Um ano de crise: América Latina mostra rápida recuperação
Até o último trimestre de 2008, a América Latina alimentava a esperança de passar incólume pela crise. Havia um distanciamento entre países emergentes, cuja maioria continuava a crescer, e nações mais industrializadas, que entravam na recessão. A queda do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, acabou com essa ilusão. Mas enquanto – um ano depois – os países ricos parecem ainda experimentar uma deterioração do quadro econômico, índices apontam recuperação rápida na América Latina.
Publicado 13/09/2009 12:33
A América Latina foi a última região a entrar na crise, mas o golpe não foi pequeno. Após seis anos de crescimento contínuo, o grupo de países deve apresentar um recuo de 1,9% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2009. O Brasil, que crescia ao ritmo de 6% em 2008, teve queda de 3,9% no último trimestre do ano. A economia chilena contraiu 4,5% no segundo trimestre de 2009, o que fez com que o país entrasse oficialmente na primeira recessão desde 1999.
Motor do crescimento durante a atual década, o comércio exterior foi duramente afetado. As exportações da região devem apresentar redução de 13% este ano, segundo estimativa da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), braço econômico das Nações Unidas na região. A retração é atribuída ao encolhimento da demanda, à queda dos preços de matérias-primas produzidas na região e ao aperto no mercado de crédito. Segundo a Cepal, seria o pior resultado em 72 anos. Paralelamente, as remessas contraíram cerca de 10% entre o último trimestre de 2008 e o primeiro de 2009.
Os efeitos sociais da crise não demoraram a abalar a população da região. Desde o começo de 2008 até o primeiro trimestre de 2009 mais de um milhão de pessoas ficaram sem emprego nas zonas urbanas. A taxa de desemprego deveria passar de 7,4% em 2008 para cerca de 9% este ano, deixando mais de três milhões de pessoas sem trabalho. Isso sem contabilizar a expansão do trabalho informal, que dificulta a saída da pobreza.
Rápida melhora
Mas enquanto os países ricos parecem ainda experimentar uma deterioração do quadro econômico, vários índices apontam uma recuperação rápida na América Latina, fazendo com que provavelmente a região seja a primeira a sair da crise. A Fundação Getúlio Vargas acabou de publicar, em colaboração com o instituto de pesquisa econômica da Universidade de Munich (IFO), um informe sobre o clima econômico da região.
O trabalho mostra uma melhora das expectativas dos agentes econômicos no Peru, Brasil, Chile e Colômbia. “No caso do Brasil, se as expectativas se confirmarem, o país pode passar para a fase de expansão já na próxima sondagem”, acredita Lia Valls, coordenadora da pesquisa para a Fundação Getúlio Vargas. Os números do PIB divulgados nesta semana pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) confirmam que a economia brasileira cresceu 1,9% no segundo trimestre deste ano na comparação com o primeiro trimestre, o que confirma que o país saiu da recessão técnica.
O quadro positivo se estende à maioria dos países da região, exceto na Venezuela, onde a situação política transformou os empresários em adversários do governo.
A primeira explicação desta melhora tão rápida vem da recuperação das exportações de matérias-primas, as chamadas commodities. Os preços do cobre, soja, minério de ferro e do petróleo aumentaram desde o começo do ano e subiram ainda mais desde abril, puxados pela demanda asiática. Na China, o pacote fiscal do governo começa a surtir efeitos e já há previsões de que a economia irá crescer 7,5% este ano.
Isso provocou uma mudança estrutural nos destinos dos produtos latino-americanos, como mostra o exame do comércio exterior brasileiro. Enquanto as vendas para Estados Unidos caíram 43%, para a União Européia, 27,2% e para o Mercosul, 40% durante os primeiros seis meses do ano em relação ao mesmo período em 2008. Na Ásia, único mercado onde foi registrado crescimento, houve alta de 15,8%. Sendo assim, o continente passou a ser o destino de 27% dos produtos exportados pelo Brasil, com destaque para a China, que em março se tornou o principal cliente do Brasil, ultrapassando os Estados Unidos.
