir a realização desse direito. É essa a diferença entre direitos humanos e caridade (ou solidariedade)!
Os números assustam. Um bilhão de pessoas não tem acesso a água segura para beber e todos os dias morrem quase cinco mil crianças por ingestão de água contaminada.
Crianças com menos de cinco anos… E 443 milhões de dias de aulas que se perdem todos os anos por doenças causadas pela água. E em certas regiões cerca de vinte por cento das moças deixam de ir à escola quando estão menstruadas porque têm vergonha de partilhar os banheiros com os rapazes. Precisamente porque não há banheiros separados por sexo.
Nos países da África subsariana o produto interno bruto perdido devido a doenças com origem na água é superior à ajuda pública ao desenvolvimento que recebem dos países industrializados. É uma crise de proporções por nós, ocidentais, inimagináveis.
Se pensarmos que por detrás dos números estão pessoas…
Uma boa deixa para falar de direitos humanos e para os distinguir de desenvolvimento humano. Não basta garantir o cumprimento dos objetivos do desenvolvimento do milénio, que apostam em reduzir em cinquenta por cento o número de pessoas que não têm acesso à água e saneamento. É bom mas não basta.
É que os cinquenta por cento que continuam a não ter acesso são sempre os mesmos: as pessoas mais pobres, com deficiência, que habitam em zonas rurais, os imigrantes, as crianças, os refugiados e indígenas. Os direitos humanos obrigam a prestar atenção aos grupos mais vulneráveis e o grande desafio que se coloca aos estados é corrigir este desequilíbrio. Para os direitos humanos cada pessoa é importante!
Numa sessão da ONU chegou a citar um artigo do British Medical Journal…
É muito importante. É a ciência a demonstrar que entre antibióticos, vacinação, anestesia, descoberta do DNA, para o progresso da medicina, mais importante do que tudo isto foi o saneamento.
Está a cumprir o primeiro ano de mandato, dedicado ao saneamento, e o próximo terá como tema o setor privado. Que mensagem quer transmitir?
Não sei ainda, é muito cedo. Vou olhar para a privatização dos serviços de abastecimento de água para entender a sua legalidade na perspetiva dos direitos humanos. Os direitos humanos não são contra a privatização, desde que se garanta o acesso quer em termos físicos mas também econômicos.
E o Estado tem de regulamentar a ação dos privados. E estes, que responsabilidades têm? Que responsabilidades tem a indústria hoteleira, de restauração, de telecomunicações e outras no acesso ao direito à água.
E o tema do terceiro ano será…
Seria um erro defini-lo já. Há dois temas que já estou a investigar – as alterações climáticas e as boas práticas em matéria de acesso à água e saneamento. Em outubro, virão a Portugal especialistas de todo o mundo para debater estas matérias.