Chatila: 60 anos de luta contra a discriminação e a pobreza
Chatila é um cheiro, que entra pelo nariz e impregna a roupa. Não sai da cabeça, faz moradia em um canto até então desconhecido da memória. Chatila é um campo de refugiados palestinos no sul de Beirute, no Líbano. Há 60 anos, abriga milhares de famílias que fugiram de Israel, após a invasão dos territórios palestinos.
Por Carolina Montenegro, em Beirute
Publicado 24/08/2009 22:43
Chatila é um campo de refugiados palestinos no sul de Beirute, no Líbano. Há 60 anos, abriga milhares de famílias que fugiram de Israel, após a invasão dos territórios palestinos. Em 1982, o campo virou manchete internacional e foi palco de um massacre, em que quase 2.000 pessoas foram mortas por tropas falangistas (cristãos de direita) durante a ofensiva israelense no Líbano. A maioria eram civis, mulheres e crianças.
O jornalista e correspondente do jornal britânico Independent, Robert Fisk, descreve o episódio no seu livro “Pobre Nação”: “O fedor em Chatila provocava ânsias de vômito. Mesmo com os mais grossos lenços, nós sentíamos o cheiro. Após alguns minutos, nós começamos a cheirar como os mortos. Eles estavam por todas as partes, na rua, nas vielas, nos quintais e cômodos destruídos”.
Hoje, o odor que persiste é o do lixo, espalhado para todos os lados. Jogado nas ruas, servindo de comida para cabras e bodes. Crianças brincam no meio da lama, não há asfalto, falta luz e água. Os prédios em ruínas, dentro dos pequenos apartamentos, muitas vezes, famílias de oito pessoas dividem um mesmo cômodo. Chatila cheira a pobreza, a abandono.
Segundo a UNRWA (agência da ONU que presta assistência aos refugiados palestinos), 12.235 palestinos vivem hoje no campo. “As condições ambientais e de saúde são extremamente ruins, com moradias superlotadas e esgoto a céu aberto”.
A agência mantém dois centros de saúde e duas escolas em Chatila. Várias outras ONGs também atuam no campo, incluindo a Sociedade Palestina do Crescente Vermelho e a Agência Norueguesa de Assistência. Oferecem atendimento médico, creches e serviços de empréstimo e financiamento para promover empreendedorismo e compra de imóveis.
Emprego temporário
A assistência, no entanto, fica muito aquém do necessário. Um dos maiores entraves é a legislação trabalhista do Líbano, que impede que palestinos atuem em mais de 20 ramos profissionais. “Vigora uma lei baseada na reciprocidade. Brasileiros dentistas podem atuar no Líbano, porque libaneses podem ser dentistas no Brasil, mas isso não se aplica aos palestinos, que não possuem um Estado próprio”, afirma Hoda El-Turk, porta-voz da UNRWA no Líbano.
“Trabalho não falta, desde os 15 anos faço bicos como eletricista, encanador, pedreiro, agricultor. Mas os empregos são quase sempre temporários e os salários muito baixos”, conta um refugiado palestino de 27 anos, que chamarei de Ali Saad.
Saad diz que não pensa muito no futuro. “Já pensei em sair daqui, melhorar de vida, como alguns fazem, e me mudar de Chatila, até deixar o país. Mas hoje não tenho mais este tipo de ambição ou expectativa, percebi que só posso viver um dia após o outro”, explica. Ele parou de estudar aos 14 anos para trabalhar e realizar o sonho de ter um espaço pra si.
“Demorei quatro anos para construir minha casa. Levantei as paredes sozinho e contratei uns conhecidos para me ajudar na obra, porque eu trabalhava 10 horas por dia, na época”, explica. Hoje, Saad tem um apartamento próprio em Chatila, sem paredes pintadas e com poucos móveis. Antes, dividia uma sala com outros seis familiares.
Aprendeu inglês com a ajuda de professores estrangeiros voluntários em uma ONG. “A maioria dos outros alunos não se interessavam muito, mas eu adoro a língua e me dediquei quase seis horas por dia a estudar o inglês”, diz Saad.
Extrovertido e brincalhão, fez amizade rápido com a maior parte dos professores e hoje coleciona amigos em várias partes do mundo: um brasileiro, um casal de italianos e um universitário alemão. Saad mantém contato com eles pela internet. Depois que aprendeu inglês, comprou um computador e entrou no Facebook (uma rede de relações sociais).
Vida precária
A situação de vida nos campos de refugiados no país é tida hoje como a mais precária da região, segundo a ONG internacional de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch. “Prevalece a pobreza extrema e o subemprego”, alerta o analista sênior da instituição em Beirute, Nadim Houry.
O assunto também foi tema de um relatório no começo deste ano do International Crisis Group, um dos mais renomados think-thank internacionais de prevenção de conflitos, e de um estudo divulgado pela McGill University, do Canadá, com o título de: “Construindo uma Relação Melhor: Refugiados Palestinos, Líbano e o Papel da Comunidade Internacional”.
O documento destaca as recentes políticas estabelecidas pelo governo libanês em parceria com a UNRWA para tentar melhorar as condições de vida nos campos. “Nos últimos anos, as políticas oficiais do Líbano em relação aos refugiados palestinos sofreram grandes mudanças. Cada vez mais, o governo libanês tem expressado seu apoio em melhorar as condições sociais e econômicas dos refugiados”, declara o texto.
Como exemplo, o estudo cita o lançamento do Comitê de Diálogo Libanês-Palestino (LPDC, na sigla em inglês) em 2005, para promover reformas em áreas como emprego e registro civil. “O governo também tem atuado como parceiro crucial da UNRWA na reconstrução do campo de Nahr Al-Barid (destruído em 2007 durante conflito entre as Forças Armadas Libanesas e o grupo xiita Fatah Al-Islam)”, acrescenta.
Pergunto para Assad se ele já notou alguma mudança na vida diária em Chatila nos últimos anos. Ele responde que tudo continua igual. “Pior do que está não dá pra ficar, até para melhorar é sempre feito algum estrago antes”, diz apontando para pedaços de concreto jogados nas vielas entre os prédios. As poucas vias cimentadas foram destruídas para a construção de um sistema de esgoto no subsolo da região. A obra financiada pela União Europeia deve ficar pronta em dois anos, enquanto isso os passantes tropeçam nos buracos e pedaços de pedras largados pelo caminho.
Fonte: Instituto de Cultura Árabe (http://www.icarabe.org)