O apetite pelas matérias-primas explica também a boa resistência dos investimentos estrangeiros diretos, em comparação com outras regiões do mundo. Em 2009, os fluxos de investimentos na América Latina e no Caribe chegaram a 140 bilhões de dólares, em alta de 9% em relação a 2007, enquanto a tendência mundial era de uma diminuição de 15% – ainda mais marcada nos países mais ricos (-25%). Segundo a Cepal, 80% destes fundos foram para empresas de matérias-primas no Brasil. No Chile e na Colômbia, a quase totalidade foi investida nas mineradoras.
Esta recuperação já começou a se refletir nos mercados financeiros. Em 2008, quando a crise apertou, os investidores venderam as ações de todas as bolsas sem muita discriminação, como provaram as fortes quedas dos índices de forma geral. Desde o final do ano passado, as bolsas latino-americanas são as mais dinâmicas. A melhor recuperação é da bolsa do Chile. Mesmo assim, a alta não conseguiu ainda borrar a crise. Desde o seu nível máximo, em julho de 2007, até a sua mínima, em outubro do ano passado, ela caiu 40%. No final de agosto, tinha voltado a 7% abaixo do topo histórico, assim como a bolsa da Colômbia.
Macroeconomia
Esta diferenciação feita pelos investidores pode ser explicada pelo exame mais profundo dos fundamentos econômicos. “A crise encontrou a América Latina numa situação muito melhor em matéria macroeconômica que em outras épocas”, analisa Lia Valls. Os países tinham pelo menos seis anos de crescimento interrompido, conseguiram diminuir uma boa parte da dívida publica e acumularam reservas internacionais.
Na Venezuela, por exemplo, as reservas de divisas deveriam permitir ao governo seguir importando durante nove meses, apesar da queda brutal do petróleo. Na Argentina, os 45 bilhões de reservas aparecem como uma garantia para evitar um calote comparável a aquele de 2001.
Mais preparados, os países latino-americanos deram também muito mais espaço a ações do Estado em comparação com as últimas crises, implementando medidas contra-cíclicas fortes, começando pela política monetária. Para facilitar a volta do crédito e manter a demanda interna, todos os países da região entraram em um ciclo de alívio monetário agressivo, com cortes nos juros que vão até 7,5 pontos.
No Chile, a taxa passou de 8,25% em janeiro de 2009 a 0,5% em julho. No México, tradicionalmente ortodoxo, caiu de 8,25% no final de 2008 a 4,5% em agosto, o mesmo nível que na Colômbia, enquanto no Peru atingiu o nível histórico de 1,25%, após a sétima redução consecutiva. No Brasil, a taxa básica Selic foi reduzida para 8,75% anuais. Desde a criação do Comitê de Política Monetária do Banco Central, em 1996, é a primeira vez que os juros reais – descontada a inflação – chegam abaixo de 5% ao ano.
Medidas distintas
A política monetária não foi o único instrumento utilizado pelos países latino-americanos para revitalizar a economia. No Chile, a presidente Michelle Bachelet anunciou um pacote econômico de 4 bilhões de dólares em maio, soma que foi dobrada em junho. “O governo chileno aproveita o dinheiro acumulado no Fundo de Estabilização econômica e social (FEES), no qual vão os benefícios do cobre quando o preço do metal é muito alto”, explica Lia Valls, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas.
No Brasil, Silvio Campos Neto, economista-chefe do Banco Schahin, destaca “a importância das desonerações tributárias em determinados segmentos de bens duráveis (veículos, linha branca, material de construção), estimulando o consumo e a produção destes itens”. Na linha branca, a produção saltou de 20% em maio e junho, em relação ao mesmo período em 2008, enquanto as montadoras já preveem um recorde de vendas neste ano.
Os gastos do Estado por meio do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e os investimentos das estatais deveriam ser a principal fonte de atividade econômica. De acordo com cálculos do Ministério da Fazenda, a Petrobras sozinha responderá por quase a metade do crescimento. A estatal deveria desembolsar investimentos por 1,7% do PIB (contra 1,3%, em 2008, e 0,9%, em 2007). Apenas no primeiro trimestre, a Petrobras investiu cerca de 14,4 bilhões de reais, 41% a mais do que em igual período de 2008.
“A crise sinalizou o grande retorno da política como protagonista para a construção do futuro na América Latina”, opina Alicia Bárcena, secretária-executiva da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe). Ela considera que a situação econômica atual acabou com a ilusão de um mercado resolvendo todos os problemas sem a ação do Estado. “O gasto social em tempo de crise é muito importante”, destaca Bárcena, lembrando que a América Latina demorou 12 anos para recuperar o nível de crescimento prévio da crise econômica de 1980, mas precisou de 24 anos para voltar aos níveis de pobreza anteriores a esta mesma crise.
Até os organismos multilaterais como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial incorporaram esta mudança. “Os novos empréstimos do FMI, como aquele de 40 bilhões feito ao México, vêm com poucas condições, o que facilita sua eficiência. No passado, demoravam muito, e as condições fiscais drásticas tinham efeitos negativos sobre a demanda interna”, acrescenta Lia Valls.
Próximo passo
Menos golpeada que outras regiões, a América Latina deve agora provar sua capacidade de integrar esta melhora de maneira estrutural. Os países que resistiram mais à crise e onde a atividade está decolando mais rapidamente são os que conseguiram construir uma economia com um mercado interno importante, um sistema financeiro sólido e exportações diversificadas.
A economia brasileira foi uma das menos afetadas graças à relativa independência do comércio internacional. As exportações respondem por apenas 14% do PIB. No Chile, esse patamar é de 39% e na Costa Rica chega a 46%. É também o peso do mercado doméstico que explica a atração dos investimentos e por essa razão as multinacionais apontaram o Brasil como o quarto destino preferido para investimentos nos próximos dois anos, segundo uma pesquisa da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento).
O México, que exporta mais de 80% de seus produtos para os Estado Unidos, está numa situação bem mais frágil que o Brasil, cujo principal comprador, a China, não ultrapassa 20% das vendas. “Infelizmente, esta situação não provocou uma mudança de atitude dos empresários mexicanos, existe uma inércia grande”, lamenta Hilda Garcia, que dirige a edição multimídia do diário El Universal.
O economista argentino Federico Villalpando demonstra a mesma preocupação. “Não há dúvidas que a Argentina está bem mais preparada hoje para uma crise econômica que há dez anos. Mas acho que a procura para diversificar as exportações, a reforma fiscal, a acumulação de reservas e as medidas para aumentar a produção local poderiam ter sido melhores durante os anos de crescimento econômico”.
Na Venezuela, a pergunta é se o governo vai conseguir reverter a dependência extrema a um único produto, o petróleo, que representa 93% de suas entradas de divisas. No Brasil, o risco é ver as matérias-primas, que geram pouco emprego e desenvolvimento, tomar o espaço de produtos industriais nas vendas do país. “Veremos se a crise vai incentivar uma mudança na arquitetura financeira da região”, sublinha Lia Valls.
Sem acesso ao crédito, a Argentina está obrigada a reconsiderar sua rejeição ao FMI, enquanto o México depende dos bancos norte-americanos, que são grandes atores no país. Também a partir desse ponto de vista, o Brasil foi o mais sólido, com 79% do crédito que vem do setor financeiro nacional. A presença de bancos nacionais potentes faz do país um caso a parte na América Latina, que alguns vizinhos estão pensando em copiar. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), por exemplo, vai desembolsar 50 bilhões de dólares este ano, mais de quatro vezes o volume de empréstimos previstos pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), para toda América Latina (12 bilhões).
Fonte: Opera Mundi